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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Discussão

de
Mário-Henrique Leiria


- Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.

Desculpei mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde, isso sabia eu. Que mo viessem dizer, era outra coisa. Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos. Acho um snobismo.

- Eu sou democrático - rugi entre dentes, como resposta. - Tenho amigos no exílio, todos democráticos. Foram para lá por serem democráticos. É um sacrifício que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático. Eras capaz de fazer isso?

- Não sou democrático.

Não havia resposta a dar. nenhuma. Ele não era democrático, não sabia de democracia.

Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me afirmaram que lá é que é a democracia.

Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista! Viram isto ?


Mário-Henrique Leiria
Contos do Gin-Tonic 


domingo, 13 de novembro de 2011

O menino e o caixote

de 
Mário-Henrique Leiria

Ilustrações de Tiago C. Lourenço



-Não pode ser - disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos.
-Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm - afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo.


-Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau.


O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode, sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões.
Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão, ali em casa!


Não era a vassoura atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera.


Na cozinha, lá ao fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio.


O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o, pisando firme.
O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televisão o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido.


-Agora vamos caçar, Baluba - explicou o Ernestinho ao caixote.

-Que faz o meninho aí com esse caixote? - perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido.

O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.
-Mata o velho, Baluba! - gritou, num desespero.


O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do senhor Sousa.


Mário-Henrique Leiria (1923-1980)
"Contos do Gin-Tonic", 1973


Ilustrações de Tiago C. Lourenço. Projecto académico desenvolvido no âmbito da disciplina de Ilustração I, cadeira curricular do Mestrado em Ilustração e Animação, no IPCA. (Ler Aqui)



sábado, 12 de novembro de 2011

Mário-Henrique Leiria e o Coiso


MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA
Escritor 1923–1980



QUANDO TUDO ACONTECEU...


1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa. - 1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos. - 1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida. - 1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África. - 1958: Visita a Inglaterra. - 1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se. - 1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil. - 1970: Regressa a Portugal. - 1973: Publica Contos do Gin-Tonic. - 1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal. - 1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos). - 1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) - 1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. - 1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).

1975 – Almoço dos colaboradores de “O Coiso”, algures no Bairro Alto. À esquerda, em 1º plano, o Carlos Barradas, seguido do Mário-Henrique, o Zé Tó, a Mizé, a Mila e eu (Artur Couto e Santos). À direita, o Rui Lemus, quatro tipos cujo nome me escapa, mas que trabalhavam no República e, lá ao fundo, de bigode, o Belo Marques. Foto e texto de www.coiso.net.



O Coiso
Suplemento semanal do diário A REPÚBLICA 
Mário-Henrique Leiria era chefe de redacção. 

Com Rui Lemus, Carlos Barradas, Couto e Santos e uns tantos outros, congeminas e a 7 de Março de 1975 és o chefe de redacção de O COISO, novo suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Provocação e humor negro a acelerar nas curvas, entrevistas apócrifas com Spínola, Kissinger, Hitler, Pinochet, Salazar, Marcelo Caetano, etc. e fotomontagens a ilustrá-las; por exemplo, Kissinger a dançar empunhando uma foice e um martelo; ou o Spínola convertido em musculoso “cabo de mar” na praia de Copacabana... Mas a irreverência incomoda muitos dos jornalistas teus colegas. Nem sequer os comunistas a aparam lá muito bem, porque estás sempre a gozar com tudo e com todos, até com os chapéus, os gorros, os bonés, os barretes e as carapuças do camarada Brejnev... Na Redacção, por entre gargalhadas, quem frontalmente te apoia é o Fernando Assis Pacheco, também o Álvaro Belo Marques e poucos mais.


Redação do jornal A República em 11 de Fevereiro de 1975. Foto do Arquivo Nacional da Holanda


A fome começa a rondar-te porque os direitos autorais dos teus Contos e Novos Contos do Gin chegam sempre tarde e a más horas ao teu bolso. Um dia preparas-te para publicar na primeira página de O COISO uma violenta caricatura não só à boina, mas também à cabeça do Raul Rego, o director d’A REPÚBLICA. Caricatura congelada pela direcção do jornal e eis a gota que faz transbordar a hostilidade entre o radicalismo m-l dos operários gráficos e o socialismo bem comportado da administração e da maioria dos redactores. Extremam-se posições. Na rua, frente ao jornal, enfrentam-se piquetes ora aplaudidos, ora vaiados pelo público que, de hora a hora, vai mudando conforme as mobilizações partidárias. A REPÚBLICA acaba por ser suspensa, fechada mesmo em 19 de Maio de 1975. Também O COISO, está-se a ver. Do suplemento lançaste 11 números. O último foi em 16 de Maio de 1975. 
(de Fernando Correia da Silva, Ler Tudo Aqui)