Texto de
Manuel S. Fonseca
Coisas boas em jornais
Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro,
para onde é que vai a voz de quem fala connosco?
A voz de
Cary Grant, quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se
para ele, telefone na mão, e murmurou: “Está aqui o Presidente Kennedy a querer
falar consigo…” O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao
telefone: “Sr. Presidente, em que posso ser útil?” (Toda a gente queria ser
útil ao Presidente Kennedy.) John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao
lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. “Pois não, e como posso
ajudá-los?”, insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou:
“Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua
voz!” Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um
sonho: ouvir a voz de Cary Grant.
Como o
melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um
sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da
primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor,
um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.
A voz de
Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt
para a cama.
Vamos
admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que
chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro o córtex auditivo primário
dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace
Kelly, em “To Catch a Thief”.
As
frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já
Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa
antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em “Body Heat”, Hurt
não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com
tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! –
para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.
A voz de
Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras
vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa.
As vozes de
certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão
o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a
Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito
do catolícissimo Hitchcock. Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um
rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do
jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –,
Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: “Run for your life, boy!”
Com quem diz: Salvem esse coiro, rapazes. Há vozes piores do que
grilhetas.
(Manuel S.
Fonseca in, Jornal Expresso, 2011)
Cary Grant e Alfred Hitchcok durante as filmagens de Intriga Internacional (North by Northwest, 1959).
Cary Grant.
«Tornou-se um mestre tão perfeito em comédia, sofisticada ou popular, que o seu talento foi muitas vezes subestimado. Primeira figura masculina ideal, bobo perfeito, galã admirável e patife encantador: (...) nunca lhe foi concedida autorização para morrer no fim do filme, e com toda a razão - quem acreditaria? Cary era indestrutível. (...) Por mim, daria tudo para tê-lo num filme, assim como muitos outros realizadores, e tenho a certeza que o público não ficaria triste por ter esse estilo especial e essa sofisticação única de novo.»
(Peter Bogdanovich, 1972)
A Arte de Cary Grant.
(Fotos encontradas na net)
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