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terça-feira, 9 de abril de 2013

Cara, decote e voz

Volto a publicar este post de 2012, agora que soube 
pelos jornais que a grande Sara Montiel nos deixou.

SARA MONTIEL

ou Sarita Montiel


Coisas boas em jornais

Texto de
Manuel S. Fonseca
Expresso, 21-03-1992


TINHA truques. Na Cinemateca, numa das maiores apoteoses com que o público de Lisboa brindou uma estrela convidada, Sara Montiel, 64 anos, muito pouco vestida, e toda em rosa, num estilo que Almodóvar copia em «mui-to-po-bre», contou um dos seus truques favoritos. Filmava com Gary Coper. A cena era iluminada por um gigantesco projector de arco. Os olhos de Cooper eram só um traço, incapazes de se abrirem, tão violenta era a luz. Sara, pelo contrário, lá estava de olho arregalado. Cooper quis saber como é que ela conseguia. «Tenho um truque», disse ela. «Diz-me qual é», pediu-lhe o galã. «Não é de dizer, é de fazer», explicou ela, levando-o para um canto. Puxou de um frasquinho e deitou umas gotas em cada um dos olhos de Gary Cooper. «Anestésico», segredou Sarita a um Cooper que, durante quatro horas, passou a ter faróis em lugar de olhos.


«Na Cinemateca, numa das maiores apoteoses com que o público de Lisboa 
brindou uma estrela convidada, Sara Montiel, 64 anos, muito pouco vestida» 
Foto copiada do Expresso.

A carreira de Sara Montiel deve-se começar a ver pelo meio. Os primeiros anos foram, com efeito, anos de chover no molhado, filmando para poder continuar a levar o pão à boca. De Ti Quiero Para Mi (1944), a sua estreia aos 16 anos de idade, até Pequñeces (1950), nem ela pareceu interessar a câmara, nem os espectadores viram nela, e no que dela se podia ver, motivos para sobressalto.
Essa primeira fase espanhola já estaria esquecida e enterrada, se o caso de popularidade de Sanita não tivesse explodido, inopinadamente, na fase que se iniciou com El Ultimo Cuplé. Maltratada e mal paga, Sarita Montiel deixou, em 1950, a ingrata, espúria e mesquinha Espanha, procurando emprego e papéis mais adequados no então florescente cinema mexicano. Começou com Necessito Dinero e acabou com Yo no Creo en los Hombres, passando por Cárcel de Mujeres, títulos suficientemente sugestivos para descrever o tipo de ficção populista e as personagens primárias que incarnou.

Capa da «plaquete», editada pela Cinemateca em homenagem a Sara Montiel em 1992.

Foi por esses anos, de 50 a 54, que a sua presença começou a ganhar na tela parte das qualidades eróticas que seriam trampolim para a fama ibérica e latino-americana, qualidades que entretanto pode exercitar em Hollywood, primeiro no conhecido Vera Cruz, de Robert Aldrich, ao lado de Burt Lancaster e Gary Cooper, e logo a seguir em Serenade, de Anthony Mann (com o qual se casou), e em Run of The Arrow, de Samuel Fuller. O sol da Califórnia foi, todavia, de pouca dura.
Em Espanha lembraram-se, então, dela, convidando-a, em 1957, para um filme que ninguém queria fazer e muito menos alguém queria pagar. O que ninguém adivinhava é que a carreira de Sarita Montiel estava, nesse momento, naquele ponto exacto onde repousa toda a virtude, a meio. E ainda menos poderiam adivinhar que esse filme, El Último Cuplé, parecendo ser durante a rodagem quase uma humilhação para quem o fazia, se iria converter no maior sucesso popular do cinema espanhol, obrigando a apreciar a nova luz tudo o que Sarita tinha feito para trás e, sobretudo, criando expectativas para tudo o que a actriz iria fazer daí em diante.



Sara Montiel cantando Quizàs, Quizàs, Quizàs no filme 
Noches de Casablanca (1963) com Maurice Ronet.


Cara, decote e voz foram os três vértices do sucesso de Sarita, por obra e graça de El Ultimo Cuplé, convertida em avatar do erotismo ibero-americano, para uso de quarentões a cauterizar casamentos no mínimo enfadonhos. La Violetera, Carmen la de Ronda, Mi Ultimo Tango e La Reina del Chantecler tornaram-na, no final dos anos 50 e no começo da década de 60, objecto de devoção e de peregrinação das classes mais desfavorecidas, nas tintas para os dramas ideológicos ou de acção social que a sociedade espanhola politizada vivia. Hoje, seja como fenómeno «camp» seja por recuperação cinéfila, mais ou menos historicista, Sara, a bela Sara, voltou a despertar as velhas «loucuras de amor». «Esa mujer»!

Manuel S. Fonseca
Expresso, 21-03-1992



Excerto da entrevista do Expresso a Sara Montiel, pouco 

antes da homenagem da Cinemateca Portuguesa em 1992.



EXPRESSO — Sempre proclamou em público as suas ideias políticas de esquerda?
SARA MONTIEL — Nunca fui muito dada a provocações gratuitas. Mas recordo que no princípio dos anos 60, com Franco ainda bem vivo, Manuel Vazquez Montalbán fez-me uma entrevista que quase nos levou  à prisão! Tivemos então sérios problemas, só porque eu havia manifestado ideias e preocupações simplesmente liberais! De todos os modos, nunca me considerei uma mulher política. Aliás, voto socialista, mas nunca tive nem terei o «carnet» do PSOE.
EXPRESSO — Como grande vedeta espanhola e universal, terá sido recebida ou convidada alguma vez pelo general Franco?
SARA MONTIEL — Uma só vez e chegou! Foi durante um encontro colectivo de artistas, numa daquelas sinistras festas-recepções do regime franquista. Não troquei uma única palavra com o ditador, somente um frio aperto de mão. De qualquer maneira, era um regime que não tinha nada a ver com o mundo da cultura e do espectáculo — um mundo que, segundo Franco, só podia estar «infectado» de intelectuais liberais e progressistas, ou seja, de «comunistas». Sinto-me feliz por ter assistido à morte desse regime e por viver enfim numa Espanha democrática.
EXPRESSO — Até que ponto se identifica com a Espanha folclórica, a Espanha de Carmen, simbolizada de algum modo por Lola Flores?
SARA MONTIEL — Se tenho inveja de alguém, esse alguém é Lola Flores! E um autêntico monumento nacional, um, exemplo único, inimitável. Ninguém lhe chega aos calcanhares! A Pantoja? Essa não serviria sequer para lhe limpar os sapatos! São artistas como Lola Flores que fazem a grandeza de um país como Espanha, com uma personalidade forte e ímpar, o que não impede que seja também um país moderno, dinâmico e com uma boa imagem no exterior. Pretender que Lola Flores dá uma imagem negativa de Espanha é uma estupidez.
EXPRESSO — Como recebeu a notícia da homenagem da Cinemateca Portuguesa à filmografia de Sara Montiel?
SARA MONTIEL — Com uma grande alegria. Com o meu marido Pepe Tous e com os realizadores do meu programa «Ven al Paralelo» na TVE2, procurámos logo conciliar as datas das gravações e dos ensaios com uma viagem a Lisboa, uma cidade pela qual tenho uma paixão particular. Sempre mantive uma estreita e secreta relação com Portugal, uma relação «underground». Não tive, infelizmente, grandes contactos com os meios artísticos portugueses, mas quando oiço Amália Rodrigues cantar o fado estremeço dos pés à cabeça!

Entrevista de José Alves em Madrid
Expresso Março 1992


Destaque na Visão, num trabalho sobre o cinema espanhol.



sexta-feira, 29 de março de 2013

Elmyr de Hory - O falsificador gentil


Texto de
Manuel S. Fonseca
16 de Outubro de 2010


Elmyr de Hory. Londres, Inglaterra. 1972. Terence Spencer.

Foi um charlatão que é, como bem sabem, o nome que se dá a certos homens de talento. Elmyr iluminou o século XX, de 1906 a 1976. Para os convenientes efeitos de registo chamemos-lhe Elmyr de Hory. Um volátil De Hory que mudou até à exaustão da capacidade do alfabeto: Bory, Cory, Dory, até Zory, para já não falar de Dory-Boutin, Herzog, Hoffman ou Cassou. You name it! Em português: digam nomes!
Mas estou, já é costume, a contar mal a história até porque é difícil estabelecer-lhe a biografia e a investigação não é o meu forte. Nasceu na Hungria, em família aristocrática – e é mentira. O pai era embaixador austro-húngaro – e é mentira. A mãe descendente de consolidada linhagem de banqueiros – e é mentira. Tudo factos, tudo mentira.
Aos 18 anos estava em Munique a estudar Belas-Artes. Dois anos depois, em 1926, já está em Paris, onde foi aluno, muito bom, de Fernand Léger. Tudo factos, tudo verdades. Em Paris, converteu-se ao prazer da vida, da seda, do champagne, das festas, do grande estilo.
Os anos totalitários que precedem a guerra, apanham-no em Budapeste. Tem uma breve passagem pela prisão, por ligação a um espião britânico. Soltam-no, mas um ano depois os nazis espetam com ele num campo de concentração, acusando-o de judeu e homossexual. Sabe-se que não era judeu e sabe-se que era homossexual convicto e praticante. Foi espancado, mas o seu forte instinto de sobrevivência teve artes de engendrar a fuga de um hospital de Berlim. Desenhou, através do império nazi, uma fina linha de trapaças e subornos que o trouxe de volta a França.

Elmyr de Hory, ao lado de um Matisse forjado por ele.1969. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.

Quando a Guerra acabou, o brilhante Elmyr tentou ganhar a vida com os quadros que pintava. Descobriu que mesmo que não morresse à fome, não vestiria casaca e não entraria no mundo de riqueza, volúpia e celebridade a que aspirava. Já se sabe: com a fome vem sempre uma grande vontade de comer e Elmyr descobriu que desenhava Picassos com uma facilidade cândida, infantil. Como há homens que nascem com uma mulher dentro deles e vice-versa, Elmyr descobriu que o seu corpo abrigava outro Picasso. Pelo menos no circuito que se estabelecia entre as suas mãos, os seus olhos e o seu cérebro.  
O primeiro Picasso vendeu-o a um amigo inglês que o tomou, para silenciosa surpresa de Elmyr, por um original. Há silêncios que desencadeiam vocações. Nesse dia de 1946, Elmyr deixou-se cair nos braços da fraude e da falsificação, num certo sentido, num mundo mágico de trickery e make-believe. Paris voltava a ter o seu Houdini. Primeiro os desenhos de Picasso, a que prontamente Elmyr acrescentou desenhos de Matisse, Modiglinani e Renoir.

Clifford Irving, sua mulher Edith, Elmyr de Hory, Gerry 
Albertini e Bob Kirsh. 1972. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.

Vendia-os porta a porta, galeria a galeria. Essa era a parte mais difícil. Elmyr tinha o seu orgulho e o acto de venda, a persuasão do seu interlocutor, era-lhe estranha. Muito mais tarde, já nos anos 50, entrou numa galeria de Los Angeles, abriu o portfolio e Frank Perls, o galerista, ficou abismado com os Picassos e Modiglianis. Tão abismado que desconfiou. Fechou a pasta atirou com ela a Elmyr, gritando-lhe que a porta da rua era a serventia da casa. Elmyr saiu engolindo a humilhação, mas já na rua voltou-se para Perls e perguntou-lhe: “Mas acha que os desenhos estão bem feitos?” E Perls sabia, soube logo, que aqueles desenhos eram obras-primas de falsificação.
Era um falsificador gentil. Não estava ali para enganar ninguém: queria que os seus Picassos e os seus Renoirs fossem amados. Esse amor era a primeira e mais importante remuneração. Acabou por organizar-se para potenciar o melhor de si. Entregou a terceiros a venda. Foi obviamente vítima de fraude. Todos os parceiros com que trabalhou – arduamente, entenda-se – o enganaram miseravelmente nas contas.

 Pinturas falsas de Matisse e Modigliani, pintadas por Elmyr de Hory.

Elmyr teve a sua maior glória na década de 50. Viajou até aos Estados Unidos e era como se tivesse chegado ao paraíso. Tinha visto de 3 meses, ficou uma década. Dos desenhos passou aos óleos. Comprou livros (só queria um décimo da biblioteca de arte dele) e estudou estilos. A pouco e pouco alargou o seu portfolio: Vlaminck, Chagall, Toulouse-Lautrec, Dufy, Derain, Degas, Bonnard vieram juntar-se aos primeiros mestres. Não tenho a certeza, mas rezo para que nunca tenha falsificado um Léger. (Hei-de ser sempre um sentimental e tenho a certeza de que Elmyr também o era).
Vai sem dizer que Elmyr não era um copista. O que ele desenhava, o que pintava, eram novas obras desses mestres. Genuínas, inéditas. Geniais, como genial era o Matisse que vendeu ao Fogg Art Museum, na Universidade de Harvard. Os peritos viram e os peritos reconheceram-lhe a autenticidade. Compraram-no e, digo eu para envernizar mais esta história, expuseram-no.
E foi aqui que se torceu da que sabem o belo rabo. Mais tarde, novas peritagens descobriram a fraude. E outros coleccionadores – ó os texanos!!! * – descobriram que tinham sido tão suavemente comidos.

 Elmyr de Hory e David Walsh. 1969. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.

Os anos que se seguiram foram anos de fuga e clandestinidade. De luxo ainda, em Ibiza. Os anos em que, com alguma bondade, Elmyr, o charlatão tímido, permitiu, condescendente, que outro charlatão, Clifford Irving ( o escritor que tinha forjado uma biografia de Howard Hughes e por isso tinha sido preso) escrevesse a sua história. E que esse mago da manipulação chamado Orson Welles o fixassse para a eternidade, no filme F for Fake.
Informado de que o governo espanhol cedera ao pedido de extradição da França, o que o significaria acabar os seus anos na cadeia, a 1 de Dezembro de 1976, Elmyr tomou uma overdose de comprimidos e morreu nos braços de Mark Forgy, seu companheiro.

 *Algur H. Meadows, magnata texano do petróleo, descobriu que tinha a mais ampla, mas também a melhor colecção do mundo do falsificações de Degas, Bonnard, Matisses, Picassos e outros pintores menores. Com um sentido de humor mais negro do que o ouro que os tinha pago, Algur espumou de raiva e lançou todos os seus cães, do FBI à Interpol, em busca dos mágicos falsificadores.

Texto de
Manuel S. Fonseca
encontrado em www.etudogentemorta.com
16-10-2010

Um falso Van Dogen pintado por Elmyr de Hory.


(Fotos LIFE Archive)
Pinturas falsas de Elmyr de Hory encontradas na net




quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O animal mais belo do mundo


Ava Gardner, a  derradeira imagem
Texto de
M. S. Fonseca
Expresso, 3 Fevereiro 1990

 Ava Gardner. Foto de butterflybyways.blogspot.pt


Coisas boas em jornais

   QUANDO Ava Gardner  chegou a Hollywood, em 1940, Louis B. Mayer podia  mais na MGM do que Deus-todo-poderoso no reino dos céus. De resto, a imperfeição da natureza era tão óbvia que a MGM não tinha outro remédio senão reproduzi-la em estúdio e corrigir-lhe os defeitos. Ava Gardner era um desses defeitos.
   Agarraram nela, levaram-na para o «Stage 15», o maior set do mundo, e fizeram-lhe o primeiro teste. Lee Garmes, um dos maiores directores de fotografia de Hollywood — que o digam Sternberg, Hawks, Mamoulian, King Vidor ou Nick Ray —, fotografou-a e, como Mayer não tinha tempo a perder, sintetizou-lhe assim os resultados:  «Não sabe representar. Não sabe falar. Mas é espantosa». Garmes era bruxo. Durante dez anos, até à  Pandora de Albert Lewin, cada filme de Ava Gardner levava reticências, muitas reticências e, a seguir, como remate, a constatação, de Garmes, «... but she's terrific».
   No meio do teste, Ava Gardner dizia o nome: «Ahvuh Gandnah». Ninguém percebeu. «Depois  muda-se»,  declarou Louis B. Mayer. «Depois muda-se», era para todos os efeitos o lema de qualquer estúdio. Mudava-se tudo. Chamavam-se os departamentos, o guarda-roupa, a caracterização, e entregava-se-lhes a candidata (que às vezes era o) nas mãos padronizadoras. Ava Gardner não foi excepção. Fizeram-lhe tudo isso, mais uma ida ao dentista, abriram-lhe conta, desenharam-lhe um currículo, deram-lhe aulas de dicção e de representação. E Mayer preparava-se para lhe mudar o nome quando reparou que Ava Gardner era bom, perfeito até. Só que o estúdio não podia correr o risco de dar o braço a torcer — uma vez que fosse — no seu confronto com a «natureza». E se Ava Gardner conservou a sua graça foi porque Mayer criou a ficção de que o nome de baptismo da rapariga era Lucy Ann Johnson, nome impossível que o estúdio corrigira para a sonoridade harmónica de Ava Gardner.

Ava Gardner. Foto de  missladymo.blogspot.pt

«Femme fatale»

Depois de tudo corrigido, dentição, cabelos, pronúncia, o estúdio deu-lhe (ou não deu?) uma carreira. Fê-la fracassar de filme em filme, mantendo-a em banho-maria durante dez anos. Foi premeditado? Ou foi a prova clamorosa dos vícios do sistema? Jean-Luc Godard — o grande e, não me lixem, mesmo grandessíssimo Godard —, no seu estilo aforístico, disse um dia:  «O cinema não se interroga sobre a beleza de uma mulher; o que faz pôr em dúvida o seu coração, registar a sua perfídia». A MGM e Louis B. Mayer, ofusca-dos pelo magnetismo de Ava, procederam inversamente. Fizeram filmes para a imagem dela, querendo que ela fosse refém dessa imagem: sex goddess, como é óbvio. A pouco e pouco foi-se consagrando o mito frívolo de femme fatale,  consubstanciado em casamentos e aventuras que envolveram Mickey Rooney, o músico Artie Shaw, Frank Sinatra e, quando Ava se pôs a incarnar a mulher segundo Hemingway (oops!), alguns «matadores» espanhóis. O mito prevaleceu sobre os filmes medíocres. Firmou-se a ideia de que não sabia representar (ideia alimentada com insistência pela própria Ava), devendo por isso assegurar-se que os filmes não perturbassem as características do produto de identificação: uma beleza felina, uma mulher inacessível, um «mito que se recusa aos homens». Era para a ver assim que o público pagava, foi assim que a MGM a conservou. Ela sobreviveu, mas esteve longe de sair incólume. Bebia tudo o que lhe aparecia pela frente, gin, vodka, tequila, rum, scotch, bourbon, cerveja e champagne: para não ferir susceptibilidades, a tudo o que enchia um copo pôs o nome macio de «shampoo». Robert Mitchum, quando contracenavam em My Forbidden Past, compadeceu-se e procurou tirá-la do vício. Mas Ava nunca se conseguiu habituar à marijuana e Mitchum não teve outro remédio senão continuar a fumar sozinho.
   «Se eu soubesse representar tudo teria sido diferente... Mas tive o azar de ter  esta cara fotogénica». Foi o que Ava disse a Henry King durante as filmagens de Snows of Kilimanjaro.

Ava Gardner by Wayne Miller, 1959 (esq.) e Ava Gardner, foto do Expresso.
Fotos de pinterest.com e Expresso

Figura de redenção

   Deixara já de ter razão. Em 1950, Albert Lewin, filmara-a pela primeira vez  a cores, em Pandora and the Flying Dutchman. A imagem do estúdio, armadilhada por Mayer, Lewin, que tinha fama de esteta e modos de «grande senhor», opôs pela primeira vez a contra-imagem, fazendo-a surgir como uma figura de redenção. E, em 1953, com  Mogambo de John Ford, ao lado de Clark Gable, Ava Gardner provou, mais do que em qualquer outro filme, que poderia ter sido tanto mais actriz quanto tivesse sido muito menos «star». «Ford foi maravilhoso a dirigir-me, a falar comigo, a fazer-me compreender. Acho que é assim que ele trabalha»,  recorda Ava Gardner. E quem tenha visto o filme recorda-se da inesperada «presença masculina» de Ava, contrariando a imagem do «eterno feminino» de quase todos os filmes anteriores. Richard Lippe, um crítico americano, notou e bem que  Mogambo  parece um filme de Howard Hawks, e que Ava Gardner, no filme, desempenha o papel de uma heroína hawksiana, uma rapariga viril, despachadíssima nos diálogos, com o estofo de quem viveu muito e guarda do passado algumas cicatrizes. Quando o filme foi exibido, houve quem a achasse tão dotada para a comédia como Carole Lombard, e Hollywood nomeou-a para o Oscar de melhor actriz, que perderia para a representação de Audrey Hepburn em Roman Holiday.

Ava Gardner. Fotos de  tumblr. com

A carreira numa réplica

   Estabelecida a contra-imagem e auto-exilada em Espanha para fugir aos padrões que Hollywood lhe impusera (ou que ela mesma em Hollywood se impusera), Ava podia agora fazer o seu próprio papel e deixar de representar o papel que o estúdio, a «sua» MGM, lhe atribuíra. E Mankiewicz foi buscá-la para ser a Condessa Descalça. Também não tinha muito por onde escolher. Ou ela ou Rita Hayworth. Mais ninguém, senão uma destas duas actrizes, poderia incarnar a — melhor seria dizer, fundir-se na — personagem de Mankiewicz (o cineasta favorito dos snobs, como lhe chamou gentilmente Truffaut). Quando, no filme, Ava olhava para Humphrey Bogart, que tinha o papel de realizador, e lhe dizia: «Acho que sou bonita, mas não quero ser esse género de «star». Se eu fosse capaz de representar só um bocadinho, você ajudar-me-ia a ser uma boa actriz a sério?»,  ela estava só a converter toda a sua carreira a uma réplica.
   Desse drama deu conta Cukor, depois de a dirigir em Bhowani Junction: «Ela era extremamente inteligente. Exerce uma grande fascinação, mas está assombrada pelo desespero. É uma mulher dominada pela fatalidade. Não está de boas relações consigo mesma e, entre outras coisas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algumas maravilhosas cenas eróticas... Lavava os dentes com whisky, de uma maneira muito ordinária e muito excitante. Mas foi tudo cortado pelos censores».
   Por causa de Ava Gardner a crítica francesa produziu toneladas de prosa metafísica. Desde o Mito, ao Eterno Feminino, passando pelo Mistério, Enigma e Esfinge, sem esquecer o Fantomático e o Fugidio, Edgar Morin, Bertrand Tavernier, Jacques Siclier e Ado Kyrou, entre outros, disseram do seu assombramento. Por mim, prefiro a desassombrada declaração de Cukor. Nela se percebe melhor como é que Hollywood tantas vezes se bloqueou, por inflexibilidade da estratégia, a si mesma, e como é que, por detrás de cada imagem de  glamour pode haver a contra-imagem «rebelde» que, com a sua cumplicidade (como antes com a de Ford e Mankiewicz), Ava Gardner fez, afinal, prevalecer como sua derradeira imagem.


M. S. Fonseca
Texto e títulos em
Expresso, 3 Fevereiro 1990


Ava Gardner, capa da Time. 1951. Nickolas Muray.
Foto LIFE Archive.


Ava Gardner durante as filmagens de "The Night of the Iguana". Na 2ª foto 
vê-se, John Huston e Richard Burton. Mismaloya, Mexico. 1963. Gjon Mili.
Fotos LIFE Archive.



domingo, 25 de novembro de 2012

Graham Greene - Na mansão do prazer


por
Manuel S. Fonseca
Expresso 13-04-1991



Coisas boas em jornais

The Pleasure Dome: Colectânea de críticas de cinema de Graham Greene,1935-1940.


FUGIR, escreveu ele. Graham Greene fugia muito. Cada fuga, hora e meia, e o abrigo era sempre o mesmo. Mansão de prazer, chamava-lhe; todos os cinemas de Londres, acrescentamos nós. Em quatro anos e meio, entre 1935 e 1940, ficaram registadas cerca de 400 fugas.
O «registo» é, preferencialmente, o «The Spectator», a revista onde Graham Greene publicou as recensões desses filmes para onde fugia dos tormentos infernais por que passava quando tinha que dar vida ao personagem secundário de um romance, ou quando queria chegar à boa construção de um capítulo. Era, como escreveu no prefácio de Pleasure Dome, livro que reúne esses seus textos, «a fuga por hora e meia à melancolia que inexoravelmente tomba à volta do romancista quando ele viveu meses demais no seu mundo privado».



A Revolução Cubana tinha começado em Janeiro de 1959. A foto é de Abril e alguns casinos ainda funcionavam. Em pé, Noel Coward e Graham Greene. Sentados da esquerda para a direita: Carol Reed, Alec Guinness, Maureen O'Hara, Ernie Kovacs e Jo Morrow. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.


Graham Greene descobriu-se crítico de cinema quase por acaso. «Depois do perigoso terceiro Martini», se quisermos acreditar na sua versão. Nessa altura, Greene achou-se capaz de preencher o que considerava uma lacuna do «Spectator», a falta de tratamento do cinema.
Mas Greene já tinha culpas anteriores no cartório. Em Oxford, constituíra-se crítico de cinema do «Oxford Outlook», uma revista literária de que ele mesmo era o editor. A essa conspícua actividade deve somar-se a sua veneração por uma publicação tão elitista quanto fascinante, a saber, a revista «Close Up», que Kenneth Macpherson editava a partir do seu «château» na Suíça. (Dessa revista rara, a Cinemateca possui uma colecção preciosa na sua Biblioteca; e de Kenneth Macpherson foi já exibido, também na Cinemateca, Borderline, um filme singular na sua relação com as vanguardas artísticas do final dos anos 20).
Era exactamente aos anos 20 que Greene devia a formação do seu gosto cinematográfico. Não admira, por isso, que os seus textos tenham começado por reflectir um vincado preconceito contra a utilização do som, a que sucedeu, mais tarde, o preconceito contra a cor — esta mesma «reacção humanista», à introdução de novas tecnologias no campo artístico, pode hoje observar-se nas terríveis batalhas contra o audiovisual propostas pelas Vestais de um pretenso cinema puro.


Graham Greene conversando com Alec Guinness em plena Revolução Cubana que tinha começado em Janeiro de 1959. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, Abril, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.


Da actividade crítica de Graham Greene o que apetece guardar, antes de mais, é a sua feroz ironia — que lhe valeria, de resto, pesada pena fiduciária no «caso Shirley Temple», que adiante se relata. Digna de registo é, também, a tendência para as digressões na primeira pessoa, digressões que, por vezes, ganhavam um carácter autónomo relativamente ao filme comentado. Uma das mais saborosas, por se ligar às convicções religiosas de Greene, talvez seja a que subscreveu na crítica a The Garden of Allah, filme em que o renegado monge trapista que é Charles Boyer renúncia ao amor de Marlene Dietrich para regressar ao mosteiro.
A cena de despedida suscitou-lhe este comentário: «Alas! minha pobre Igreja, tão pitoresca, tão nobre, tão sobre-humanamente piedosa, tão intensamente dramática. De facto, prefiro a versão do ‘News Statesman', padres mesquinhos a contar pesetas pelos dedos, em cafés encardidos, antes da acção de graças».
Da sua feroz ironia, o melhor testemunho é o caso Shirley Temple. Em Agosto de 1936, Greene, comentando Captain January, de David Butler, espetara a primeira farpa. Primeiro começava por reconhecer à pequenina menina-prodígio um imenso vigor e segurança, tanto na representação como na dança. Acrescentava a seguir que, no entanto, a «sua popularidade parecia residir numa coqueterie tão madura como a de Claudette Colbert e num corpo, peculiarmente precoce, tão voluptuoso nas suas calças de flanela cinzenta como o de Marlene Dietrich». Um ano depois, e desta vez na revista «Night and Day», Greene escreveu sobre Wee Willie Winkie, um filme de Ford protagonizado pela mesma Shirley. Semeou ventos e colheu a tempestade que uma legião de advogados, da 20th Century Fox e da própria Shirley Temple, lhe fizeram cair em cima. Na opinião dos juízes que julgaram o caso, a crítica de Greene era «um dos mais horrendos libelos que alguém poderia imaginar». Por causa dessa «beastly publication» (a opinião é ainda dos juízes e dá em português a colorida expressão «texto animalesco»), Greene e a «Night and Day» tiveram que pagar pesadas multas à companhia e à actriz. O texto foi interdito e, por essa razão, não consta da recolha das críticas do escritor, nem pode ser citado na Imprensa inglesa.


Graham Greene engraxando os sapatos em Havana, no inicio da revolução cubana. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, Abril, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.


Do conjunto das críticas que publicou entre 1935 e 1940, podem compulsar-se algumas ideias recorrentes sobre o que Greene entendia dever ser o cinema. E, segundo ele, devia antes de mais ser uma arte de massas, dando às pessoas o mesmo que o teatro isabelino lhes dera no passado, «as tragédias violentas e universais que elas compreendem».
Defensor de um «cinema poético», Greene sempre entendeu o realismo como premissa indispensável desse cinema. Na crítica aos Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, pode inferir-se claramente o alcance que atribuía aos conceitos de «poesia» e de «realidade»: «Chaplin tem, como Conrad, algumas `pequeninas ideias simples' que podem ser expressas pelos mesmos termos — coragem, lealdade, trabalho — contra o mesmo fundo niilista de sofrimento sem finalidade. `Mistah Kurtz — he dead'. Essas ideias não são suficientes para um reformador, mas provaram ser amplamente suficientes para um artista».
Raramente reconheceu a Hollywood aquilo que reconheceu a Chaplin, quase sempre se queixando que o cinema americano tinha tendência para envolver a realidade em celofane, sem esse «sentido adulto» da arte que dizia entrever na Kermesse Héroique do francês Jacques Feyder. Mesmo assim, soube pôr em evidência as qualidades de John Ford (chamando-lhe «um dos melhores realizadores deste tempo», logo que viu Stagecoach e Young Mr. Lincoln), de Frank Capra (não sem separar o trigo de Mr. Deeds Goes to Town e Mr. Smith Goes to Washington do joio que o desiludia em Lost Horizon). Como soube ver e sublinhar que alguns dos génios alemães, convidados para Hollywood nos anos 30, tinham afinal beneficiado com as condições que os grandes estúdios colocaram à sua disposição, caso de Ernst Lubitsch e de Fritz Lang, cujo Fury saudou, em 1936, afirmando ser «o único filme ao qual quereria associar o epíteto `grande'».



John Ford sentado, dá instruções a Shirley Temple no filme, "Shirley, Soldado da Índia" (Wee Willie Winkie, 1937). Foto de moirasthread.blogspot.com


Entre os seus ódios de estimação conta-se grande parte dos filmes ingleses de Hitchcock — exactamente por causa do seu «inadequado sentido da realidade». Foi, aliás, o seu ataque sistemático a algum cinema inglês, e em particular às produções de Alexander Korda, que esteve na origem da sua passagem de crítico a argumentista. Korda, intrigado com as cerradas críticas, quase sempre insistindo nas fraquezas de construção das personagens ou do argumento, acabou por convidá-lo a fazer o que ele dizia que os outros não faziam. No balanço que fez da sua actividade como crítico cinematográfico, Greene confessou que um dos seus poucos motivos de arrependimento era, justamente, o de não ter considerado, por desconhecimento, quanto é que um realizador e um argumentista podem sofrer nas mãos de um produtor. Mas essa é já uma outra história, a das suas relações menos pacíficas e às vezes tumultuosas com os produtores.
Apesar de mais importante no corpo da sua obra, talvez a actividade de argumentista nunca lhe tenha provocado uma declaração tão nostálgica como esta, que a sua memória de espectador e crítico lhe ditou: «Chorei pelos filmes mudos quando os sonoros apareceram e chorei pelo preto e branco quando o Technicolor veio lavar os ecrãs. Hoje, vendo o último filme sério e socialmente consistente de Monsieur Godard, tenho saudades desses desaparecidos anos 30, tenho saudades de Cecil B. De Mille e dos seus Cruzados, tenho saudades dos dias em que quase tudo podia acontecer».

Manuel S. Fonseca
Expresso 13-04-1991



Graham Greene. Inglaterra. 1951. Larry Burrows.


Graham Greene - Caso encerrado


1904 — Nasce em Berkhamsted. O seu pai dirige a escola local, e Graham passa a infância e parte da adolescência a sofrer as consequências disso: lealdade dividida entre os colegas e o pai, depressões muito fortes, tentativas de suicídio, psicanálise com certo êxito.
1922 — Inicia estudos universitários (História Moderna) em Oxford. Ainda durante o curso, dirigirá o periódico estudantil «Oxford Outlook» e começará igualmente a trabalhar em jornais civis.
1923 — Inscreve-se no Partido Comunista inglês durante cerca de três semanas. Explicaria mais tarde porquê esse acto: havia a esperança de ganhar uma viagem à Rússia. Uma explicação que é quase impossível não aceitar, conhecendo-se a vocação viajante de Graham. Muito mais tarde, porém, essa remota filiação vermelha impedi-lo-á de entrar nos EUA.
1925 — Fim dos estudos. Publica Babbling April, um livro de poesia.
1926 — Por influência da futura mulher, converte-se à fé católica. Entra no «Times» como secretário de redacção.
1927 — Casa com Vivien Dayrell-Browning, que lhe dará um filho e uma filha.
1929 — Publica The Man Within,  o seu primeiro romance. Seguir-se-ão mais de trinta.
1932 — Começa a fazer crítica literária no «Spectator». Publica Combóio de Istambul, o primeiro de uma longa série de romances «ligeiros» aos quais, por não poder assiná-los com pseudónimo, ele chamou divertimentos.
1934 — Visita a África pela primeira vez: Libéria e Serra Leoa.
1935 — Começa uma coluna regular de cinema no «Spectator».
1936 — Publica Jornada sem Mapas, sobre a viagem de 1934 a Africa.
1937 — Com Evelyn Waugh e Elizabeth Bowen, tenta lançar «Night  and Day», um equivalente britânico da famosa revista «New  Yorker».  Mas um processo judicial movido pela actriz Shirley Temple e pela 20th Century Fox obriga «Night And Day» a fechar.
1938 — Enviado ao México para investigar as perseguições a padres, recolhe elementos para O Poder e a Glória, para muitos o seu melhor livro. Entretanto, publica outro ao mesmo nível, Brighton Rock.
1939 — Escreve o seu primeiro argumento para cinema. Publica O Agente Secreto.
1940 — É nomeado editor literário do «Spectator». Entra para o Ministério da Informação. Mais tarde é transferido para o Foreign Office, onde o encarregarão de diversas tarefas, uma das quais em Africa, para os serviços secretos.
1941 — Recebe o Prémio Hawthornden. Outros prémios importantes (Legião de Honra e Prémio Shakespeare, entre outros), bem como doutoramentos «honoris causa», seguir-se-ão ao longo dos anos.
1944 — Torna-se director literário das Edições Eyre e Spottis-wode.
1945 — Volta à crítica literária, agora no «Evening Standard».
1948 — Com François Mauriac, vai à Bélgica participar numa conferência católica. Parte depois para a Checoslováquia e para Viena.
1950 — Publica romances extraídos de dois argumentos cinematográficos seus, entre os quais O Terceiro Homem.
1951-1955 — Faz inúmeras viagens — à Malásia, à Indochina, ao Quénia, ao Haiti, a Cuba, à Polónia — enviado por publicações como a «Life», o «Paris-Match» e o «Sunday Times».
1953 — Publica Ensaios Católicos, que muitos consideram o seu livro menos interessante. Escreve a sua primeira peça de teatro:  The Living Room.
1957 — Vai a Cuba, à China e à Rússia.
1858 — Após uma nova visita a Cuba, regressa a Londres para assumir a direcção das edições Bodley Head, cargo que manterá dez anos. Publica O Nosso Agente em Havana.
1959-1960 — Vai uma vez mais a Cuba, e depois ao Congo Belga, à Rússia e ao Brasil.
1961— Publica Um Caso Arrumado.
1962-1971 — Vai à Roménia, a Cuba, ao Taiti, a Goa, a Berlim, à RDA, a São Domingo, a Israel, à Serra Leoa, a Istambul, ao Paraguai, à Argentina, à Checoslováquia, ao Chile. Entretanto, publica A Sense of Reality (1963), Os Comediantes (1966), Empresta-nos o seu Marido? (1967), Collected Essays (1969) e Viagens com a Minha Tia (1969). Em 1966, vai viver para Antibes.
1971— Publica A Sort of Life (primeiro volume de autobiografia).
1973 — Publica O Cônsul Honorário.
1977 — Integra a delegação panamiana que vai a Washington assinar o tratado sobre o Grande Canal.
1978 — Publica O Factor Humano.
1982 - Publica J’Accuse, um panfleto em que denuncia a corrupção das autoridades de Nice e as ligações delas ao crime organizado. Os problemas daí resultantes acabarão por obrigá-lo a partir. Em 1990, o «maire» de Nice fugirá para a América Latina, dando assim razão às acusações de Greene.
1983 — Arthur Lundkvist, jurado do Prémio Nobel, garante que Greene só receberá essa distinção «por cima do meu cadáver».
1984 — Publica Getting to Know the General.
1987 — Vai a Santiago do Chile participar num encontro internacional de intelectuais pela democracia.
1989 — Publica O Capitão e o Inimigo.
1990 — Muda-se de França para a Suíça.
1991— Morre em Vevey, nas margens do lago Genebra.

Luís Coelho
Expresso 13-04-1991



Graham Greene (1904-1991)
Foto copiada do Expresso





(Fotos Peter Stackpole e Larry Burrows. LIFE Archive, excepto as assinaladas)


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Os 'Srs. Cinema'

A Sic vai fazer 20 anos (7)



«A televisão, tal como os bailes e romarias, não são hoje como eram antes. São 
transformações sócio-culturais que não podemos parar.» (Manuel S. Fonseca, 1992)


Trabalho jornalístico de O Jornal em 09-10-1992, com Manuel S. 
Fonseca (SIC), José Vaz Pereira (RTP) e Lauro António (TVI).

A Guerra das Rosas de Danny DeVito, o 1º filme da SIC.



sexta-feira, 13 de julho de 2012

Alface

ou melhor
João Alfacinha da Silva


Coisas boas em jornais


Conheci o João Alfacinha em 1997 (creio?), quando ele foi convidado pelo Manuel S. Fonseca a fazer uns textos para um programa da Sic (Muita Lôco), em que eu escolhia uns segmentos de uma espécie de apanhados estrangeiros, o João Alfacinha fazia os textos e o José Figueiras depois dizia-os. Aquilo durou pouco tempo (já não me recordo muito bem) e deixei de ver o João. Anos depois encontrei-o na praia de Altura e descobri que tínhamos amigos comuns e várias vezes jantámos juntos. Falta só dizer que não me dava jeito nenhum tratá-lo por Alface (acontece a muito boa gente), mas eu gostava dele e isso é que é importante para mim.


«Ai! Creio que o “ai” (com exclamação, reticências ou a seco) é a palavra que melhor resume esta pátria e os filhos dela e, dando-lhe uns jeitinhos na entoação, aquela que nos pode levar mais longe. A todo o lado. E quem diz “ai”, diz “ui”, até porque os tempos vão de mais ais. Não?»



João Alfacinha da Silva.



Registado como João Alfacinha da Silva, no Alentejo que o viu nascer, foi mais tarde alcunhado por um colega de liceu, já na orla da capital, e transmutou-se em - Alface.

Bem lhe deve ter sabido a nova e abonada graça, mantidos o verde e o vegetal dos radicais próprios, porque logo a adoptou. Até hoje. Assim passou a assinar tudo o que escreve e é a esse nome que responde, em trato íntimo ou mais formal. Pratica um humor desmanchado, sempre à margem das convenções do dia e guarda prudentes distâncias da crista das ondas locais. No que respeita à sua prosa fi ccional pertence, de há alguns anos, à família dos autores publicados por uma editora especificamente singular - a Fenda; autor e editor espelham nesta relação o jogo, mais que operacional, da mão e da luva. Encaixam-se como poucos e é de crer que muito se divirtam pelo correr da aventura de dar forma publicável à obra, até que as páginas impressas surjam nas bancas e possam atingir o anónimo leitor (invariavelmente picado pelo chiste dos títulos), sujeito então a reagir com risos e risinhos, uma ou outra gargalhada, alguns sorrisos. O tom geral de cada livro é acidulado, por vezes desconfortável, já que o registo narrativo e a intenção que nele se pressente, vem ditado por uma lupa irónica, que observa o tempo e o lugar dos intervenientes na acção por ângulos onde a complacência não tem direitos adquiridos. Alface inventa para as suas personagens um "modus" de existir que só a moldura caricatural, onde as inscreve, consente adoçar. Mas, como se exige ao bom tempero de uma salada, são as gotas de limão ou o fio de vinagre que realçam o gosto dos verdes vegetais e assim conseguem entreter o nosso paladar. O seu último romance é digno da leitura de qualquer alfacinha, particularmente no mês de Junho, ainda para mais neste ano da graça do Senhor com eleições autárquicas. A percorrer as páginas lá se encontra (entre muitas outras idiossincrasias da cidade e do seu governo) o reconhecimento afectivo de um bairro, o som coreografado das marchas, o cheiro a sardinhas, a evocação do mais popular de todos os santos... O título não ilude - "Cá Vai Lisboa".


Alface, diz-me quem és.

Hoje? Hoje, acho que sou o rapaz do trapézio voador, uma atracção do circo; sou um escritor, um desempregado de longa duração. Nasci no Alentejo, em Montemor-o-Novo, onde vivi a infância e parte da adolescência; vim para o Liceu de Oeiras, donde transitei, por desígnio familiar, para Direito; por ali andei três anos, mais pelo bar de Letras do que pelas aulas da minha faculdade, acumulando com o experimentar de Lisboa à noite, mais os copos e as brincadeiras adjacentes; depois desisti e ainda estive cerca de um ano numa outra bizarria chamada ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), onde à época abundavam católicos progressistas e seminaristas com grandes sapatos. Também não tive jeito para aquilo. Achei graça, "a posteriori", ver que o meu calvário académico coincidia com o do general Eanes, que também andou em Direito e no ISPA. Entretanto, tive de começar a trabalhar, primeiro no jornal "República" e depois, por convite do Álvaro Guerra, fui escrever para televisão, para uns programas produzidos pelo João Martins - o Ensaio e o Impacto; a seguir a uma desavença com o produtor, o Guerra, o Zé Nascimento, os irmãos Matos Silva e eu rompemos com essa colaboração e decidimos criar uma nova cooperativa de cinema; ainda processámos o antigo patrão, mas o nosso advogado, que era o Marcelo Curto, com o rebentar do 25 de Abril andava mais virado para a revolução do que para o nosso processo e só com alguma ajuda do Galveias Rodrigues é que a Cinequipa conseguiu aguentar-se; entrei por essa altura para a antiga Emissora Nacional, onde conheci pessoas muito curiosas, o Herberto Helder e outras, de quem me tornei amigo. Fui continuando a escrever textos para rádio e televisão, até que me chateei com uma fase muito "militante" que atravessou a RTP durante um certo tempo e saí da Cinequipa; mantive-me durante 20 anos na rádio, já chamada Rádio Comercial, colaborando episodicamente em jornais e televisão. Casei e tenho duas filhas; a mais velha é pintora e designer gráfica e a outra é bailarina, a estudar de momento em Bruxelas; já sou avô. Quando saí da rádio, por volta de 92, fiz uma daquelas idiotias que muitos eram tentados a fazer - imaginei que poderia sobreviver como "free-lancer".

Ainda não referiste outra tentação, a da escrita ficcional, que nunca mais te abandonou e que já tinha feito surgir, pelas voltas do percurso que acabas de alinhar, alguns livros de tua autoria.

Pois. Em 1977 publiquei, em parceria com Manuel da Silva Ramos (regressado de um exílio em França), o primeiro livro de uma trilogia de ficção, "Os Lusíadas", editado pela Assírio & Alvim; o segundo, "As Noites Brancas do Papa Negra", é de 82 e o terceiro, "Beijinhos", saiu em 96 (os dois últimos editados pela Fenda). Esta trilogia, a que demos o nome genérico de "Tuga", era uma espécie de meditação ficcional sobre Portugal: "Os Lusíadas" correspondiam ao movimento de expulsão, à descoberta, à saída para o mundo; "As Noites Brancas..." referem-se ao estar lá fora, a um tempo de pousio e "Beijinhos" é o adeus, o rebarrigar outra vez, ditado pelo fim do Império, pelo acabar da aventura planetária, com o consequente regresso à fonte matricial de retornados e emigrantes. Escrevi ainda dois livros de contos, já sozinho. O primeiro "Cuidado com os Rapazes" (que vai ser reeditado este ano) - motivou até uma história que se tornou famosa, com Pedro Santana Lopes, à época presidente do Sporting: a editora e eu decidimos fazer sair, para efeitos de "marketing", um autocolante que dizia apenas - Cuidado com os Rapazes, e que foi enviado dentro de envelopes brancos, pelo correio, para uma série de nomes e moradas; era um "teaser" promocional, barato e simples, mas ele veio para a televisão dizer que andava a ser ameaçado e que ia entregar o caso à PJ para, através da análise de impressões digitais, tentar localizar os autores; mandei-lhe o livro e uma carta a explicar o que era aquilo e a história morreria por ali, não fora a glosa de alguns comentadores de serviço; enfim, a coisa não lhe correu lá muito bem. Escrevi ainda uma série de livros juvenis - "Um Pai Porreiro Ganha Muito Dinheiro"; "Uma Mãe Porreira É Prá Vida Inteira"; "Filhos Assim Dão Cabo De Mim"; "Avó Não Pise o Cocó"; "A Prima Fica por Cima". Trata-se de uma história dividida em cinco livros, com as mesmas personagens, que veio depois a sair no Círculo de Leitores, num só volume, com o título - "Uma Família Sem Mestre". O segundo livro de contos chama-se "O Fim das Bichas" e leva um subtítulo irónico - "O fim das bichas é o princípio das filas". Em 2004 saiu o meu primeiro romance a solo - "Cá Vai Lisboa".




Para além da literatura, outras colaborações (umas mais episódicas do que outras) têm ocupado a tua vida, como atrás referiste - para a rádio, televisão e jornais. Consegues apontar como preferencial, para a escrita que praticas, algum destes três meios? 

Talvez a escrita para televisão. Passei por uma experiência engraçada, que foi coordenar durante um ano um grupo de argumentistas de telenovelas, na NBP, para a TVI. Tenho pena que o género não seja mais bem feito, porque acho o formato muito engraçado, em termos de agilidade da escrita; é um sucedâneo do "roman feuilleton", dos folhetins, no fundo é uma linguagem televisiva, mas contemporânea, de coisas que vêm do tempo da Maria Cachucha. Também não tive muito jeito, ou paciência, para continuar por ali e, se calhar, o meu lado elitista entrou em colisão com aquela maneira de escrever, porque havia coisas que me custavam a engolir.

O teu lado elitista?!!

É o gostar de imaginar que a literatura, no seu melhor, é para pouca gente. Sou muito ligado à forma de escrever, prezo muito uma escrita com dinamite dentro, exigente de um ponto de vista formal. O que escrevo tem de me agradar a mim, seja romance, argumento ou diálogos de novela. Como a escrita é o que verdadeiramente me dá prazer e como em literatura não gosto, de facto, de muitas coisas, torna-se complicado aceitar um determinado número de soluções.

É território onde não fazes concessões?

Já fiz menos - os meus primeiros livros (escritos em parceria) eram mais radicais, ao nível de uma linha joyceana de trabalhar as palavras ao limite, quase na ordem da anti leitura; depois, já a escrever a solo, os livros foram ficando mais "legíveis", digamos assim. Como não escrevo ficção por dinheiro (não está dito em lado nenhum que tenha de ganhar dinheiro com a literatura), esse é o meu espaço de liberdade, onde só faço aquilo que quero; ora a escrita de televisão, rádio e jornais, é necessariamente uma escrita de compromisso, para o grande público, em funil aberto, ao passo que a literatura pode funcionar para nichos de afinidades e sensibilidades electivas. Não tenho a presunção, seria incapaz, de assumir uma lógica de "best-seller".

Segues as vendas dos teus livros?

A Fenda é uma casa pequena, marginal, que funciona ao arrepio de alguma lógica comercial, e nisso é uma editora quase suicidária. Publica obras que não cabe na cabeça de ninguém publicar. O Vasco Santos é um editor único - tanto publica coisas inacreditavelmente boas, que podem passar despercebidas, como não resiste a dizer que sim a um amigo que escreveu não sei quê e lá fica o armazém cheio de livros que não vendem; também não é de fazer o "follow-up" mediático dos livros, está fora dos sistemas de promoção. Esse lado quase clandestino da editora agrada-me muito. Talvez seja uma ideia discutível ou romântica, mas acho que a melhor literatura é uma coisa para pouca gente. Para a muita gente há muitos livros, muitos deles estimáveis, mas os verdadeiramente bons são para poucos. Será um tique classista, mas para mim alguns dos melhores prazeres são para raros, embora admita que a comoção a ver uma telenovela seja tão legítima como a de ver um filme do Kubrick. Não há mensurabilidade para a emoção ou para o sentido do prazer que as pessoas sentem; a mim ocorre-me, por exemplo, comover-me com coisas pífias - não digo que me comova desalmadamente com "Música no Coração", mas já me aconteceu com filmes de fraca qualidade, uns livros menos bons, alguns momentos colectivos, comover-me absolutamente. Se calhar com coisas que não merecem.




E quem é que define o merecimento de que falas? Que pretensão te assiste para dizeres - "Comovi-me com isto, mas isto não merece a minha comoção"?

Nalgumas coisas tu consegues topar o truque de que são compostas; no cinema, por exemplo, é frequente isso acontecer ou, na escrita, onde também consegues dar-te conta das costuras de fabrico. Mas, independentemente das artimanhas, por vezes não deixas de ser tocado por um conjunto de emoções, digamos, primárias, pouco elaboradas ou imediatistas. A adesão que as pessoas têm ao futebol é dessa ordem - quando foi a festa do Benfica, o meu clube, não fui para a rua, mas estive até às quatro e tal da manhã a ver aquilo tudo na televisão. E chorei. Este tipo de sentimento é muito humano e mais do que legítimo; se cerebralizarmos as emoções deste género, elas não resistem, de tão simplistas que são. Mas. há um escritor polaco de quem gosto muito, Gombrowicz, que resume isto melhor: "Quanto mais inteligente, mais estúpido." Ou seja, uma excessiva elaboração intelectual mata a humanidade que é desejável não deixar morrer em nós. Passa-se o mesmo com a culinária, não há prato hiper-elaborado da cozinha francesa, sustentado por um grande aparato teórico, que possa competir com o sabor refinadíssimo de uns secretos de porco preto salpicados com umas pedrinhas de sal. A simplicidade é de uma grande exigência e credora de um imenso saber. É a mãe da criação.

Começaste por falar no simplismo manhoso que reveste certas obras; dizes-te elitista, embora confesses emocionar-te por vezes com coisas de menor merecimento; afirmas que o melhor é para poucos e louvas a simplicidade, que só o melhor pode reflectir. Queres dizer tudo isto de outro modo, mais claro?

Digo que me perturba um bocado que algumas análises teóricas maculem o prazer que eu possa experimentar, por exemplo, a ler Melville, ou Emilio Salgari, ou outra coisa qualquer. Acho que há uma virgindade dos sentidos, sobretudo no campo artístico, a que dou grande valor. Das poucas coisas que justificam a existência, pelo menos a minha, é o ter alguma sensibilidade artística; não a tenho em todas as áreas, porque há matérias a que sou imune - se a escultura não me toca, já a arquitectura tem coisas que me deslumbram (lembro-me de ter ficado banzado com alguns edifícios tremendos de Hong Kong e hei-de ir ao Porto ver a Casa da Música); na pintura posso não reagir a muita coisa (sou um autodidacta, embora tenha ao lado a minha mulher, que é uma excelente pintora), mas comovo-me com o Turner e fico passado com o Kitaj, um americano que vive em Londres e que trabalha muito em relação com o cinema e com a sensualidade da sua experiência pessoal em prostíbulos catalães. Ou seja, as coisas demasiado complicadas, talvez por falta de informação, passam-me ao lado, como algum do cinema contemporâneo, mesmo a nível do argumento, que me deixa indiferente.

Já deste a entender que gostas cada vez mais de narrativas claras, com personagens bem definidas, a dar corpo consistente às histórias que habitam. Cumpres isso naquilo que fazes?

A escrita que hoje faço, individualmente, é uma escrita ligada a duas ou três paranóias que me são caras: a história (temos de agarrar as pessoas com uma boa história), que deve vir bem escrita, não se pode desleixar o aspecto formal (conheço muito boas histórias muito mal escritas); o sentido de humor, de que gosto particularmente em literatura (não sou pela anedota e pelo óbvio); a força da escrita, isto é, para mim a escrita tem de ser contundente, eficaz (a moleza das frases e personagens enjoa-me).




Se eu não tivesse lido o "Cá Vai Lisboa", como é que me "venderias" a história, de forma a conquistares uma nova leitora?

Comecemos pela origem da história. Trabalhei, como já sabes, numa produtora de televisão com o Nicolau Breyner, e um dia disse-lhe que tinha uma ideia para uma "sitcom" que podia ter piada: um clube "gay", em Alfama, resolve candidatar-se a representar o bairro nas Marchas dos Santos Populares. O Nicolau atirou-se ao ar - "Lá estás tu com as tuas maluqueiras, ninguém pega nisso." Deixei passar, escrevi um bocadinho e depois, quando saí das telenovelas, enfiei-me durante três meses na casa que ainda tenho em Montemor e, até como processo de regeneração, escrevi aquilo de enfiada - levantava-me às 7 da manhã e só parava quando já não havia luz do dia. Foi muito duro, até porque era Inverno, a casa é grande, sem aquecimento central... Foi agreste, mas eu precisava daquele tratamento de choque. É possível que no livro se note alguma dessa violência, sempre presente no processo de recuperação do gosto pela escrita. Voltando à história - peguei numa situação hipotética, mas não tão distante da realidade quanto possa parecer: um presidente da câmara (personagem de ficção mas se calhar com alguns traços de anteriores presidentes da Câmara de Lisboa), que apoiava tudo o que era minorias e, no caso, um grande entusiasta da inserção num santuário do marialvismo lisboeta de um clube "gay", patrocina a sua existência em Alfama; este clube tem na história uma função muito benemerente, entre outras actividades organiza aulas para meninas, meninos e adultos, o que faz com que, a pouco e pouco, as boas gentes do bairro o aceitem; a coisa começa a dar para o torto quando o autarca é posto perante o desejo de o clube ficar com a representação de Alfama no cortejo das Marchas e tenta tudo para boicotar o projecto. O livro faz, no fundo, um retrato satírico, penso que imaginativo e bem-disposto, de tradições lisboetas ligadas à mitologia do "bom povo" bairrista: um concurso de lançamento de sardinha (em vez da malha), de sardinha, sim, mas da espanhola, que essa não terá outra serventia que não seja para tal finalidade; a existência de uma associação musical, a Associação 25 do Corrente, etc. Não existe nele uma verdadeira denúncia da corrupção autárquica, mas há um certo gozo em relação ao que, no fundo, é o poder discricionário de alguém que se crê um pequeno rei num pequeno microcosmos, no caso Lisboa e um bairro popular. O que é que o livro tem mais? Acho que alguma agilidade, que pode ser um bocado chocante, em considerar a comunidade "gay". Tenho para mim que cada um faz com o seu corpo aquilo que lhe apetece, mas as pessoas "gay" talvez não achem muita graça ao livro, talvez pensem que o que lá está escrito é desrespeitar a justa luta dos "gay" pela dignificação do seu estatuto, essas tretas que são a homogeneização de comportamentos. Ignoro se passarei por homofóbico, acho que não o sou, só que achei graça à ideia de meter uma comunidade "gay" dentro de um sítio que não tem pontos de identificação com ela e que só pode aceitá-la até um certo limite, o limite do possível. Como a hipocrisia é o grande cimento nacional, o limite é o "desde que não incomode". Quando passa a incomodar, não há aceitação da diferença que resista.





O livro correu bem, em termos de crítica e vendas?

Sim, atendendo ao facto de ser uma pequena edição e à dificuldade da Fenda de gerir uma lógica comercial de promoção. Tive reacções positivas de muitas pessoas, que o acharam divertido, refrescante, diferente do que por aí anda. As pessoas reagem bem ao descaro presente no livro, ao chamar os bois pelos nomes. Também saíram coisas simpáticas na imprensa, rádio e televisão, mas abro uma pequena ressalva em relação ao suplemento literário do jornal PÚBLICO, que até agora não publicou uma linha sobre aquilo. Poderia especular sobre as razões da abstinência, presumindo alguma incomodidade em afrontar a temática e a escrita, politicamente incorrectas, mas não vale a pena, não me apetece fazer o exercício.

O que se escreveu e falou sobre o teu livro pegou no lado de possíveis semelhanças com personalidades reais, nomeadamente dirigentes autárquicos?

Sim, aqui e ali houve referências à possibilidade de se apontar ao executivo de Santana Lopes, o que não colhe, porque se trata realmente de personagens de ficção, com ganchos muito ténues de inspiração directa na vida da cidade. Não tenho qualquer pretensão regenerativa da classe política, para a qual me estou verdadeiramente nas tintas. Penso de resto que, com a mania, provinciana e muito portuguesa (sobretudo dos que se reclamam de cosmopolitismo!), de se achar que o que vem lá de fora é que é bom, não me repugnaria nada mandar vir um Delors, mesmo um Helmut Kohl, e até aproveitar o Scolari (e o Fernando Pinto, da TAP, como sugeriste) para integrarem os vários patamares do poder executivo que dirige o país, acumulando com funções que porventura exerçam no momento.

Que avaliação fazes da literatura portuguesa contemporânea?

Não muito satisfatória, devo confessar. Temos bons autores, bons poetas e bons romancistas, mas, no conjunto, não me parece uma literatura muito potente. Se pensares no que nos chega da América do Norte e do Reino Unido (e não é só uma questão de escala ou de língua dominante), temos mesmo de baixar a bolinha.

Eu não sinto que deva baixar qualquer bolinha em relação à poesia portuguesa! Nessa matéria, peço meças ao grande mundo com total tranquilidade.

Terás razão, o defeito é capaz de ser meu, leio pouco poesia. Dos mais antigos gosto dos trovadores, claro, de Camões, Bocage, Cesário, Nobre, Botto e, dos mais próximos, leio com gosto o Grabato Dias, o Herberto, o Sena, o Pimenta, o Nemésio, o O'Neill, algumas coisas do Armando Silva Carvalho, do Gusmão, do Franco Alexandre. Mas sou da prosa, a mim é a prosa que me enche as medidas. Acho graça a certas coisas da Agustina, mas não tenho saco para o Saramago, ou para o Lobo Antunes, por exemplo. Li recentemente dois belos livros "A Escola do Paraíso", do Rodrigues Miguéis, e "Apenas uma Narrativa", do António Pedro, uma obra pequenina e notável. Carrego sempre a sensação de que ler um grande livro me impede de ler outros livros menores. Sabes o que me seduz na prosa? O que me comove e atrai é o compromisso (que lhe deve presidir) entre a ética, a forma e uma certa demência fundadora do universo da escrita. A prosa, mais do que a poesia, desafia Deus.

Se calhar, por seres um prosador, desconfias da dimensão de mistério, que é o que preside à criação do poeta.

Talvez.

Lês e escreves todos os dias?

Nem pensar, lavo os dentes, tomo banho, como e durmo todos os dias, mas só escrevo e leio quando estou para aí virado. A literatura não me é uma canga, tem de me apetecer, tem de me dar prazer e, no meu caso, preciso de tempo para repensar o que fazer a seguir, para ser surpreendido; tenho de duvidar muito de mim, pôr em causa a minha capacidade de escrever e, superando esses impasses, superar-me e atirar-me à bendita página branca; tenho de saber enfrentar o exercício de aprendizagem e coragem que a literatura exige. Abomino aquela técnica das reproduções à Warhol, essa espécie de comboio mecânico para servir a clientela e facturar sem descanso. De regresso à tua questão, não pertenço à família dos danados, dos obcecados com a escrita e a leitura. Nem me sinto obrigado a viver da ficção, esta escrita ficcional que pratico é a minha Gorongoza, uma reserva de vida selvagem e doméstica. É óbvio que aceito encomendas e gosto de corresponder, quando pedem que escreva para jornais ou para outra coisa qualquer - já fiz publicidade, já fui conselheiro sentimental com uma coluna própria, acho que só me falta escrever obituários. Há que fazer pela vida.

Dá-me uma palavra de eleição.

Ai! Creio que o "ai" (com exclamação, reticências ou a seco) é a palavra que melhor resume esta pátria e os fi lhos dela e, dando-lhe uns jeitinhos na entoação, aquela que nos pode levar mais longe. A todo o lado. E quem diz "ai", diz "ui", até porque os tempos vão de mais ais. Não?



Texto Maria João Seixas, 26 de Junho de 2005, jornal Público
Fotos de Pedro Cunha, copiadas do caderno Pública
Fotos dos livros encontradas em blogoperatorio.blogspot.pt e
www.alfarrabistaavelarmachado.com.pt


João Alfacinha da Silva (1949-2007)