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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

GRIFFITH E AS CENSURAS CORRETAS


Texto de
João Bénard da Costa




A filmografia de D. W. Griffith em imagens. De 1908 a 1951, 535? filmes. 
Carregado por MoviePosterMM em 26/04/2011.


1 - A Cinemateca conserva muitos cortes de censura. Ou seja, muitos rolinhos de pedacinhos de filmes (em certos casos, rolos e pedaços) que os censores, antes do 25 de Abril, cortaram em inúmeros filmes, quando achavam que estes genericamente podiam ser vistos, desde que expurgados de certas cenas mais inconvenientes. Há cinco anos, Manuel Mozos fez um notável trabalho de montagem desses cortes, o que permitiu mostrá-los.

Os espectadores dessas sessões, como possivelmente os leitores desta crónica, ouvindo falar de “cenas inconvenientes”, punham-se a pensar coisas. Do género daquela deliciosa frase, inventada depois do 25 de Abril, “cenas eventualmente chocantes”. Preparavam-se para indecências ou esquerdices. Enorme foi o espanto deles quando depararam com imagens que hoje fazem parte do cotidiano deles, já não digo cinematográfico mas televisivo: um decote mais ousado, uma rapariga mais brejeira, uma maminha de fora, um actor português mais lúbrico a atirar com uma mulher para a cama e a dizer-lhe ofegante: “Madalena, hás-de ser minha.” Ou um padre a conversar com um comunista, uma referência a uma greve ou a um soldado desertor.

A gente mais nova ficava abismada: “Era isto que eles cortavam?” Riam-se muito e não queriam acreditar. Ou perguntavam que era feito dos outros, os cortes que esperavam ver e não lhes oferecíamos. Ignoravam que, até finais dos anos 50, as indecências já não existiam na origem, se os filmes eram americanos e que mesmo nos filmes europeus, mais liberais em política e em costumes, havia conta, peso e medida. De 54 até 74 mais coiso menos coiso, foi-se mudando? Foi-se. Mas ou se mudou tanto que o filme nem cá chegava, ou mesmo essas mudanças, ousadíssimas nessas revoltas décadas, já são hoje tão banais que não contam conto nem acrescentam ponta. A censura, em vez de provocar asco, provocou risota. Sociologicamente era interessante. Nem mais nem menos.

Avanço no tempo. Lembram-se daqueles filmes, “libertados” depois do 25 de Abril e que esgotaram centenas de dias os milhares de lugares de salas que ainda os tinham? Género: O Último Tango em Paris? Hoje, os nascidos depois de Abril nem estremecem e acham a coisa tremendamente chata e tremendamente pretensiosa, o que de resto até é.

A censura é de antanho? Em sexo e em política parece sê-lo, embora haja ainda reputações duvidosas (Catherine Breillat ou Vincent Gallo) que inspiram nas “sequências que vocês sabem”, como deliciosamente dizem os Cahiers a propósito de The Brown Bunny do citado Gallo. “Les cinq minutes crues”. Mas só funcionam porque, muito hipocritamente, os realizadores se distanciam delas para parecerem o que não são e não serem o que parecem.

Poucos reparam, porém, que fora dessas zonas de clássico interdito, inocências de antigamente seriam hoje tesouradas por toda a gente e em toda a parte, com a mesma admirável boa consciência de dever cumprido que foi sempre a dos censores. Invocá-las como exemplo de censura, provavelmente, arrepiará tanta gente como há cinquenta anos arrepiaria se se mostrassem as tais “sequências que vocês sabem”.


 Cartazes do filme The Birth of a Nation, (O Nascimento de uma Nação, 1915), 
de D. W. Griffith, encontrados na net.



2 - A primeira vez que pensei nisto mais a sério foi há um bom par de anos, quando, num congresso de cinematecas, se exibiram diversos filmes publicitários, desses que, quando eu era imberbe, antecediam o filme propriamente dito.

Um desses filmes publicitava os cigarros Camel. Como era do uso, tinha uma pequena história para levar a água ao seu moinho. Qual era a história? A de um pai de família particularmente irascível. Chegava a casa e desatava aos berros com a mulher e a distribuir bofetões pelos filhos. Um dia caiu nele. Aquilo não era vida que se levasse. Abriu-se com um amigo. Este ouviu-o e perguntou-lhe: “Tu fumas?” “Não”, respondeu o dos maus fígados. “Então experimenta estes cigarros (grande plano de um maço Camel) e vais ver como essa irritabilidade te passa.” Cena seguinte: casa do nosso homem. Maço de Camel. Esparreirado num maple, entre baforadas de fumo, afagava a mulher e beijava os pequenos. Sorria, beatificamente. Uma voz off comandava: “Faça como ele. Fume Camel.”

Um tal filme, que, nesses tempos, fumadores e não-fumadores viam com o mesmo bocejo com que hoje os teenagers vêem a margarina de Marlon Brando, seria autorizado agora em qualquer cinema ou em qualquer televisão? Quem me responder que graças a Deus que não (a humanidade e a ciência evoluíram) pense só um segundo se não foi sempre essa a justificação para qualquer censura. Estão a tomar conta de mim? Salazar também estava. Se me explicarem a diferença, agradeço.





O filme mencionado por João Bénard da Costa: The Mistery of the Leaping Fish de John Emmerson (1916) com Douglas Fairbanks, e argumento de Tod Browning. A música é de Kevin MacLeod. Carregado por TheVideoCellar em 28/10/2011.


E não vou tão longe que vos lembre um filme de John Emerson de 1916, com Douglas Fairbanks no protagonista e argumento de Tod Browning, que, nos anos 80, para minha grande surpresa, esgotou a lotação da Cinemateca num ciclo dedicado a Tod Browning. Chamava-se The Mistery of the Leaping Fish e contava as aventuras de um detetive chamado Coke Ennyday. Quem estranhasse o nome era logo esclarecido no início, quando o sujeito aparecia com um frasco de coca (a palavra cocaína em letras convenientemente garrafais). Era um detective de altos e de baixos. Quando estava em alto era imbatível. Quando em baixo deixava-se vencer pelo mais inapto amador. Mas como o Poppeye dos desenhos tinha uma receita infalível para recuperar a forma. Não eram os espinafres, era o pó. Snifava um bocadinho e não havia mistério que não resolvesse, mesmo o do peixe saltador. Em 1916, era provavelmente um filme cómico, próprio para gente de todas as idades. Nos anos 80, tornou-se (em Lisboa pelo menos) um filme de culto. Se tivesse estreado numa sala ou passado na televisão, imaginem a berraria.



Capa do catálogo da Cinemateca do Ciclo D. W. Griffith de 2004.

3 - Mas se me puxou o pé para esta conversa foi porque começou hoje, na Cinemateca, uma muito aguardada retrospectiva Griffith. Começou com um dos seus filmes mais famosos: The Birth of a Nation (1915), de que é costume dizer-se que marcou o nascimento de uma arte e de uma indústria. A arte do cinema, nunca antes elevada a tais píncaros e que raramente os conheceu tão altos no futuro. A indústria cinematográfica, pois que foi o primeiro filme que, com uma duração de 3 horas e 5 minutos e o custo, inacreditável para a época, de 110 mil dólares, rendeu de lucro líquido 4 milhões de dólares, coisa de fazer empalidecer de raiva os nossos lusos aprendizes de indústrias de hoje, que para aí andam na vozearia do costume.

Foi também o primeiro filme que pôs meia América a discutir com outra meia, pois que o ponto de vista de Griffith, sobre o que aconteceu nos estados do Sul após a Guerra da Secessão, horrorizou liberais e deleitou reaccionários. Chamaram-lhe racista, chamaram-lhe tudo. Griffith publicou em sua defesa um manifesto chamado The Rise and Fall of Free Speech in América, mas passou o resto da vida a tentar redimir-se da tenebrosa fama que os progressistas americanos lhe arranjaram.

Muita água correu sob as pontes. Filmes mudos deixariam de ser vistos. Griffith terminou a carreira em 1931 e morreu em 1948. O escândalo de The Birth of a Nation parecia bem sepultado.

Mas, nos anos 70, esses filmes julgados inválidos para o comércio reapareceram em deslumbrantes restauros e foram relançados com pompa e circunstância e acompanhados por orquestras ao vivo, como se usava quando foram feitos. Tudo muito bem, já que era quase unânime a aceitação de genialidade de Griffith, ou de Griffith “como o maior”, até que se chegou a The Birth of a Nation. E, quando se anunciou que o filme ia ser reposto com o mesmo aparato, caiu o Carmo e a Trindade, ou seja, as comunidades negras norte-americanas. Recuperar essa monstruosidade racista, esse filme com brancos pintados de preto, só bons quando apatetados e vilões quando de vara na mão? A polémica de 1915 reacendeu-se em 1985 com muito mais estrépito e com muito mais ódio. A tal ponto que nenhuma Cinemateca americana ousou apresentar o filme em versão concerto, apesar de ser dos raros casos em que a partitura original se conservou.


Cena do filme The Birth of a Nation, (O Nascimento de uma Nação), 
de D. W. Griffith (1915), encontrada em wikipedia.com.

A primeira vez em que o filme foi assim mostrado foi em Portugal (Lisboa e Porto) em 1995. Não acreditam? Juro-vos que é verdade. E mesmo assim, a maestra americana - Gillian Anderson - que recuperou a partitura e, com a ajuda do britânico Nicholas McNair, a executou no CCB e no Carlos Alberto, achou-se no dever de preceder tão históricas sessões com um discurso em que disse que, ao rever o filme, não podia calar a sua repulsa e o seu nojo perante tão repugnante racismo, que devia merecer de todos a mesma visceral condenação. Não discutia que The Birth of a Nation fosse uma obra-prima, mas era uma obra-prima maldita devido à danada ideologia do seu autor.

Ou seja, quase 90 anos depois da estreia mundial (essa estreia que tão comoventemente Peter Bogdanovich recriou em Nickelodeon) “o filme em se que fundou uma arte” continua a ser, pelo menos na América, um filme proscrito e um filme censurado.

Na altura, zanguei-me a sério com a “maestrina”. E perguntei-lhe que pensava ela do género por excelência do cinema americano, o western, onde os índios são sempre maus e os cowboys são sempre bons. Respondeu-me que índios já os não havia e os negros estavam no Governo americano e, mais dia menos dia, na Casa Branca. Não se deu conta que a resposta fundamenta a censura. Hoje, como ontem, arma de todas as correcções contra todas as incorrecções.

Mudam estas, não mudam aquelas. Estou a dar vivas ao Ku-Klux-Klan? Se é isso que pensam, absolvam depressa os coronéis da Rua da Misericórdia. Eu, por mim, tenho tão pouca misericórdia por eles como pelos que me querem fechar os olhos para a cavalgada final de Lillian Gish e Henry B. Walthall, rodeados por embuçados de branco no nascimento de uma nação.

João Bénard da Costa - 2004

Texto encontrado em www.focorevistadecinema.com.br



The Birth of a Nation, (O Nascimento de uma Nação), originalmente chamado de The Clansman, é um filme de 1915 dirigido por D. W. Griffith e baseado no romance "The Clansman", de Thomas Dixon. D. W. Griffith, co-escreveu o argumento (com Frank E. Woods ), e co-produzio o filme (com Harry Aitken). O filme estreou em 8 de fevereiro de 1915. No youtube encontra todo o filme se o quiser ver. Carregado por asimranibrahimi em 11/12/2010.





domingo, 29 de julho de 2012

Aquele Inverno em Lisboa


Texto de
João Mário Grilo



Coisas boas em jornais



João Mário Grilo
A acreditar em Scorcese, que dizia ser o ecrã a melhor escola de cinema do mundo, ainda se estará para ver quantos cineastas se não terão feito entre Dezembro de 1985 e Março de 1986, nas salas da Cinemateca Portuguesa e da Fundação Calouste Gulbenkian, quando da realização do ciclo de cinema d'0 Musical (e o artigo é aqui importante, como já o havia sublinhado João Bénard da Costa, no início do 1° volume do respectivo catálogo).
Na era do vídeo (e dos pós do vídeo) e das suas múltiplas, variáveis e muito discutíveis (in)definições, já pouco espaço (económico) haverá para privilégios; por isso, dignos da mais verde das invejas estão aqueles que olharam, nessa altura, as cópias irrepreensíveis de Brigadoon, de Meet Me in St. Louis ou de The Pirate, todos de Vicente Minnelli, ou ainda, num mágico fim–de–semana prolongado, viram os Berkeleys deste ciclo, a começar no Footlight Parade, de 1933, e a acabar na vertigem diabólica e hipercolorida de The Gang's All Here, de 1942, com Carmen Miranda e tudo o resto.
Hoje, e passados que são quase quatro anos sobre a realização do ciclo, a ocasião é ainda de festa. Acabados de sair, estão já disponíveis os dois últimos volumes do seu monumental catálogo: o III volume, da responsabilidade de João Bénard da Costa e o IV, da responsabilidade de Miguel Esteves Cardoso.


As capas do III volume de O Musical: as letras por João Bénard da Costa.

O primeiro deles, que tem por justo título «As letras», é basicamente um dicionário crítico e sistemático de todos os realizadores, e dos principais actores e actrizes dos 180 filmes que compuseram o corpo fílmico do ciclo, bem assim como dos nomes mais significativos da art direction, da coreografia, da fotografia, do argumento e da produção. São no total, para cima de 1200 entradas, de Adbott (George), «o mais velho dos vivos», a Zwerin (Charlotte), obscura colaboradora dos Irmãos Maysles, como realizadora e montadora. Pelo meio ficam nomes porventura mais sonantes: de Berkeley (Busby) a Minnelli (Vicente), em dois longos textos de excelente recorte crítico, de Charisse (Cyd) a Astaire (Fred), passando — e porque não —por Rodrigues (Amália) e Costa (Beatriz). E se a carcaça do dicionário atemoriza—são 650 páginas—, o miolo é sempre escorreito, saboroso, invariavelmente correcto e até, pontualmente, irónico.
O interesse deste volume—decerto o mais importante dos quatro — não se resume assim (o que seria já muito louvável e mais do que suficiente) a um mero «arrumar» dessa casa caótica que é a heterogénea população que atravessou o género; o seu verdadeiro peso assenta antes no seu carácter deliberadamente pessoal e unitário, que pouco tem que ver com a folia e a monotonia arquivistas que norteiam o grosso deste tipo de produções. E significativo é, a este respeito, o que JBC escreve na entrada (de método) sobre Bogdanovich: «Muito me aproxima de Peter Bogdanovich, mais novo quatro anos do que eu. Amámos (amamos) os mesmos autores (...) amámos (amamos) o mesmo modo de fazer (e de inventar) a história do cinema; mais ou menos pela mesma altura começámos a ir ao cinema, com o mesmo temor e tremor; fixámo–nos nas mesmas memórias e na mesma necrofilia, entendendo o cinema como reino delas; amámos (amamos) os mesmos actores e não separámos o star–system da politique des auteurs; divertimo–nos, em miúdos e em crescidos, com dicionários, listas, filmografias, com gosto pelo pormenor.»


As capas do IV volume de O Musical: as pautas por Miguel Esteves Cardoso.

Se em «As Letras» se celebra assim, não apenas os nomes, nem somente o género, mas mais globalmente (e essencialmente) a capacidade de os visitar e revisitar continuamente, em «As Pautas», título do IV e último volume, trata–se principalmente de fixar o que nestes filmes é, paradoxalmente, menos «fixável»: as músicas. Como o escreve MEC, na introdução do volume, participa–se um crime; o de ter esquecido e o de continuar a esquecer —mesmo na vulgata cinéfila — a factura decisiva das colunas musicais e dos homens que as fizeram. Se algum princípio realmente fundamental anima esta derradeira abordagem d'0 Musical é, certamente, esta vontade de reabilitar na memória o que nunca o chegou a ser exactamente; restituir ao assobio de «Smoke Gets in Your Eyes» ou ao trauteio de «All I Do Is Dream of You» a presença de um autore, em todos os sentidos, de uma identidade. E mau-grado o modo de emprego relativamente complexo do volume (nomeadamente no que respeita ao apuramento de uma genealogia das «grandes partituras cinematográficas»), que empalidece fortemente a componente ensaística inicial — patente não apenas na introdução mas igualmente nas biografias dos principais compositores: Arlen, Berlin, Gershwin, Kern, Cole Porter e Richard Rodgers —, «As Pautas» é, não obstante, susceptível de orientar uma revisão ocasional e ocidental do musical e, sobretudo, de apelar eficazmente para a dimensão amplamente auditiva, não só do género mas de todo o cinema (e que O Musical, na suas exactas medidas, tão bem espelha).
Do balanço final deste projecto, fica sobretudo a ideia que se está perante um momento (e um monumento) incontornável na edição portuguesa sobre o cinema. O projecto modelar, sério, isento de folclorismos pictóricos, que quase sempre fazem passar, sob o brilho ofuscante da imagem, a manifesta nulidade do texto (muito embora se lamente a total ausência de cor nas reproduções... quando este ciclo é um ciclo da cor), O Musical— o catálogo constitui, para já, um elemento de memória fundamental. E se não for o presente, será o futuro, de certo, a comprovar a urgência e a necessidade de tão esgotantes empreendimentos.

JOÃO MÁRIO GRILO 
em O Jornal 23-06-1989




quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A voz de Cary Grant

Texto de
Manuel S. Fonseca



Coisas boas em jornais


Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro, para onde é que vai a voz de quem fala connosco?
A voz de Cary Grant, quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se para ele, telefone na mão, e murmurou: “Está aqui o Presidente Kennedy a querer falar consigo…” O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao telefone: “Sr. Presidente, em que posso ser útil?” (Toda a gente queria ser útil ao Presidente Kennedy.) John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. “Pois não, e como posso ajudá-los?”, insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou: “Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua voz!” Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um sonho: ouvir a voz de Cary Grant.
Como o melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor, um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.
A voz de Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt para a cama.
Vamos admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro o córtex auditivo primário dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace Kelly, em “To Catch a Thief”.
As frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em “Body Heat”, Hurt não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! – para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.
A voz de Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa.
As vozes de certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito do catolícissimo Hitchcock. Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –, Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: “Run for your life, boy!” Com quem diz: Salvem esse coiro, rapazes. Há vozes piores do que grilhetas. 

(Manuel S. Fonseca in, Jornal Expresso, 2011)

Cary Grant e Alfred Hitchcok durante as filmagens de Intriga Internacional (North by Northwest, 1959).


Cary Grant.


«Tornou-se um mestre tão perfeito em comédia, sofisticada ou popular, que o seu talento foi muitas vezes subestimado. Primeira figura masculina ideal, bobo perfeito, galã admirável e patife encantador: (...) nunca lhe foi concedida autorização para morrer no fim do filme, e com toda a razão - quem acreditaria? Cary era indestrutível. (...) Por mim, daria tudo para tê-lo num filme, assim como muitos outros realizadores, e tenho a certeza que o público não ficaria triste por ter esse estilo especial e essa sofisticação única de novo.» 
(Peter Bogdanovich, 1972)



A Arte de Cary Grant.




(Fotos encontradas na net)