Mostrar mensagens com a etiqueta Chianca de Garcia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Chianca de Garcia. Mostrar todas as mensagens

domingo, 27 de janeiro de 2013

COTTINELLI TELMO - A criação do mundo


Texto de João Paulo Martins, Arq.
Revista Arquitectura & Construção
Setembro 2004


Coisas boas em jornais

Foto do Arquitecto Cottinelli Telmo. 1945? Autor desconhecido e Plano geral da "Exposição do Mundo 
Português", autoria de Cottinelli Telmo (arquitecto-chefe), desenho de Eduardo Anahory. Lisboa. 1940.
Fotos encontradas em jovensdorestelo.blogspot e www.fmnf.pt 

Entre um sereno classicismo e uma discreta modernidade, o espartilho formal do Português Suave e o vocabulário possível de transgressão, a BD, o cinema e a arquitectura, Cottinelli Telmo, figura tutelar da Exposição do Mundo Português, rubricou, exuberante e eclético, um dos percursos mais singulares na criação portuguesa do século XX. 

Exposição do Mundo Português. Praça do Império. Lisboa. 1940.
Foto copiada da Revista Arquitectura & Construção - Setembro 2004

Quando o jovem José Ângelo Cottinelli Telmo entrou para a Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1915, para frequentar o curso de Arquitectura, deparou-se com uma instituição retrógrada e passadista, bafienta até. Bem pelo contrário, no Chiado, mesmo ali ao lado, a modernidade lisboeta começava a tornar-se visível. E Cottinelli respondia a todas as chamadas. Esteve no núcleo fundador da revista Sphinx (1917), destinada a divulgar os jovens talentos. Nas festas escolares das Belas-Artes foi actor e compositor musical. Em 1918, dançou ao lado de Almada Negreiros, no começo da história do bailado português. Ao mesmo tempo era gráfico, cenógrafo e figurante ocasional para a Lusitania Film (1918-19), uma empresa que se propunha produzir, distribuir e exibir cinema em Portugal. O verdadeiro reconhecimento público chegou com as "Aventuras inacreditáveis, e com razão, do Pirilau que vendia balões", uma banda desenhada da sua autoria publicada em 1920 no magazine ABC . O sucesso foi tal que a partir desse momento Cottinelli adoptou o pseudónimo de Tio Pirilau e criou o ABCzinho, uma nova revista infantil que, sob a sua direcção (1921-29), alcançou uma popularidade inédita no país.

Maqueta  e  entrada (Portas da Fundação) da Exposição do Mundo Português. Lisboa. 1940.
Fotos encontradas em www2.ufp.pt e Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais. 

Já nos tempos do Liceu Pedro Nunes (1907-14) então conhecido pela sua pedagogia inovadora Cottinelli revelara os seus múltiplos talentos. Filho de um casal de músicos, sempre vivera junto dos palcos, do mundo do espectáculo. Os seus amigos por essa data eram os Leitão de Barros, os Roque Gameiro, Jaime Martins Barata, Luís Cristino da Silva, Fernanda de Castro, António Ferro, todos futuros protagonistas da cultura portuguesa. Os patricarcas figuras tutelares das artes de oitocentos, como Roque Gameiro, Marques Leitão, Ribeiro Cristino acompanhavam, atentos, o grupo promissor. Entretanto, concluído o curso das Belas-Artes (1920), Cottinelli iniciava a sua carreira de arquitecto. Venceu o concurso para o Pavilhão de Honra de Portugal na Exposição Internacional do Rio de Janeiro (1921-22) associado a Carlos Ramos e Luís Cunha, com um projecto de orientação revivalista. Quando ingressou na Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses (CP), em 1923, foi encarregado de desenvolver o projecto do edifício de passageiros da Estação de Coimbra-Cidade (1923-30, com L. Cunha), a partir de estudos anteriores, de outro autor. A sua formação académica fica bem visível no resultado final. Mais inovador seria o Bairro Camões, no Entroncamento (1923-28, com L. Cunha), uma das primeiras concretizações portuguesas do modelo europeu da "cidade-jardim". A escola do bairro foi o mais interessante destes seus primeiros trabalhos, encadeando os espaços de um modo surpreendente, manipulando a construção, a luz, os ritmos gráficos, para potenciar o sentido lúdico do ambiente. No projecto do Sanatório da Covilhã (1927), ainda por encomenda da CP, Cottinelli deu provas da sua capacidade para abordar um programa funcional complexo e, sobretudo, de uma particular sensibilidade para integrar na paisagem um edifício de tão grandes dimensões.

 Exposição do Mundo Português, inauguração (23-06-40). Lisboa. 1940.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais.


 Exposição do Mundo Português. Lisboa. 1940.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais

Tal como os seus companheiros de geração, Cottinelli despertava entretanto para a arquitectura modernista de circulação internacional. Visitou a Exposition des Arts Décoratifs, 1925, em Paris, para conhecer na fonte os modelos do Art Deco. Uma das suas experiências pioneiras foi a Ourivesaria Barbosa & Esteves, na Rua da Prata, em Lisboa. Concebida em 1927, sobrevive ainda, preservada com um desvelo invulgar que merece aplauso. A Estação Fluvial do Sul e Sueste (1928-32), junto à Praça do Comércio, foi o seu primeiro grande projecto modernista. Ousando afrontar sem complexos a obra pombalina por excelência, propunha uma linguagem despojada, de geometrias elementares. No interior, a rigorosa modulação da estrutura em betão armado determinava os ritmos e os motivos fundamentais de animação do espaço, amplo e unificado, como não havia outro em estações portuguesas. O edifício da estação do Carregado (1930-31) transportava esta experiência para os arredores.

 Exposição do Mundo Português, inauguração (23-06-40). Lisboa. 1940.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais.

Decidiu realizar o filme A Canção de Lisboa (1933) como um desafio entre amigos e deixou-nos a matriz das populares "comédias à portuguesa". Depois dessa aventura, o ministro Duarte Pacheco escolhia-o para conduzir o plano de construções prisionais do Ministério das Obras Públicas (Alcoentre, Alijó, Vila Real, Celorico da Beira, Oliveira de Azeméis). Ao serviço da CP, Cottinelli Telmo afirmava-se como arquitecto modernista. De norte a sul, deixou marcas de renovação na paisagem ferroviária do país: nos projectos para o edifício de passageiros da estação de Vila Real de Santo António (1936-45), nas torres de sinalização de Ermesinde (1935-37), Pinhal Novo (1936-38) e Campolide (1940) ou numa série de equipamentos de apoio aos empregados dos caminhos de ferro (os chamados armazéns de víveres) cujos exemplos mais notáveis foram edi-ficados no Cacém (1937-41) e no Entroncamento (1938-39). Foi também neste período que concebeu, para Lisboa, as moradias Pinto Osório (1935-36) e Valadas Fernandes (1937) e um pequeno prédio de rendimento, encomendado por Leitão de Barros, que ficou conhecido como a Casa dos Artistas. Na sua discreta modernidade e classicismo sereno, na sábia manipulação dos recursos limitados que empregam, esses edifícios são resultado de uma pesquisa pessoal e testemunham a maturidade do seu autor. Cottinelli buscava a expressão mais adequada para a "arquitectura dos nossos dias", de acordo com um conjunto de princípios que publicou em 1934 e ao qual se manteria fiel até ao final da vida. Tratava-se, no fundo, de realizar uma nova síntese, a partir de termos que podiam parecer opostos, mas que julgava possível indispensável conciliar. Defendia "a renúncia a todos os postiços, na busca da verdade nua e crua", mas propunha-se ultrapassar os volumes paralelepipédicos, de coberturas planas e aberturas secamente recortadas, sem molduras, dos modelos internacionais. Era necessário, afirmava, "limar as arestas, amenizar as grandes superfícies lisas dando-lhes um claro-escuro sóbrio e lógico". Recusava a máxima funcionalista que entendia os edifícios como máquinas e a arquitectura em total subordinação à tecnologia, em sinal de progresso. 

 Edifícios de Passageiros na Estação Ferroviária de Coimbra (C. 1928-1931) e do Carregado, (1930-1931).
Torres de Sinalização e Manobra para a Estação de Ermesinde (1935-1937) e Pinhal Novo (1936-1938).
Fotos copiadas da Revista Arquitectura & Construção - Setembro 2004

Ao mesmo tempo, sabia evitar os limites estreitos impostos à cultura e às artes portuguesas pelas correntes intelectuais mais conservadoras, que impediam qualquer renovação. Pouco tempo depois, Cottinelli era nomeado arquitecto-chefe da Exposição do Mundo Português que em 1940 se realizou em Lisboa, frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Era um cargo feito à sua medida. Ao talento do arquitecto podia finalmente juntar a sua particular apetência pelo espectáculo, pela festa, a sua habilidade e entusiasmo na coordenação de vastas equipas multidisciplinares. Havia que conceber tudo, a todas as escalas. Reconverter a cidade existente e fazer o plano geral do recinto, a Praça do Império e a sua fonte luminosa, os pavilhões da exposição. E todas as tarefas incomuns que requeriam uma criatividade invulgar: as portas de entrada, as pontes de acesso, os interiores encenados, uma quantidade infindável de complementos e acessórios. Contando com a colaboração dos melhores valores da sua geração arquitectos, pintores, escultores, decoradores e artistas gráficos - Cottinelli alcançou aí a consagração definitiva. Conseguiu estabelecer um compromisso entre a retórica convencional reclamada para a ocasião e um gosto modernizante; deu corpo a uma encenação oficial do regime que se tornou referência fundamental da imagem do Estado Novo.

 Torres de Sinalização e Manobra para a Estação de Campolide (1940); Armazém de Víveres para a Estação do 
Entroncamento (1938-1939); Estação de Vila Real de Santo António (1936-1945); Apeadeiro da Curia (1943-1944).
Fotos copiadas da Revista Arquitectura & Construção - Setembro 2004

A partir de então, o ministro Duarte Pacheco confirma-o como seu principal colaborador e encarrega-o de algumas das mais emblemáticas obras oficiais do momento: os planos para a zona de Belém, para a Urbanização do Santuário de Fátima e para a Cidade Universitária de Coimbra. O vazio de poder que se seguiu à morte de Pacheco, em 1943, e a carga retórica e monumentalista exigida nessas obras haviam de conduzir Cottinelli a um crescente desencanto. Procurou ainda retomar aquilo que de mais rico existia na sua pesquisa anterior, desenvolvendo-a com novos dados. Na CP, procedeu à reelaboração de referências ruralistas recriando uma ligação ao mundo idealizado das "aldeias portuguesas" na Colónia de Férias da Praia das Maçãs (1942-43) e no edifício de passageiros do apeadeiro da Curia (1943-44). Na sua derradeira obra, a sede da Standard Eléctrica, em Lisboa (1944-48), continuava a defender a síntese entre as conquistas da modernidade e as convenções da linguagem clássica. Apesar da maturidade desses trabalhos e dos níveis de inquietação que revelam, das pistas que deixavam por resolver Cottinelli Telmo não ia já a tempo de se libertar do estigma de "arquitecto do regime". Essa seria, em grande medida, a marca dos seus últimos anos de vida e da futura leitura crítica da sua obra.

Ourivesaria Barbosa & Esteves. Lisboa (1927-1932); Casa Pinto 
Osório. Lisboa (1935-1936); Avenida da República. 1947-1951).
Fotos copiadas da Revista Arquitectura & Construção - Setembro 2004

Cottinelli foi presidente do Sindicato Nacional dos Arquitectos, entre 1945 e 1948. Nessa condição assegurou a realização do I Congresso Nacional da Arquitectura (Maio de 1948). Aí ficaria expresso o descontentamento da classe face ao regime, aí se daria início a um novo ciclo na arquitectura portuguesa. O próprio Cottinelli reivindicou liberdade para uma concepção plenamente contemporânea, rejeitando a feição nacionalista das fórmulas impostas oficialmente. E, repetindo os apelos que outros haviam formulado, reclamou a reorganização urgente do ensino da arquitectura e a abertura da encomenda oficial aos profissionais mais jovens e ávidos de mudança. Essa seria a sua última intervenção pública antes de uma morte prematura, aos 50 anos. Era também, de certo modo, o epílogo da sua carreira. Usando o prestígio acumulado para viabilizar o confronto, procurando, uma vez mais, conciliar valores que a realidade demonstrava serem incompatíveis, apostando tudo numa delicada busca de equilíbrios, certamente incompreendido, Cottinelli Telmo acabaria por perder todos os apoios para se encontrar irremediavelmente só. Faleceu em 18 Setembro de 1948, na sequência de um acidente, brutal e dramático, ocorrido no Guincho. Como então escreveu Norberto de Araújo no Diário de Lisboa, com ele desaparecia o "poder criador de uma geração", não era "já possível outro Cottinelli no nosso tempo".

Texto de João Paulo Martins, Arq.
Revista Arquitectura & Construção
Setembro 2004

Exposição do Mundo Português. Pavilhão dos Portos e dos Caminhos de Ferro. Alçado do Lado da 
Avenida do Parque. Esc.: 1:100. Desenho n.º 5. Arquitecto Collinelli Telmo. 3 de Abril de 1940. 
Arquivo Histórico da CP des. n.º 12016. CNDF/FMNF - Foto de www.fmnf.pt


EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS. LISBOA. 1940.
Texto da Revista Arquitectura & Construção

Formalmente inaugurada a 23 de Junho de 1940, a Exposição do Mundo Português foi o corolário simbólico do regime do Estado Novo. Ideologicamente, na sagração do império, utopia cosmogónica industriada por António Ferro e pelas doutrinas folhetinescas do SNI, formal e arquitectonicamente na celebração de um discurso monumental que tanto colhia raízes nas cenografias fascistas de Marcello Piacentini como recusando o progresso implícito no modernismo tout court cimentava já o advento de uma "gramática estilística unitária" que cedo redundaria nos ditames anacrónicos do Português Suave. Cottinelli Telmo, visionário e mestre de obra, contaria para tanto com o contributo de alguns dos mais insignes criadores da época, de Almada Negreiros a Porfírio Pardal Monteiro. Repartida em três núcleos charneira as alas histórica, colonial e a etnográfica , a mostra converteu Belém, nave de descobertas tendo à proa o engessado padrão de Leopoldo de Almeida, num sedutor cenário de peregrinação para portugueses oriundos dos mais recônditos rincões do império. A entrada custava vinte e cinco tostões. JMFS

Exposição do Mundo Português. Lisboa. 1940.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais

 Exposição do Mundo Português. Lisboa. 1940. Construção do Padrão.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Horácio Novais


PIONEIRO DA BD
Texto da Revista Arquitectura & Construção

 [...] Cottinelli Telmo orientou a primeira revista infantil cem por cento portuguesa [...] Nasceu no número espécime da revista ABC, estreia do jovem arquitecto na literatura infantil [...], assinada pelo pseudónimo «Tio Pirilau», com legendas didascálicas, algumas onomatopeias, sinais icónicos e raros balões. Tinha por nome: «Aventuras Inacreditáveis (e com razão) do 'Pirilau' que Vendia Balões». O entrecho, tão gongórico como o título, notabiliza-se pelo absurdo precioso e pela inovadora representação gráfica, próxima nalguns aspectos dos «The Kin-der-Kids», de Lyonel Feininger. [...] Na revista ABC publicou-se uma segunda aventura de Cottinelli Telmo - «A Grande Fita Americana» - girando o enredo à volta de cowboys, índios, cavalos, estrelas de cinema, patifórios, comboios e tudo o mais [...] Foi vasta a sua colaboração para esta revista, com textos de ficção, diversões, correspondência e histórias aos quadradinhos (argumento e desenho). Encontram-se cartoons de Cottinelli Telmo no ABC a Rir e ilustrações no Diário de Lisboa, Ilustração Portuguesa, Jornal da Mulher, Domingo, Acção, Fantoches, Arquitectura, Portugal Feminino, Notícias Ilustrado, etc. [...]

O pirilau que vendia balões e outras histórias de Cottinelli Telmo - Livro que retrata a vida e obra de João Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948), um dos mais importantes arquitectos portugueses. Extremamente versátil foi escritor, ensaista, ilustrador, desenhador, cartoonista, decorador, etc…, e foi um dos principais impulsionadores do jornalismo infanto-juvenil. O livro inclui estudos sobre o autor e a reedição dos seus trabalhos dos anos 20. Dirigido por Manuel de Oliveira Ramos e José Cottinelli Telmo, foi publicado, em Lisboa, entre Outubro de 1921 e Dezembro de 1925, sendo considerado um dos mais importantes jornais infantis portugueses. Produzido totalmente por autores nacionais, contam-se entre os seus colaboradores o próprio José Cottinelli Telmo, António Cardoso Lopes, Amélia Cândida Pae da Vida, Rocha Vieira e Else Althausse. Textos e Fotos encontrados na net.


CINEMA NOVO
Texto da Revista Arquitectura & Construção

Cursava ainda arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa quando, seduzido pela sétima arte, Cottinelli Telmo encetou as primeiras colaborações com a Lusitânia-Film na produção dos filmes Malmequer e Mal de Espanha de Leitão de Barros, realizados em 1918. Tendo construído em 1932, com A.P. Richard, o estúdio da Tobis, no bairro do Lumiar, em Lisboa edifício tutelar da indústria cinematográfica em Portugal e embrião nunva concretizado de lusa Cinnecitá aí realizou, no ano seguinte, A Canção de Lisboa [...] contando com a participação de Vasco Santana, António Silva, Beatriz Costa [...], foi o primeiro filme sonoro inteiramente produzido em Portugal e tornou-se um verdadeiro modelo do humor cinematográfico português.


«Quando Chianca me falou para fazer o filme com Vasco Santana e António Silva, não tive dúvidas; ia trabalhar com alguns dos melhores amigos de toda a minha vida! Cottinelli Telmo não era meu íntimo, mas ficou, infelizmente por pouco tempo. Era um homem inteligentíssimo e duma bondade, que eu desconhecia. A Canção de Lisboa até hoje diverte pela originalidade do diálogo, a que não foram estranhos Fernando Fragoso e José Gomes Ferreira. Cottinelli foi o realizador e Chianca estava por detrás disto tudo. António Silva era meu «pai» e Vasco Santana meu «namorado». O filme foi feito com amor e sacrifício. Eu trabalhava no teatro e levantava-me às seis horas da manhã para filmar. Ganhei cinco mil escudos, que foram pagos aos soluços, mas valeu a pena. Fiquei na história como pioneira do cinema em Portugal, juntamente com alguns dos melhores cérebros que ainda pensam no meu país. Esse filme deu que falar. Foi a primeira película totalmente feita com os recursos e valores da terra.»
Beatriz Costa, no seu livro «Sem Papas na Língua»

Cartaz de A Canção de Lisboa (1933) e Cottinelli Telmo (à direita) e o operador e fotógrafo Octávio Bobone 
durante as filmagens do documentário “Máquinas e Maquinistas”, na Estação de Campolide, em Lisboa. 1945.
Foto encontradas em associazionetucatula.wordpress.com e www.fmnf.pt


SANATÓRIO DA COVILHÃ. 1928-1944
Texto da Revista Arquitectura & Construção

Projecto de remodelação. Ateliê Souto de Moura.

O Sanatório da Covilhã impressiona-nos pela escala monumental, pela expressão historicista dos alçados, mas sobretudo pela extraordinária relação que estabelece com a paisagem em seu redor. Construído para tratar os funcionários dos caminhos de ferro, foi inaugurado em 1944 (dezassete anos depois do projecto inicial) e teve uma vida útil relativamente curta. Está abandonado há já muito tempo, em avançado estado de ruína e à mercê de todos os vandalismos. O arquitecto Eduardo Souto de Moura desenvolveu o projecto que o transformaria numa "Pousada de Portugal", recuperando de modo rigoroso e sensível a expressão exterior do edifício original. As recentes mudanças na orientação da "Enatur" vieram inviabilizar a concretização desse projecto.

 Sanatório da Covilhã ou Sanatório das Penhas da Saúde. Inaugurado em 1944.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Mário Novais

  Sanatório da Covilhã ou Sanatório das Penhas da Saúde. Inaugurado em 1944.
Fotos da Fundação Gulbenkian. Flick. Autoria Estúdios Mário Novais


ESTAÇÃO FLUVIAL DO TERREIRO DO PAÇO. 1928-1932.
Texto da Revista Arquitectura & Construção

Estação Fluvial de Sul e Sueste. 2011. Bruno Almeida.
Foto encontrada em wikipedia

Projecto de remodelação. Ateliê Daciano da Costa. Em curso.

Quando foi projectada, em 1928, a Estação Fluvial do Terreiro do Paço funcionava como ligação às linhas ferroviárias do Sul do país que partiam do Barreiro. Hoje tem um uso muito diferente: é um nó fundamental na rede de transportes públicos entre Lisboa e as zonas densamente habitadas da margem sul do Tejo. Com a construção da nova linha do Metropolitano será possível conferir-lhe melhores condições de conforto e de eficiência. O edifício existente será ampliado e transformado com projecto do ateliê Daciano da Costa, criando-se um interface de ligação entre as carreiras de barcos e a estação do Metro. O átrio actual será recuperado, criando-se, a par dele, novos espaços de entrada e saída. O cais e as diversas salas de espera serão protegidos por uma extensa cobertura em betão, horizontal e elegante.

Maqueta  e  desenho do projecto de remodelação.
Foto copiada da Revista Arquitectura & Construção


STANDARD ELÉCTRICA. LISBOA. 1945-1948.
Texto da Revista Arquitectura & Construção

Projecto de remodelação. Ateliê Gonçalo Byrne.

No final da década de 1970, a antiga sede da empresa Standard Eléctrica (projectada em 1945) foi salva da demolição por um pioneiro movimento de sensibilização da opinião pública. Desde então tem sido utilizada como equipamento cultural. Actualmente é sede da Orquestra Metropolitana de Lisboa e escola do Hot Clube. Para complementar essas funções, os arquitectos Gonçalo Byrne, Manuel Mateus e Francisco Mateus projectaram a chamada Casa da Música de Lisboa, a construir ao lado do edifício existente. Seria um paralelepípedo alongado, monolítico e opaco, contendo um auditório especialmente vocacionado para concertos, com capacidade para 450 espectadores. A entrada seria feita através de um pátio alongado, enquadrado pelos dois edifícios e aberto num dos topos à Praça das Indústrias. O projecto, realizado no ano 2000, não teve continuidade.

 Edificio da Standard Eléctrica e Maqueta do projecto de remodelação.
Foto copiada da Revista Arquitectura & Construção


BIBLIOGRAFIA

Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo de Sá e António Dias de Deus, Edições Época de Ouro / Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem, 1999 O Pirilau que vendia balões e outras histórias de Cottinelli Telmo, C. B. Pinheiro e J. P. Boléo, Bedeteca/Baleia Azul, 1999 Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 20 vols., 1ª ed., Lisboa, editorial Verbo, 1973 Houve arquitectura do Estado Novo?, Ana Vaz Milheiro, Público, 1998 Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português. 1896-1949, Félix Ribeiro, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1983.

Cottinelli Telmo (1897-1948). A Obra do Arquitecto, João Paulo Martins, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1995 (dissertação de mestrado em História da Arte) Cottinelli Telmo. Arquitecto na CP, in Gilberto Gomes (ed.), O Caminho de Ferro Revisitado. O Caminho de Ferro em Portugal de 1856 a 1996, João Paulo Martins, Lisboa, Caminhos de Ferro Portugueses, 1996 Exposições do Estado Novo. 1934-1940, Margarida Acciaiuoli, Lisboa, Livros Horizonte, 1998.


Revista Arquitectura & Construção
Setembro 2004

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Vida, paixão e arte de Chianca de Garcia


«O mais belo grande plano de mulher no cinema português é esse em 
que ela (Beatriz Costa) apareceu com as três camisas de um enxoval»
João Bénard da Costa a propósito de Aldeia da Roupa Branca

Chianca De Garcia - Entrevista (excertos). Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira. «Em 1982, Luis de Pina esteve com Chianca no Rio, onde participou, como entrevistador, (...) juntamente com Reinaldo Varela e José Manuel Coelho, filmes que a RTP transmitiu no Verão do ano passado.» M.J.D., em jornal Se7e 01-11-1983.


«Não se deve procurar no cinema nacional aquilo que existe no cinema estrangeiro, isto é, os seus problemas, os seus recursos, a sua expressão. No cinema nacional procura-se aquilo que tiver carácter e realidade nacional. Só isso interessa. O cinema português deve contar-nos histórias que o povo sinta, compreenda e viva.» (Chianca de Garcia)


Chianca de Garcia

Entrevista conduzida por José Alberto Braga

Expresso - 30 Dezembro 1977


Coisas boas em jornais

Beatriz Costa e Chianca de Garcia. Durante a rodagem do filme, O Trevo de Quatro Folhas, de que não existe cópia..
Foto encontrada em datasnahistoria.blogspot.pt


AUTOR teatral, realizador de cinema, encenador, director artístico, Chianca de Garcia foi tudo isso. Algumas peças suas foram êxito nos palcos lisboetas, nos anos 20 e 30, e alguns filmes por ele realizados tiveram igualmente sucesso. Mas ele é, sobretudo, o realizador desse grande êxito popular que se chama "A Aldeia da Roupa Branca". Um dia, em 1939, disse que ia ao Brasil por duas semanas. Nunca mais voltou. Lá ganhou maior nome, fama e prestígio.


«Chianca de Garcia: o ontem e o hoje». Copiado do Expresso 1977.

Em busca do ser humano

Expresso — Para começar, fale-nos da sua juventude. Enfim, suas primeiras memórias, curiosidades, etc.
Chianca de Garcia — Durante os meus primeiros anos fui contemporâneo de factos espantosos. O assassinato do rei D. Carlos, na rua do Arsenal, em 1908, fez-me descobrir o lado trágico da vida. Há coisas que acontecem quando algo está errado. Foi desde então, com constantes reprimendas familiares, que passei a acompanhar os acontecimentos que estavam conduzindo à queda da monarquia. Frequentei comícios. Uma vez, por acaso, vi Afonso Costa empolgar o povo com palavras de dinamite. Aquilo era bonito. Retórico. A multidão delirava. Foi quando de repente, um agente policial fulminou com dois tiros um velho operário que dava vivas à República. Fugi no meio da pancadaria geral. Também aplaudi António José de Almeida, que quinze anos mais tarde, assistiu, no camarote presidencial do Teatro Politeama, à peça "Filha de Lázaro", que eu escrevera com Norberto Lopes. Agora, era ele quem batia palmas. Mas a nós dois, no palco. No entanto, o Norberto, nunca tinha assistido a comícios, como eu. Também quero lembrar certa manhã em que indo com minha irmã para o colégio, vi o sorridente Bernardino Machado debruçar-se do seu carro, sorrir, e jogar para nós uma rosa que caiu a nossos pés. Minha irmã que era, e sempre foi, terrivelmente monarquista, calcou a rosa, e virou costas. Eu apanhei do chão as pétalas e guardei-as num livro de poesias de Gomes Leal; que levava debaixo do braço.

Ver e Amar, de 1930. O primeiro filme de Chianca de Garcia.
Foto de www.amordeperdicao.pt

EXP. — O que lia nesse tempo?
C.G. — Lia tudo. Até os anarquistas, Kropotkine e Bakunine. Mas o que eles pregavam sempre me pareceu uma utopia. Meu sentido lisboeta levava-me com mais facilidades para a leitura e releitura das "Farpas", do Eça, das pasquinadas do Fialho. Também me empolgava o jeito espectacular da prosa do Oliveira Martins. Ainda hoje gostaria de reler a fuga do Príncipe Regente, e da Rainha Louca, para o Brasil, quando da invasão francesa. Enfim os grandes desesperos.

EXP. — O que procurava, então?
C.G. — Encontrar alguém que me ensinasse o que era, afinal, o ser humano.

EXP. — E encontrou?
C.G. — Anos mais tarde. Foi quando, creio que o José Gomes Ferreira, colocou nas minhas mãos o primeiro volume, em edição francesa, das obras de Dostoiewski. Dostoiewski foi para mim a revelação. Desvendou-me nossos anjos e nossos demónios. Li tudo que dele saiu então na França. Nunca mais quis voltar a lê-lo. Eu não nascera para personagem "dostoiewskiano". Era apenas um pequeno burguês ambicioso e que não queria ficar desconhecido.

O Trevo de Quatro Folhas de 1936. Filme de Chianca de Garcia, de que não existe qualquer cópia: cena com Beatriz Costa e Procópio Ferreira. Foto Estúdios Novais e Fundação Gulbenkian.

EXP. — Que carreira pretendia, seguir nessa época?
C.G. - Não consegui sequer chegar a matricular-me em Direito, como todos os meus companheiros. Com diplomas, eles tinham lugares marcados na sociedade. Eu, sem diploma, procurava o meu destino. Aprendi a gostar de um verbo. O verbo fazer. Sim, tinha de fazer coisas para ser alguém, para não ser um anónimo, um João Ninguém. Sim, fazer coisas, inventar, criar, mas o quê?  
Parava, às vezes distante das portas do teatro, lia os cartazes, e pensava: aí está uma coisa que eu gostaria de fazer, comédias. Os personagens, bons ou maus, tinham de sair da minha cabeça...

Crítico teatral: uma vez bastou

A Rosa do Adro de 1938. Realizado no mesmo ano de Aldeia da Roupa Branca. Foto de jcabral.info e Chianca de Garcia visto por Amarelhe. 1939. Copiado de O Jornal da Educação,1983.

EXP. — E veio então o teatro?
C.G. — Não tão fácil. Mas a vida dá sempre um jeitinho. Fora do meu grupo habitual, no Martinho, tinha há muito um grande e generoso amigo, o jornalista Artur Inês, que sempre me deixava escrever crónicas nos inúmeros jornais que então fundava. Era um grande e popular jornalista, o Artur Inês. E gostava de mim. Foi quando ia iniciar a publicação de um novo jornal, creio que "O Rossio", que consegui que me escolhesse para crítico teatral. "O quê, tu crítico teatral? Porquê?". "E porque não posso?" — respondi. "Até hoje eu assisto a todas as peças, mas lá do alto das torrinhas, que é barato. Agora como critico, irei de graça e assisto às peças nas primeiras filas. É isso que eu quero!" Ele riu. O teatro, na Imprensa, não era levado muito a sério e fui ver a minha primeira peça como crítico.

EXP. — E foi crítico durante muito tempo?
C.G. — Nada disso. Só fiz uma única crítica, no jornal do Artur Inês. Fui assistir a uma comédia elegante entre damas e adultérios na alta sociedade. Ridiculizei a peça e o seu autor. No dia seguinte, ia entrando no Martinho cheio de prosopopeia, quando fui cercado por três ou quatro companheiros do autor que caíram sobre mim às bengaladas. O autor, além de monárquico, era integralista, e isso foi a minha sorte pois meus amigos republicanos que faziam da Brasileira, do Rossio, o seu quartel-general, mal souberam do caso correram para iniciar uma caçada aos adeptos de D. Duarte. O assunto saiu nos jornais. Nossos nomes foram falados, discutidos. Passei a ser conhecido. Mas prudentemente, o Artur Inês tirou-me a carteira de crítico teatral.
Passei a ser comentarista de futebol. Deveria ter então 19 anos de idade. Mas não desistiria do teatro. Pelo contrário. Poucos anos depois subia à cena, no Politeama, como já contei, a peça "Filha de Lázaro", de que era co-autor comigo o também jornalista Norberto Lopes, esse de facto doutor em Direito.

O nascimento da «Aldeia da Roupa Branca»

 Cartaz, cena do filme Aldeia da Roupa Branca e entrevista com Chianca de Garcia em 1939, aquando da estreia do filme no Tivoli. 
Fotos encontradas em cine-portugues.blogspot.pt

EXP. — E como é que você passou do teatro para o cinema?
C. G. — Eu queria tentar tudo. Desejava ser, se pudesse, um homem dos sete ofícios. Agora estava disposto a conhecer os segredos do cinema, pois já conhecera a experiência do palco. Não era doutor em nada, mas queria formar-me em espectáculos.

EXP. — Qual era, nessa época, o melhor cinema de Lisboa?
C.G. — Sem dúvida nenhuma, o Tivoli. Então pensei: "E se eu pudesse bater o Tivoli?" Como?
Bem, eu vim a saber que o teatro República, ou seria vendido, ou passava a sala exibidora de filmes, mesmo de segunda classe. Eu conhecia vagamente o seu administrador, o advogado Ricardo Jorge, filho do escritor e professor Ricardo Jorge, que foi médico de Camilo Castelo Branco quando velho e quase cego. E eu disse-lhe: "Consta-me que vai transformar o teatro em cinema, é verdade?" E ele disse-me: "Não sei. Pensamos nisso. Mas a verdade é que eu não percebo nada de cinema". Era a minha chance, e tive que mentir: "Não? Mas eu sei tudo. Chame-me para o seu lado, e nós podemos fazer do República o mais importante cinema de Lisboa". A conversa prolongou-se durante horas. A ideia foi lançada. E ninguém queria acreditar. Mas a verdade é que um ano depois, sob o nome de São Luís, nascia o mais importante cinema da capital portuguesa. Foi assim que eu passei a ser um homem da indústria cinematográfica. Mas tive que aprender tudo. Principalmente a ter o faro necessário para saber exigir e escolher grandes filmes. Passei a ser uma personalidade na Rua do Tesouro Velho. Tive que lutar com os homens da Metro e da Paramount. E vencê-los.


Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil, com Procópio Ferreira no protagonista.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

EXP. — E como surgiu o seu interesse pelo cinema português?
C.G. — O som e a palavra tinham chegado ao cinema. Eu, é claro, fui dos primeiros a querer cinema na nossa língua, mas feito em Portugal. O Leitão de Barros, o António Lopes Ribeiro, o Brum do Canto, também. Mas falar era fácil. O difícil era convencer um homem inteligente e culto que, conhecendo a Lisboa dos banqueiros e dos magnates, conseguisse convencê-los a serem úteis ao cinema nacional. Ora, esse homem estava ao meu lado. Era Ricardo Jorge. E foi com tacto e diplomacia que ele conseguiu esse milagre que foi a construção da Tóbis Portuguesa. Primeiros filmes. Indecisões. Até que um dia eu lhe disse: "Eu creio que o público está cansado de ver a toda a hora a cara da Greta Garbo e da Norma Shearer. No fundo, o que se deseja é ver e ouvir no cinema o alegre riso de um rosto feminino e lusitano.".
Mas foi preciso que eu inventasse ali mesmo uma história bem quotidiana dos costumes lisboetas, com lavadeiras, carroças de hortaliças, esperteza saloia, burricos, morangos de Sintra, coisas assim, para que nos campos do Lumiar surgisse o filme "Aldeia da Roupa Branca".


Fotos de actores do filme Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

«Só duas semanas»

EXP. — Como se explica que, logo após o sucesso da "Aldeia da Roupa Branca", viesse  para o Brasil?
C.G. — Nós, em Portugal, não éramos felizes. Hitler queria tomar conta do mundo. Na Espanha, Franco, batia-se contra os republicanos de Madrid. Foi quando o então grande empresário José Loureiro me convidou para ir com ele ao Brasil. São duas semanas só, disse eu ao querido amigo Frederico de Lima Mayer, com quem estava trabalhando no Tivoli, depois de ter saído do São Luís, com Ricardo Jorge. "Mas só duas semanas, é?" "Só, garanto". E ele: "Então vá". Pois é, já lá vão quarenta anos, ou quase. Frederico de Lima Mayer não é mais deste mundo. Nem Ricardo Jorge. Ramada Curto, que escreveu os diálogos da "Aldeia", desapareceu há muito. Enfim, vivos, bem vivos, bem conhecidos e famosos, só o José Gomes Ferreira e a nossa Beatriz. E ainda alguns amigos, como o Augusto Fraga que acompanhou todas as fases das filmagens.


Dezoito anos separam estas duas  fotos:  em cima Chianca com o actor brasileiro Fregolente (1952); em baixo, falando de teatro com os seus alunos (1970). Copiado do Expresso 1977.

EXP — Fale-nos destes seus quarenta anos brasileiros. O país correspondeu à sua expectativa?
C. G. — Sim. O que me surpreendeu desde a primeira impressão foi a sua grandeza, as suas possibilidades. O Brasil ensinou-me a ver e a compreender em grande. O Brasil é, em si mesmo, um grande espectáculo. E eu, como creio que já lhe disse, sempre tive a paixão dos grandes espectáculos. Durante anos pensei em recriar, no teatro, toda a violência do Velho Testamento. Mas no Brasil, entre outras oportunidades, tive a de contar a verídica história da velha cidade do Salvador; na Bahia, num desfile monumental comemorativo dos quatro séculos da sua fundação...

EXP. — Sim, mas antes há os famosos espectáculos do Casino da Urca, aqui no Rio.
C. G. — Certo. Durante cinco anos idealizei e dirigi, com alto luxo, espectáculos por certo mais ricos dos que eram apresentados na Broadway, em Nova Iorque. Mas quando o Governo proibiu o jogo no Brasil, levei para a Praça Tiradentes, os mesmos espectáculos que até aí tinham sido vistos apenas pelas elites. E junto do público da classe média, e francamente popular, o êxito foi até muito superior.


Cartazes dos filmes Pureza de 1940 e 24 Horas de Sonho de 1941, os dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Cartazes encontrados em www.bcc.org.br

Da fase heróica à profissional

EXP. — Procure dar-nos um resumo de suas actividades artísticas nestes 40 anos de Brasil.
C. G. — Posso dividir em duas fases. A primeira é a histórica. Grandiosidade. Nela reúno os espectáculos da Bahia, mas a inauguração de Brasília, e a encenação, no Maracanãzinho, de uma evocação do antigo Rio de Janeiro, espectáculo em que o palco ocupava metade do tamanho daquele conhecido estádio. Nunca voltou a fazer-se nada igual. São três momentos que marcaram para sempre a minha vida. Ou o meu estilo. Como tentar prová-lo, não sei. Mas na edição das obras completas do escritor e académico Josué Montello, lá está no capítulo "Teatro: — Alegoria das Três Capitais, espectáculo encenado no alto do palácio do Congresso, em Brasília, de colaboração com Chianca de Garcia". Por sua vez, na Bahia, 13 anos antes, creio também o escritor e académico Pedro Calmon, foi autor de um folheto onde explicava o desenvolvimento que eu dera ao desfile, que era da graça e glória da Bahia. E ainda a propósito dessa comemoração, quero lembrar o nome do grande Assis Chateaubriand, que em artigo divulgado por todos os 50 jornais de que era então dono e senhor, no Brasil, escreve: "Chianca apresentou a coisa mais bonita que os portugueses fizeram desde o descobrimento do Brasil…”



 Fotos do último filme Chianca de Garcia, 24 Horas de Sonho de 1941.
Fotos encontradas em www.meucinemabrasileiro.com

EXP. — Também não era para menos, Chianca. A cidade de São Salvador (Bahia) Inteira ficou fascinada com o desfile dos seus dois mil participantes. Mas, e a outra, a segunda fase?
C. G. — Essa é meramente profissional. Mais activa. Teatro musicado ligeiro, cinema, televisão nos seus primórdios, viagens através dos estados com peças alegres, de humor, e mulheres bonitas, sem esquecer a fase jornalística, que por sinal ainda perdura, na "Revista de Teatro".

EXP. — Os jornais andam anunciando a sua ida a Lisboa, iniciativa do empresário Vasco Morgado, creio.
C.G. — Ele de facto, numa das suas visitas à SBAT — Sociedade Brasileira de Autores Teatrais — em plena assembleia de sócios, disse que estava ali para me convidar a ir a Lisboa, onde, no seu teatro, seria apresentado aos espectadores como o filho pródigo do cinema português. Foi muito aplaudido. E eu, naturalmente fiquei emocionado. Em carta, mais tarde, Morgado sugeriu que eu fosse a Lisboa neste Natal de 1977. Expliquei-lhe que estava sendo convidado, para, de novo, na Bahia, ajudar a criar, em Porto Seguro, um pólo cultural e turístico que ficasse como marco do descobrimento do Brasil, tendo eu sugerido a reconstituição da chegada das naus, que seria completado com a encenação teatral da carta de Pero Vaz de Caminha. Por isso, respondi-lhe que não poderia ir Lisboa antes de Abril de 1978.
Desculpem os meus amigos de Lisboa, mas eu tinha de dar preferência ao pedido dos baianos. Fiquei no Brasil. Mas se ele quiser, em 1978, irei a Lisboa representar, com o maior prazer, o meu pequeno papel bíblico de filho pródigo. Neste caso, só espero que o meu coração resista, à reconstituição de alguns dos momentos mais caros da minha juventude.

Entrevista de José Alberto Braga
Títulos e texto em Expresso, 30 Dezembro 1977


Chianca de Garcia (1898 - 1983)
Foto encontrada na net


José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia


«... Eduardo Chianca de Garcia, como já disse, partiu para o Brasil e só nos anos sessenta, suponho, voltou a Portugal desfeito em palavras das suas crónicas publicadas semanalmente no «Diário de Lisboa» sob o título de Cartas do Brasil. Nem calculam o pasmo das gentes novas lisboetas que de repente viam surgir, num dos melhores jornais de Lisboa, um escritor desconhecido mas tão pujante, com imaginação de mestre e uma linguagem preciosa propositadamente portuga-brasuca, sem no entanto perder a raiz bem portuguesa de lei que aprendera nos livros de Camilo, Garrett, Herculano, etc., que a avó, Dona Amélia Carvalho Chianca, guardava em três baús e lhos dava a ler em miúdo, às escondidas, conforme o Eduardo nos conta no seu relato de memórias inventadas, insertas também, mais tarde, no «Diário de Lisboa»: «Os Verdes Anos da República de 1910». O talento literário de Chianca (cujo apelido materno jurávamos então provir de um príncipe genovês) sempre nos pareceu de evidência total.»
(José Gomes Ferreira, citado no jornal se7e em 01-11-1983)




José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia. Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar 
era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira.




Beatriz Costa sobre Chianca de Garcia

.... Chianca mantém no «Diário de Lisboa» uma página semanal, Cartas do Brasil, que já fez escola... Nessas cartas ele fala de tudo e de todos com amor, verve e inteligência, a ponto de certos termos cariocas já se terem popularizado em Portugal. Gosta tanto do Brasil como eu gosto de um e de outro... Sou amiga desse homem desde que entrei para o teatro. Hoje somos parentes honorários, por minha vontade e seu consentimento. Já o pedi em casamento, mas ele desatou a rir e não tomou a sério. Este poço de inteligência faria a felicidade de uma rainha, que em geral é sempre uma mulher mal amada...» 
Beatriz Costa, em 1975, no seu livro «Sem Papas na Língua». In, se7e 01-11-1983




 Chianca de Garcia: o cinema-espectáculo (excerto)
por Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


«Chianca de Garcia pertenceu a uma geração que, caldeada no modernismo, na cinefilia e na ambição de uma sociedade nova, revelava também uma clara aristocracia de gosto, de inteligência e sentido cívico, obviamente participativa mas colocada numa meia distância amável entre o intelectual e o popular. 
Sabia também defender-se, ao defender as suas preferências em termos estritamente cinematográficos, do melodrama convencional e da tentação folclórica. Basta ver como são postos em causa, na «Canção de Lisboa», o fado, o bairrismo pequeno-burguês e a hipocrisia social ou como na «Aldeia da Roupa Branca», se esconde, por detrás do aparente folclorismo saloio, o conflito do velho e do novo que, segundo Chianca me disse no Rio, confirmando uma tese por mim aventada, procurava seguir a ideia traçada em «A Linha Geral», de Eisenstein: a camioneta deste filme assemelha-se em tudo ao tractor do filme russo, na sua capacidade de resolver o conflito superando a situação antiga.»
Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


O Trevo de 4 Folhas (excerto de 4 minutos). Noticia em O Jornal. 12-12-1986.