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terça-feira, 12 de março de 2013

Silvana Mangano - A Vénus dos arrozais



Silva Mangano em Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949) de Giuseppe De Santis.
Foto de theredlist.fr


Coisas boas em jornais


A Vénus dos arrozais que a Censura proibiu
Texto de Vítor Pavão dos Santos 
Jornal Se7e
21-02-80



"Tudo hoje quer cinema italiano
P'ra ver de perto as pernas da Mangano
Dantes a Rita é que era o chamariz
Hoje a Silvana é que dá que falar
E então nas ruas andam velhos
Andam novos, andam ginjas
Anda tudo a perguntar
Mas onde é que está o gato?
Sei lá! Sei lá!
Mas onde e que está o gato?
Sei lá! Sei  lá!"

Era assim que a revista, comentadora infalível da vida portuguesa, pela voz da grande Hermínia Silva, assinalava, em 1953, em Lisboa antiga, a loucura que então provocava o cinema Italiano e as suas vedetas. Tudo começara, quando, em 1951, Silvana Mangano surgira desafiadora, no écran do Tivoli, camisola colada ao peito farto, calções molhados e pernas nuas, mergulhadas, até ao joelho, nos arrozais, em Arroz Amargo (Riso amaro, 48), desencadeando o desejo do «bom» Raf Vallone e do «cínico» Vittorio Gassmann, tão próxima, tão verdadeira, logo conquistando o espectador lisboeta, derrubando as imagens technicoloridas das pin ups sofisticadas, como Rita Hayworth ou Betty Grable. Mas não seria por muito tempo que o público poderia gozar da beleza de Silvana, já que a vigilante censura salazarista, também visivelmente perturbada, mandou retirar o filme de exibição, 14 dias após a estreia, alegando, entre outras idiotices, abundância de «mulheres em roupagens sumárias». E lá se foi a Silvana mondadeira (...). O escândalo do filme não era facto inédito, pois nos Estados Unidos também a legion of decency condenara Bitter Rice. Só que lá, o caso até serviu de publicidade ao filme, que rendeu a considerável soma de seis milhões de dólares. Mas por cá, tudo era bem diferente — tirava-se a fita de circulação e não se davam mais satisfações. 

Silvana Mangano e Dino De Laurentiis com as filhas em Monte Carlo. 1966. Carlo Bavagnoli.


Porém, o que a censura não podia impedir era que a imagem avassaladora da belíssima Silvana ganhasse o prestigio do fruto proibido. E o público, que esperava ansioso noticias dela, lá a conseguiu ver, em 1952, moldada pela combinação preta, indispensável acessório das vamps neo-realistas, em O Lobo da Calábria (Il lupo della Sila, 49), disputada mortalmente por Amadeo Nazzari e Jacques Sernas. E não ficou desiludido. Porém, o sucesso louco, que fez Lisboa andar com a cabeça à roda e esgotar semanas e semanas o Império, foi Anna (Anna, 51), onde La Mangano, com aquele seu ar indiferente e um tanto enjoado, ora era desvelada freira-enfermeira, ora, de quando em quando, recordava o seu passado de provocante cantora de cabaret fumarento, mais uma vez dividida entre o «bom» fazendeiro Raf Vallone e o «cínico» barman Vittorio Gassmann. Dolente, em estudadas poses coleantes, Silvana cantava, com a voz emprestada por uma qualquer cantora ignorada, uma melodia melancólica, T'ho voluto bene, e um remexido balão, o célebre Balão da Ana, cantigas que causaram um furor tremendo, e a telefonia tocava a toda a hora, sendo até gravadas pela Amália, a primeira com versos em português, do jovem poeta David Mourão-Ferreira. Nesse ano de 1953, Hermínia estava, portanto, absolutamente certa, a Silvana é que dava que falar, a tal ponto que, num inquérito da revista Plateia, 82 por cento dos seus leitores declararam ser ela a sua preferida.

Silvana Mangano e sua filha em Voivodina, Jugoslávia, durante as filmagens 
de Tempestade (La Tempesta, 1958) de Alberto Lattuada. 1958. Gjon Mili.


A serena «signora» de Laurentiis

Mas esta loucura não acontecia só por cá, mas um pouco por toda a parte. Filha de pai italiano e mãe inglesa, Silvana Mangano estudara dança, fora manequim e tentara o cinema, até que, em 1948, conhecera o produtor Dino de Laurentiis, com quem logo casara, o qual, cuidadosamente, preparara o seu lançamento. E o produto mostrara-se de tão boa qualidade que o dificílimo mercado americano se mostrava muito receptivo, a ponto do New York Times afirmar entusiasmado, ser miss Mangano uma mistura de Anna Magnani, com menos 15 anos, Ingrid Bergman, com temperamento latino, e Rita Hayworth, com 12 quilos a mais.
Perante esta aceitação internacional, Silvana apareceu, em 1954, em duas grandes produções italo-americanas. Um era Mambo, tentativa pouco conseguida de explorar o filão de  Anna, onde se entregava a danças ardentes, com o  ballet  negro de Katherine Dunham, casava com Michael Rennie, um conde hemofílico, e era mais uma vez tentada por Vittorio Gassmann, o seu «cínico» privativo. O outro, Ulisses (Ulisse), onde se desdobrava num duplo papel, a paciente e tecedeira Penélope e a feiticeira Circe, enredando, nos seus encantos, Kirk Douglas, o herói homérico desta supercolorida odisseia de cartão e purpurina.

Silvana Mangano, durante as filmagens de Tempestade (La Tempesta, 
1958) de Alberto Lattuada. Voilodina, Jugoslavia. 1958. Gjon Mili.


Entretanto, a extrema sensibilidade com que Silvana viveu uma amargurada prostituta, num dos sketchs de Oiro de Nápoles (L'ro di Napoli, 54), dirigida pelo seu grande amigo Vittorio de Sica, valeu-lhe ser distinguida com o  Nastro d'argento, para a melhor actriz italiana do ano, prémio que novamente conquistou, em 1964, pela criação da figura da condessa Edda Ciano, a célebre filha de Mussolini, em Il processo di Verona, um filme, nessa época, proibido em Portugal, e que ainda por cá não correu. Embora estas distinções tenham dissipado o preconceito generalizado de que as mulheres que se impõem pela beleza têm, por força, que ser más actrizes, a signora Di Laurentiis, olhando pelos filhos, no conforto da sua villa  romana, mostrava-se pouco interessada em se assumir superstar, limitando muito as suas aparições, ainda por cima geralmente breves, apesar da sua presença, sempre belíssima, ser, com frequência, a melhor coisa de algumas superproduções do seu marido, como A revolta dos cossacos (La tempesté,  58), d'aprés Pushkin, também se revelando uma excelente comediante, em  Crime (Crimen, 60), ao lado dos experimentados cómicos Alberto Sordi, Nino Manfredi e o sempre presente e excelente Vittorio Gassmann.

Silvana Mangano durante as filmagens de Cinco Mulheres Marcadas 
(Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


A presença de prestígio seguro

Em 1966, comemorando quase vinte anos de feliz casamento, De Laurentiis ofereceu á mulher um presente caríssimo, que consistiu num filme, em sketchs, todo centrado em Silvana, que interpretava cinco personagens muito diversas, dirigida por cinco dos mais importantes realizadores Italianos: Luchino Visconti, Mauro Bolognini, Pier Paolo Pasolini, Franco Rossi e Vittorio De Sica. Como geralmente acontece com encomendas deste tipo, A magia da mulher (Le streghe) foi uma tremenda decepção, em que apenas o episódio de Pasolini, La terra vista dalla luna, com Totó e Ninetto Davoli, se destacava, pela sua colorida invenção surrealizante.

No entanto, a partir de então, Silvana Mangano alcançaria um enorme prestigio, passando a ser indispensável ás obras de dois grandes realizadores, já desaparecidos, Pasolini e Visconti, que finalmente saberiam compreender e usar plenamente a sua beleza, o seu talento, e, mais do que tudo, a sua estranha presença. Dirigida por Pasoloni, ela seria uma Jocasta, primitiva e misteriosa, em Edipo Re (67), um filme multo belo, incompreensivelmente ainda inédito em Portugal; uma reprimida mãe de família, da alta burguesia, que, tocada pelo anjo desencadeador (Terence Stamp), desabrocha numa maravilhosa ninfomaníaca, em Teorema (68); e, numa breve aparição, a Virgem Maria, no esplendor da visão final de Giotto, em Decamerone (71)


Jeanne Moreau e Silvana Mangano brincando durante as filmagens de Cinco Mulheres 
Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Dirigida por Visconti, vestida com suprema elegância por Piero Tosi, marcaria três figuras inesquecíveis de mulher distante e requintada: a mãe, anos 10, do jovem Tadzio, em Morte em Veneza (Morte a Venezia, 70); Cosima Lizt, a enigmática companheira de Richard Wagner, em  Luís da Baviera (Ludwig II, 72); a snob riquíssima e inquieta mantedora do gigolo Helmut Berger, em Violência e paixão (Gruppo  dl  famiglia in un interno, 74), a sua última aparição no cinema, até  à data. Semi-retirada desde há seis anos, apesar de apenas em Abril próximo completar 50 anos, semi-separada de Dino De Laurentiis, actualmente um dos mais poderosos produtores do cinema americano, a trajectória de Silvana Mangano, de mondadeira, explosiva força da natureza dos arrozais neo-realistas, a delicadíssima e serena aristocrata, movendo-se entre rendas e suspiros, é uma das mais fascinantes de quantas o cinema tem para nos oferecer.

Vítor Pavão  dos Santos
Texto e Titulos
Jornal Se7e
21-02-80

Vera Miles, Barbara Bel Geddes, Carla Gravina, Silvana Mangano e Jeanne Moreau em Cinco 
Mulheres Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Silvana Mangano (1930-1989). Jugoslávia. 1958. Gjon Mili.


(Fotos LIFE Archive, excepto a primeira)


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"A maneira melhor de ser fadista"

Alfredo Marceneiro

por
Vítor Pavão dos Santos


As luzes apagam-se para o fado.


«a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»
 Alfredo Marceneiro



Coisas boas em jornais

«O cenário é uma taberna, ao fundo uma barregã» — dizia ele, naquela sua voz rouca, para começar a criar clima. Depois, dava uns passos, mãos nos bolsos, quase a dançar, e ia tomando cena, até que parava, deitava a cabeça para trás, fazendo sobressair a melena sempre muito negra, e começava a cantar.


Falamos de Fado: Alfredo Marceneiro "Antologia"

Acontecia isto noite alta, em alguma casa de fados já fechada ao público, quando o Alfredo Marceneiro resolvia revelar, a uma meia dúzia de eleitos, como é que se cantava o fado, o fado que, em grande parte, foi ele quem o inventou. Algumas vezes tive o privilégio de estar entre esses eleitos, ora no «Mesquita», ora no «Machado», ora no «Faia» ou na «Viela», nem sei já quando foi a primeira vez. Mas o que sei, isso sim, é que era uma experiência tremenda, arrebatadora, que valia como uma  verdadeira iniciação.
É que, através daquela voz velada, um tanto ondulante, sem efeitos, que apenas marcava cada palavra para construir um ambiente musical, transmitia-se muito mais do que cantigas, ou fados, transmitia-se toda uma moral e um conceito de vida, transmitia-se oralmente toda uma cultura.
Se as situações cantadas, em palavras por vezes difíceis, iam do melodrama ao jocoso, tanto fazia, pois tinham sempre, naquela voz, uma força a que ninguém podia ficar indiferente.



O leilão da casa da Mariquinhas - Linhares Barbosa / Popular - Fado Mouraria


Alfredo Marceneiro, toda a vida

É que os poetas que ele cantava, os seus poetas, também tinham vindo quase todos do proletariado urbano, por isso sentiam e sofriam aquelas palavras, como ele as sentia e sofria.
Poetas do fado tão esquecidos, mas que não podem deixar de ser lembrados, a começar por Henrique Rego, tipógrafo, seu grande amigo e poeta preferido, que para o Marceneiro escreveu a história da «impúdica bacante» que descobre, assombrada, que o jovem pintor que tenta seduzir é, afinal, o seu filho. E quando o Marceneiro nos contava que «a turba comovida / pasma ante aquele quadro original, estranho», sentia-se «a piedade e o medo», tal qual o mesmo arrepio da tragédia, na revelação de que Edipo é filho de Jocasta. Enfim, a grande tradição da cultura.


Casa de Fado na Rua da Amendoeira em Lisboa, por volta de 1900. Foto da net.


Aos desmandos da cidade liberal e corruptora, opunha tipicamente o mesmo Henrique Rego o valor puro da vida campestre, simbolizados naquela «Menina, lá do mirante / toda vestida de cassa», ou então concentrava amor e raiva transbordantes num objecto: «O lenço que me ofertaste / tinha um coração no meio / quando ao nosso amor faltaste / eu fui-me ao lenço e rasguei-o»; ou era capaz de atingir o quase puro folclore, em «Toma lá colchetes de oiro». E tudo isto o Marceneiro fazia chegar até nós, intacto, no poder da sua voz tão vibrante, tão estranhamente entrecurtada.
E depois havia também o poeta Linhares Barbosa, grande malabarista das palavras, ora contando a história da perdição citadina da filha de um moleiro, em «Eu lembro-me de ti, chamavas-te Saudade», ora dando-nos um calafrio no Natal do criminoso. «Batem - me à porta, quem é? / ninguém responde... que medo...»
Muitos foram os poetas que escreveram para o Marceneiro e ele mantinha vivos, mas é de lembrar ainda Gabriel de Oliveira, o Gabriel Marujo, que Fernando Pessoa e António Botto «ousaram» incluir numa antologia poética, todo cheio de misticismo, velado e misterioso, na Senhora do Monte, ou mais colorido no célebre Há festa na Mouraria.


Fado amador no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Por volta de 1930. Foto Arquivo Fotográfico da CML.


E isto sem esquecer, claro, o verso fácil, sorridente e um tanto revisteiro de Silva Tavares, contrariando as regras da moral estabelecida, ao cantar as alegrias da Casa da Mariquinhas, que teve tal sucesso que até mereceu continuação, no Leilão da Mariquinhas, de Linhares Barbosa, e cuja fama tanto perdurou que Alberto Janes, cheio de graça e invenção, muitos anos depois, a transformou em casa de penhores e em símbolo de uma época e de uma moral fadista que findava, em Vou dar de beber à dor, que, na voz de Amália, foi aquele êxito louco que se sabe.
Mas não se pense que Alfredo Marceneiro era apenas um grande intérprete, um contador admirável de histórias, pois ele era também e sobretudo um músico excelente, inventando para cada fado a melodia certa, tão certa que, por vezes, nem se dava por ela, e algumas são de uma beleza incrível. E reparar.
E é bem significativo que Amália Rodrigues, num dos seus discos melhores e mais elaborados (para mim o melhor), onde pela primeira vez aparecem as músicas de Alain Oulman, tenha escolhido, para cantar os seus próprios versos, célebre Estranha forma de vida, uma  velha melodia do Marceneiro.
— «Aquilo nem é um fado, é uma valsazinha que eu fiz há uma  data de anos e se lembraram agora de ir buscar» — ouvi eu dizer ao Alfredo Marceneiro, nessa altura, sempre irónico mas não sem uma ponta de orgulho.


Alfredo Marceneiro cantando na Adega Machado no Bairro Alto em 1961, acompanhado à viola por Armando Machado? e noticia de uma sessão de fados com Alfredo Marceneiro e Vicente da Câmara, acompanhados pela guitarra de Carlos Paredes, para os bailarinos Margot Fonteyn e Nureyev, no Grémio Literário em 1968. Foto da net.


Para cantar o fado até à morte

E já agora, sempre digo que ouvir o Alfredo Marceneiro conversar, teorizar sobre o fado, era quase tão bom como ouvi-lo cantar. E as coisas que se aprendiam; era toda a história do fado, que com a sua história afinal se confunde.
Nessas recordações, nunca saudosistas, sempre incisivas e críticas, muito críticas mesmo, passava-se pelo tempo em que o fado era cantado em cafés e acompanhado ao piano, «como devia de ser, que a guitarra só se usava para cantar o fado na rua, depois é que tudo isso se mudou»; passava-se pelo tempo em que cantar o fado não era profissão, e cada cantador — os cultivadores, como então se lhes chamava — juntava orgulhosamente ao seu nome a indicação do seu ofício honrado, tal como ele tinha sido, durante muitos anos, fadista sem deixar de ser marceneiro, e dos bons, operário que até entrara na greve do Alfeite. Lá se diz, na sua célebre marcha, que vale como um programa de vida: «Sou Marceneiro sim, porque trabalho / Marceneiro do fado e no ofício.»
E falava-se também na decisiva Festa do Fado, organizada por António Botto, no São Luiz, em 1924, primeiro passo para a dignificação dos fadistas, que depois se puderam profissionalizar, como «artistas de variedades», classificação que nunca lhes agradou lá muito.


Anúncios da presença de Alfredo Marceneiro em Casas Típicas em 1946 e 1956.

E era inevitável virem á baila aqueles sítios míticos, onde o fado se foi forjando: o «Perna de Pau», o «Ferro de Engomar». Ainda fora de portas, lá para as hortas arrabaldinas; o «Solar da Alegria», o «Luso da Avenida», o «Salão Artístico», da grande guitarra Armandinho, já no Parque Mayer; o «Café Mondego», o «Retiro da Severa», onde um dia se estreou a Amália, sem esquecer o «Solar do Marceneiro», ali à Calçada de Carriche, de vida breve, pois cantar a horas certas e sempre no mesmo sítio, nunca foi do seu agrado, nem mesmo em casa própria.
Foi tudo isto há muitos anos. Mas quanto a essas verdadeiras lições de cultura popular que o Alfredo Marceneiro dava, quando estava para aí voltado, não acredito que quem as tenha ouvido, possa esquecê-las.
Depois dessas noites mágicas, quando a madrugada já ameaçava, e todos se iam deitar, ele ajeitava o lenço de seda ao pescoço, e lá entrava ainda por aquela réstea de noite, sempre fugidio, indo geralmente até ao Ritz  Club,  para fazer  barba. Talvez para começar bem o dia. Talvez para acabar bem a noite. É que isto de tempo certo e horas marcadas não era com o Marceneiro. O seu tempo construía-o ele, como muito bem entendia. Tal como a vida. Tal como o fado.

Vítor Pavão dos Santos
O Jornal 8-7-1982



Anuncio do Solar do Marceneiro, no final da década de 1940, Solar este que pertencia a Alfredo Marceneiro e outro anuncio em 1950 de um restaurante naquela zona, com direção artística de Alfredo Marceneiro, talvez fosse o mesmo?.



Alfredo Marceneiro canta o Bêbado Pintor, Letra de Henrique Rego e Música de Alfredo Marceneiro - Alexandrino da Laranjeira: Para a Manuela de Freitas.



Morreu de cansaço e tristeza
por
Fernando Dacosta

O mundo exterior foi-se-lhe fechando devagar. Quando o percebeu sentiu-se cansado e triste. Sentou-se em casa, casa de páteo aldeão, deixou de cantar, de sorrir e de comer.

Aos 91 anos recusou, ele que sempre a amara, a vida. Não sofria de nada: corpo, coração, pulmões, rins, estavam bons. Apenas a vista se afundava. Morreu no amanhecer do último sábado, de cansaço, de tristeza — de velhice. Desinteressou-se, revelam os amigos, de continuar. A sua velha cidade transformara-se. As pessoas, as casas, as noites, os sentimentos tornaram-se outros — e tornaram-no alheio. A ele, fadista de génio e de orgulho, símbolo de um povo húmido e triste e ensombrado.


Alfredo Marceneiro e Herminia Silva em 1970. Foto copiada de jornal.


«Começou a entristecer, a entristecer (palavras de Mascarenhas Barreto) até que... De há oito anos para cá a vida nocturna de Lisboa, que era a sua, alterou-se radicalmente. Os velhos motoristas de praça, os velhos porteiros e empregados de mesa foram substituídos por gente nova que não o conhecia. Isso magoava-o muito. Por vezes não o deixavam entrar nas casas de fados, não o acarinhavam, e ele sempre foi tratado nas palminhas das mãos. Os taxistas paravam quando o viam e levavam-no muitas vezes de borla, toda a gente o chamava pelo nome, lhe oferecia a mesa, o ajudava, quando aparecia tudo mudava à sua volta, ofereciam-lhe dinheiro. Às vezes cantava, mas só cantava quando lhe apetecia. Recusou contratos, recusou filmes, recusou ofertas valiosas. Eu ia buscá-lo muitas vezes com outros amigos. Deixou de trabalhar muito cedo devido a um acidente numa mão. Vivia de uma reforma, com modéstia, mas com dignidade, passava os dias a descansar e só saía à noite pois tinha medo dos automóveis. O trânsito aterrorizava-o!»


A Viela, Letra de Guilherme Pereira da Rosa e Música Alfredo Marceneiro (Fado Cravo)


Fado feito de pinho...

Alfredo Marceneiro é uma memória de Lisboa, como as fragatas do rio, os bicos de gás, o cacau da Ribeira, onde várias vezes o vimos no raiar da manhã, memória terna e secreta feita, há muito, imaginário colectivo.
Nele, o fado é  um edifício sem tempo, um  Jerónimos  de afectividade, um vinho de penares, um altar de exorcismos. «A culpa foi do Júlio Dantas ao escrever «A Severa». O êxito foi tanto que o fado começou a entrar (evoca-nos Luís Oliveira Guimarães) nos salões e a levar os fidalgos às casas típicas. Ele é que arranjou essa trapalhada... Mais tarde o turismo tomou conta de tudo. Ora o Marceneiro ficou como era, só cantando quando queria. Ele dizia-me: a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»


Nesta foto estão três do nossos maiores fadistas de sempre: Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, (mãe de Carlos do Carmo) e Maria Teresa de Noronha, na casa de fados O Faia. Foto da net, sem data mas com a indicação: nos anos 60.


«Foram sectários com ele»

Envolto no seu universo, o velho fadista vagabundeou, livre e sábio, pelos anos, pela música, pela amizade, pelo orgulho de se saber resistente.
«Sim, resistente. Era um cantor da resistência (sublinha-nos Luís Cília) como um Gardel. Nunca se dobrou àquilo que o fascismo fez do fado. O Marceneiro era, em termos culturais, um cantor revolucionário porque verdadeiro, de raiz. Podia ter sido um tipo riquíssimo mas recusou, não cedeu. E era-lhe muito fácil entrar no sistema! Só tenho pena que não tenham sido os progressistas a pôr-lhe a medalha de Lisboa em vez do Abecassis. Mas os progressistas foram um bocado sectários com ele. Ele que tinha uma coisa cada vez mais rara: a autenticidade. Comovo-me muito ao ouvi-lo... o Ferré, quando cá esteve, gostou imenso de o ouvir, ficou muito impressionado. Que pena não ter sido aproveitado de outra maneira, mas os mentores da nossa cultura, que se calhar até têm muito pouca cultura, não se aperceberam do seu valor cultural!»


Alfredo Marceneiro, Amália e o marido em foto sem data copiada de jornal.


O fado também é protesto

Em entrevista antiga, Ti Alfredo desabafava: «Cá para mim o fado hoje não passa de uma fonte de receita turística... fado hoje é para inglês ouvir. Fado, canção do povo e para o povo? Não me façam rir! Onde está o povo que hoje em dia pode dar 500 escudos para ir às casas típicas?» O fado «também é uma canção de protesto, ou de denúncia!»
Singularíssimo o seu funeral foi caminhado ao som de guitarras, de vozes de fadistas, de palmas e de sinos. Pelas ruas fora, numa tarde sufocada de domingo e de emoção, até ao cemitério, amável, dos Prazeres.
Amália entoaria com outros «A Casa da Mariquinhas». «O fado — disse — morreu hoje». «Com lídima expressão e voz sentida/ Hei-de cumprir no mundo a minha sorte/ Alfredo Marceneiro toda a vida/ Para cantar o fado até à morte.»
Até à morte.

Fernando Dacosta
O Jornal 8-7-1982


Letra de Armando Neves e Música de Alfredo Marceneiro (Fado CUF).


"O MARCENEIRO"


Com lídima expressão e voz sentida
Hei-de cumprir no Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro toda a vida
Para cantar o fado até à morte.


Orgulho-me de ser em toda a parte
Português e fadista verdadeiro,
Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a gente o Marceneiro.


Este apelido em mim, que pouco valho,
Da minha honestidade é forte indício.
Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,
Marceneiro no fado e no ofício.


Ao fado consagrei a vida inteira
E há muito, por direito de conquista.
Sou fadista, mas à minha maneira,
À maneira melhor de ser fadista.


E se alguém duvidar crave uma espada
Sem dó numa guitarra para crer,
A alma da guitarra mutilada
Dentro da minha alma há-de gemer


sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Hermínia Silva e o Fado


"Anda Pacheco"
(Frase com que Hermínia iniciava alguns fados, dirigida ao seu guitarrista António Pacheco)

Coisas boas em Jornais


"Desde que me entendo que gostei de cantar. E o fado, cantava­‑o a todo o mo­mento, e por toda a parte: na rua, em casa, na escola, desde que aos seis anos comecei a frequentar a escola, que ficava ali na Rua da Madalena, mesmo em frente da igreja.
Ora lá na escola, por vezes, havia umas festas nas quais tomavam parte algumas meninas que sabiam cantar. Eu deixava­‑me ficar muito caladinha quanto aos meus «méritos», pois tinha vergonha de os reve­lar. Até que um dia, quando se preparava uma dessas festas, uma das minhas colegas dirigiu-se à mestra e, apontando-me, revelou:
— Minha Senhora, esta menina canta muito bem!
Claro está que a professora quis, imediatamente, avaliar as minhas possibilidades e mandou-me cantar uma música que eu soubesse bem. E eu «desatei» logo a cantar um fado, daqueles bem fadistas.
A professora ao ouvir-me cantar o fado levou as mãos à cabeça e, fazendo um gesto negativo, declarou:
—  Ai. Esta menina! Não… Fado não!
Depois, talvez por ver a decepção estampada na minha cara, incitou-me a cantar outra «moda» que eu soubesse. Cantei, ou melhor, comecei a cantar uma canção que sabia também, mas o pior é que mesmo a canção, na forma como eu cantava e na minha voz, soava como fado. E, de novo, a senhora me interrompeu, repetindo, um tanto ou quanto escandalizada:
—  Não, fado não… Esta menina não pode cantar na festa! As meninas não cantam fado!
Escusado será dizer que fiquei com uma grande «pinha», pois cantar já era para mim uma paixão.
E começava também já a despontar em mim o desejo de representar. E chorei que me fartei.
Mas a vida continuou e eu sempre cada vez mais possuída por aquela verdadeira paixão que era para mim o cantar. E sempre que podia lá estava eu de «boca aberta» quer fosse em casa, quer fosse nas casas de pessoas amigas que me convidavam, de vez em quando, a cantar um «fadinho», quer fosse em festas particulares, onde me chamavam de propósito para eu «botar» cantiga, porque achavam que eu tinha «jeitinho».E eu ia sempre cantando e sempre a pensar no Teatro, pois nesse tempo não havia casas típicas e eu para as tabernas não ia… claro que não ia. (...) Chegou a altura em que tive necessidade de ir aprender um ofício e empreguei­‑me como aprendiza de modista. No en­tanto, o meu pensamento estava sem­pre no Teatro e no Fado. E continuei a cantar, quer pelos bailaricos, quer em festas particulares, para as quais estava sempre a ser chamada. E eu ia sempre, pois o que eu queria era cantar…"
(Palavras de  Hermínia Silva em lisboanoguiness.blogs.sapo.pt) Ler Mais Aqui



Hermínia Silva canta "Sou Miúda" da autoria de Luís Ribeiro e João Fernandes.
Gravação de 1958. Carregado por TiMariaBenta em 19/12/2009