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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A BURRICADA

por

Alexandre O'Neill
(In, jornal A Capital)


Coisas Boas em jornais




Alexandre O'Neill (1924-1986) 
FAÇO  avançar a lombo de burro o dr. Crispiniano, a lombo de burro e com uma taça de champanhe na mão. O caso passou-se no Marão, era eu um lamentável lingrinhas, primo-pobre de boa família. A burricada desembocara em farto almoço que nos esperava, toalhas na relva, na Fonte do Mel, e fora a pretexto dos anos duma senhora chamada D. Adozinda. Parece que entre o dr. Crispiniano e a D. Adozinda (bonitões setentões!) houvera rumores cardíacos muitos anos atrás. O dr. Crispiniano (seria por isso? ) não quis desburicar, isto é, deixar o pobre do animal coçar as mataduras nos calhaus e no tojo como os seus companheiros, enquanto nós, os humanos, almoçávamos.
Do alto do burro, com as biqueiras das botinas a roçagarem a relva, o dr. Crispiniano lançou chistes, piropos, respondeu a graças, enquanto comia e bebia. A prazenteira D. Adozinda estava coradita e não fazia senão rir com as "maluqueiras do caro Crispiniano". O burro, ia revezando os pés como paciente cadeira.
Chegaram as saúdes, saltaram as rolhas. O dr. Crispiniano, taça ao alto, afagou o pescoço do burro, pediu muita atenção, cogitou uns momentos e "desimprovisou-se" com fluência e garbo:

Penso e repenso,
puxo e repuxo.
Teu nome, Adozinda,
é um soberbo luxo!

Foi aí que o burro disparou. O dr. Crispiniano, espantalho movente, ainda aguentou cinquenta metros de corrida naquela desembestada charneira. Depois caiu e fez plof, como nas histórias de quadradinhos.
Esteve um mês de perna gessada.


A BURRICADA por Alexandre O'Neill (In, jornal A Capital, 05-07-1972)



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Alexandre O'Neill e o Congo


Coisas boas em jornais



O Congo espera por si, mas tenha cuidado!


 Se Você, no seu quintal, der um pontapé numa pedra azulada que possa parecer diamante, não diga nada a ninguém, nem corra ao ourives da esquina: a pedra não tem valor joalheiro. Fique quieto. Procure esquecer, se não a guerra instala-se no seu quintal. E devo dizer-lhe que será muito mais que uma disputa interquintais, que será uma luta internacional.
Se Você não quer que o seu quintal seja transposto para as dimensões de um país tão grande, rico e misterioso como o Congo, fique, por amor à sua própria pele, quieto.
Nem utilize o «walkie-talkie», a fisga ou a espingarda de pressão de ar. Você estará, se não tiver cuidado, a lutar contra sofisticada aparelhagem electrónica, tão sofisticada que, se V. contribuir, ou o obrigarem a contribuir, com uma gota, lhe pode fazer a análise do seu teor sanguíneo à distância, tão sofisticada que administrará o seu tempo (e o tempo de «eles») por forma a bater em velocidade os concorrentes que se apresentarem para o mesmo fim: sacar-lhe os diamantes sem valor joalheiro. Esqueça tudo e ponha uma pedra (comum) no assunto. Prefira ler/viver a aventura no livro «Congo». É mais prático, mais barato e, sobretudo, menos mortífero. Ë que V. nem terá que aturar macacos que falam (ou matam inteligentemente um homem igual a si servindo-se de uma espécie de gigantescas colheres de pedra), não terá que atravessar selvas inóspitas, florestas podres, nuvens de mosquitos ferozes como aviões de combate, bandos de hipopótamos assassinos. De onde vem a sedução deste livro? Ainda não sei bem, mas o que aconteceu, com o Mega Ferreira, com uma amiga minha e comigo próprio, foi que, quando pegámos nele, cada um em sua casa, só o largámos concluída a leitura.
«Congo», de Michael Crichton, é muito mais que um livro de aventuras. É a alta electrónica a trabalhar sob os nossos olhos (entre Houston-Satélite-Acampamento perdido no Congo, por exemplo) perfeitamente dentro dos seus possíveis, é a excitante utilização do que existe, já hoje, nessa sofisticada electrónica e o que pode, vai existir amanhã (ou até talvez já exista, quem sabe?). De modo que o livro de Crichton, que tem uma aprofundada formação científica, introduz, sem a fantasia e os palpites que tantas vezes recheiam os livros de aventuras de máquinas inverosímeis, uma aparelhagem que está, como quem diz, ao nosso alcance. E nós, redivivos rapazitos que somos, sofremos com o emudecimento de um computador num momento crucial ou saltamos interiormente de entusiasmo quando a resposta pedida chega, via satélite, por exemplo de Houston (Texas) a milhares e milhares
de quilómetros de distância, para assomar no «écran» de um computador manipulado num recanto doentiamente hostil da floresta equatorial do Congo. São incríveis o número e a diversidade das máquinas e operações (de confirmação, de previsão probabilística, etc.) que em «Congo» nos mostram.
Como não menos incríveis é a gorila Amy, que domina um vocabulário de 600 palavras, que tem vontade própria e chora quando o seu «dono» a deixa.
Seria difícil estar aqui a resumir o livro. Fundamentalmente, trata-se da luta de morte entre um consórcio euro-japonês e um grupo de cientistas-traficantes norte-americanos pela descoberta e posse de um sítio, no Congo equatorial, onde, junto de um vulcão e das ruínas de uma misteriosa cidade, «nascem» os tais diamantes com boro, de aspecto azulado, inúteis como pedras preciosas, procurados apenas pelas suas propriedades eléctricas e bastante menos dispendiosos que os fabricados nos laboratórios industriais da electrónica.
Mas entre o grupo que carrega com ele o sofisticado equipamento e os diamantes azuis interpõem-se gorilas cuja morfologia e comportamento escapam aos padrões conhecidos, gorilas que atacam organizadamente, com as tais colheres gigantescas de pedra, o grupo de exploradores. E entre esses animais que é largada a gorila Amy que, numa aventura que vem juntar-se a outra, tinha sido trazida da América para ser confrontada com go rilas em estado natural.
Enfim, por aí fora, um crescendo que tem o seu desfecho de uma forma inesperada, com lutas tribais à mistura, com o exército regular congolês a intervir, etc., desfecho que não vamos, como é evidente, revelar. É que temos de fugir, porque o tal vulcão, para ajudar, entrou em cena possesso de uma tremenda erupção. Depressa, depressa, talvez pelo ar nos possamos safar!

(Alexandre O'Neill,  publicado em, Jornal de Letras 03-01-1984)

Michael Crichton
Congo
Colecção não incomode/2
Gradiva — Publicações, Lda.
1983