quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A voz de Cary Grant

Texto de
Manuel S. Fonseca



Coisas boas em jornais


Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro, para onde é que vai a voz de quem fala connosco?
A voz de Cary Grant, quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se para ele, telefone na mão, e murmurou: “Está aqui o Presidente Kennedy a querer falar consigo…” O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao telefone: “Sr. Presidente, em que posso ser útil?” (Toda a gente queria ser útil ao Presidente Kennedy.) John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. “Pois não, e como posso ajudá-los?”, insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou: “Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua voz!” Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um sonho: ouvir a voz de Cary Grant.
Como o melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor, um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.
A voz de Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt para a cama.
Vamos admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro o córtex auditivo primário dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace Kelly, em “To Catch a Thief”.
As frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em “Body Heat”, Hurt não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! – para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.
A voz de Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa.
As vozes de certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito do catolícissimo Hitchcock. Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –, Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: “Run for your life, boy!” Com quem diz: Salvem esse coiro, rapazes. Há vozes piores do que grilhetas. 

(Manuel S. Fonseca in, Jornal Expresso, 2011)

Cary Grant e Alfred Hitchcok durante as filmagens de Intriga Internacional (North by Northwest, 1959).


Cary Grant.


«Tornou-se um mestre tão perfeito em comédia, sofisticada ou popular, que o seu talento foi muitas vezes subestimado. Primeira figura masculina ideal, bobo perfeito, galã admirável e patife encantador: (...) nunca lhe foi concedida autorização para morrer no fim do filme, e com toda a razão - quem acreditaria? Cary era indestrutível. (...) Por mim, daria tudo para tê-lo num filme, assim como muitos outros realizadores, e tenho a certeza que o público não ficaria triste por ter esse estilo especial e essa sofisticação única de novo.» 
(Peter Bogdanovich, 1972)



A Arte de Cary Grant.




(Fotos encontradas na net)



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