Mostrar mensagens com a etiqueta Herman José. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Herman José. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 8 de março de 2013

Cinemas onde vi Filmes: Estúdio 444


 Cinema Estúdio 444. 1977. Vasques.

O Estúdio 444 foi inaugurado em 27-04-1966, com o documentário italiano "As Escravas Ainda Existem", Le schiave esistono ancora (1964) de Maleno Malenotti e Roberto Malenotti. Era um documentário para adultos que mostrava o comércio escravo moderno através de filmagens em alguns países árabes e africanos, sob o domínio muçulmano. Algumas das cenas foram feitas com câmaras escondidas, e continham cenas de nudez, sexo e violência e deve ter sido isso que levou a escolherem este filme para abrir um cinema e no fundo foi bem escolhido, porque esteve em cartaz cerca de cinco meses. O Estúdio 444, situava-se na Avenida Defensores de Chaves, já perto do Campo Pequeno e aquilo que recordo das minhas idas (poucas) é do primeiro filme (Let It Be, dos Beatles) e do último (After Hours de Scorsese), que lá vi. Se bem me lembro a sala não tinha nada de especial, a não ser de o local onde ficava o cinema ser bem tranquilo. O facto de ser uma sala estúdio (uma das primeiras em Portugal, a primeira foi a sala estúdio do Império em 1964), não foi o que me levou lá a primeira vez, apesar da curiosidade, mas sim os Beatles. A programação era muito desigual, tanto apresentava filmes de qualidade, de realizadores com nome e provas dadas, como filmes muito maus em todos os sentidos; veja-se o filme que escolheram para a inauguração. Segundo o cartaz de espectáculos do Diário de Lisboa, o Estúdio 444 teve a última sessão em 6-01-1988 com o filme português O Querido Lilás de Artur Semedo, com Herman José (que tinha estreado a 13-11-1987). No dia 9-01-1988, vinha no cartaz a dizer "encerrado" (ver foto) e a partir dessa data não mais veio mencionado no cartaz do Diário de Lisboa e o jornal encerrou em 1990.

 Anuncio do filme que inaugurou o Estúdio 444 e noticia 
sobre a inauguração no Diário de Lisboa de 27-04-1966.


Cartaz dos cinemas do Diário de Lisboa de 9-01-1988.


 Este foi o primeiro filme que vi no Estúdio 444.


 E este foi o último filme que vi no Estúdio 444.


O Estúdio 444 em Março 2013.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O fantasma do vagabundo


Testemunhos sobre Charlie Chaplin
por
José Mendes

Publicado no Expresso de 15 Abril 1989


Coisa boas em jornais

O que se aprendeu com Chaplin? Artur Semedo, Raul Solnado, Luis Miguel Cintra, Herman José e Mário Viegas recordam os tempos de criança onde imperava a figura de Charlot e tentam desvendar o mistério do seu legado.


Charlie Chaplin, erguido por Douglas Fairbanks e fazendo o truque do chapéu de Charlot, na frente da multidão na baixa de Manhattan, para promover as Liberty Bond (titulos de apoio à causa dos aliados durante a 1ª Guerra Mundial). 1918, Nova York, EUA. Foto LIFE Archive.

Para o realizador de O Barão de Altamira e O Querido Lilás, Artur Semedo, Charles Chaplin foi um extra-terrestre e uma figura predominante na sua carreira: «ele esteve sempre ligado a toda a minha vida de cinema, teatro e televisão. Foi, é e será sempre a contribuição mais decisiva para esta espécie de cinema de feira que penso, logo faço». Reconhecendo em Chaplin uma genialidade paradoxal, espartilhada entre a realidade e a ilusão e continuamente assente em lutas desequilibradas, o criador de Charlot marcou profundamente a sua vida artística. «Chaplin evangelizou-me com as suas inquietações perante o mundo, moldou-me desde menino, nesses tempos áureos e fúnebres em que a tosse convulsa nos levava desta para pior. Não tossi, cresci, passei a barreira do serviço militar e Chaplin continuou a ser o prolongamento do meu desajustado cérebro de artista - bom ou mau, não interessa, não sou eu que estou em causa, é a dívida que tenho para com ele».
Semedo confessa ser herdeiro de muito poucas coisas e, se não confirma se gosta de profetizar, não parece ter dúvidas em relação a Chaplin: «ele é imortal, vive em todos nós. A herança-Chaplin, posso dizê-lo, foi das poucas que tive. Ele é uma componente decisiva de toda a minha existência de solavancos tragicómicos. Só a ele peço perdão pela insuficiência do que por cá vou fazendo».


Charlie Chaplin com a roupa e a caracterização da sua personagem Calvero, no filme Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), dirige os músicos e os bailarinos, rodeado da equipa técnica. Por trás de Chaplin está o assistente de realização Robert Aldrich, ao lado de camisa branca Buster Keaton e ao lado deste o director de fotografia Karl Stuss.  Foto W. Eugene Smith e  LIFE Archive.


Um legado universal

Raul Solnado pode ser considerado outro dos seus herdeiros. Basta para isso voltar a ver Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa, onde o cómico português vive na pele de João Barbelas, um vagabundo sonhador que se apaixona por Maria (Glicínia Quartin), uma rapariga com um passado infeliz. No final tudo acaba o melhor possível e vão estrada fora cheios de ternura, esperança... e muita fome. Diz Solnado: «No dia em que Chaplin inventou Charlot, o vagabundo sonhador, romântico, carregado de generosidade, humanismo, nessa data, Chaplin não só ganhou o dia como ganhou a eternidade. Vagabundos existem muitos, Charlot só existe aquele. Ele provocava o riso por vários ângulos; porque é desajeitado, porque é megalómano, e porque quando parte para uma conquista já vai totalmente apaixonado».
Incluindo-se no número de actores cómicos que devem muito a Chaplin, Solnado não deixa de se surpreender por uma característica que, do seu ponto de vista, é admirável no realizador de Luzes da Ribalta: a capacidade de provocar o riso através da comoção e da revolta «que é, quanto a mim, a mais bela forma do riso. Charlie Chaplin é o génio que nos legou este património universal e hoje todos os cómicos do mundo são melhores por tudo o que quiseram aprender com ele».


Raul Solnado falando de Chaplin 27 anos depois: «Sou melhor actor por causa dele» e Raul Solnado e Glicínia Quartin em Dom Roberto (1962) de Ernesto de Sousa. Fotos copiadas do jornal Expresso.

Quanto a Luis Miguel Cintra, a figura de Charlot e a própria personalidade de Charles Chaplin estiveram longe de o influenciar. Mesmo assim, não deixa de constituir uma grata recordação de infância que o leva hoje a dizer que, por um princípio rígido de não seguir os gostos das maiorias, talvez tenha injustiçado o génio do actor britânico: «Eu vi muito mal os filmes do Chaplin. Quando os vi era muito novo e não os voltei a ver. Ao contrário do que seria de esperar e é espantoso, mesmo para mim, não se tratou de uma personalidade artística que me tivesse marcado. De maneira nenhuma! Lembro-me, em miúdo, em casa da minha bisavó, de nos fecharem a todos numa sala, a mim e aos meus primos, para ver, através de um projector que havia em casa dela, os filmes curtos do Charlot, como o Charlot na Patinagem e coisas assim».
A memória do fim da adolescência, apesar de marcada pelos filmes de Chaplin, fazem aparecer na sua vida outro actor a quem acabará por dar a preferência: Buster Keaton. «Era um tempo em que eu achava que gostava mais do Keaton do que do Chaplin e havia uma espécie de concurso entre os meus colegas para saber quem gostava mais de quem. Eu gostava do Keaton mas levei algum tempo a perceber porquê. Suponho que tem a ver com o facto de eu não gostar daquilo que a maior parte das pessoas gostam. Apercebi-me disso muito tarde e enervava-me toda a gente poder gostar do Chaplin».


Charlie Chaplin dirigindo Sophia Loren em uma cena do seu último filme A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967). Londres, Reino Unido, 1966. Foto de Alfred Eisenstaedt e  LIFE Archive.

«Buster Keaton era o tal»

A relação com os filmes sonoros de Chaplin, particularmente em títulos como A Condessa de Hong Kong ou Um Rei em Nova Iorque, causaram-lhe impressão diferente. Adorou-os, evidentemente, «mas sempre com essa ideia já feita de que o Buster Keaton é que era o tal. Quando vi A Condessa já era mais velho e o que acabou por ser aborrecido foi que filmes como esse não os voltei a ver. Lembro-me de ter visto A Condessa de Hong Kong e de o ter achado deslumbrante, fabuloso e com uma espécie de sabedoria da vida que faz com que se possa tratar e falar das coisas mais simples e aparentemente mais banais e também isso só muito mais tarde vim a perceber o que significava.»
Para quem tem acompanhado, mesmo que de uma forma fugaz, a carreira de Luis Miguel Cintra, quer no teatro quer no cinema, seria surpreendente chegar à conclusão que também nele a herança de Chaplin passava por referente obrigatório. O actor é o primeiro a admiti-lo: «para a minha carreira Chaplin não foi um referente. De facto, não o foi, mas acho que tem muito a ver com a idade com que vi os filmes. Lembro-me de ter ido ver Um Rei em Nova Iorque muito miúdo - nem sei se aquilo era para maiores de 18 anos - mas sei que fui ver noite e lembro-me que isso à era uma coisa muito extraordinária. Com As Luzes da Ribalta já foi diferente. Vi-o outras vezes e chorava do princípio até ao fim.»
Uma das razões que terão levado Luis Miguel Cintra a não incluir o nome de Charles Chaplin entre as suas referências obrigatórias deveu-se igualmente ao tipo de mensagem veiculada pelas películas do criador de Charlot. Enquanto pensava seriamente sobre que carreira deveria abraçar, o encenador do Teatro da Cornucópia estava decidido, em qualquer dos casos, a não suportar melodramas piegas: «ninguém me pode obrigar a dizer que o Chaplin foi muito importante para a minha formação artística. Isso, de facto, não sou capaz de dizer. Havia essa questão de se tratar de filmes muito comoventes e muito sentimentais e eu vi-os naquela fase em que todos os adolescentes combatem isso. Quer dizer, não podem ser sentimentais, têm de ser racionais, precisam de saber porque razão um personagem pensa isto ou aquilo e não se deixar embalar pela comoção. Foi o que me aconteceu em relação ao Chaplin, como se dissesse ‘não pode ser, isto é muito piegas!’»



Charlie Chaplin como soldado em Charlot nas Trincheiras (Shoulder Arms, 1918), foto LIFE Archive e como mordomo em A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967). Londres, Reino Unido, 1966. Foto de Alfred Eisenstaedt e  LIFE Archive.


Humores de palhaço

Precisamente para contrapor o que lhe parecia a pieguice «insustentável» dos filmes de Chaplin, Luis Miguel Cintra encontrou em Buster Keaton a alternativa ideal já que o actor americano cultivava um «lado extremamente austero e misterioso» que lhe era muito mais agradável e que, ao mesmo tempo, fazia todo o sentido: «falar dos dois era quase como pensar na diferença entre o palhaço rico e o palhaço pobre. Para mim, o tipo de humor do Chaplin estava mais próximo do palhaço pobre e o de Keaton do palhaço rico, apesar da figura do Pamplinas não ter nada a ver com o palhaço rico. Naquele tempo, o lado melodramático do Chaplin era-me quase insustentável mas hoje acho isso uma estupidez total, adoro os melodramas, quanto mais piegas melhor!»
Chaplin, no entanto, possuía uma característica que, à partida, poderia encontrar em Luis Miguel Cintra uma resposta favorável a polivalência de actividades, a noção de espectáculo global e a forma corno, tomando um assunto específico, ele parecia estar sempre a falar da vida inteira ao mesmo tempo: «Acho que as grandes pessoas do espectáculo têm de ser assim, pessoas que não são capazes de distinguir o que é representar, o que é dirigir ou o que é iluminar. Para mim ele tinha a sabedoria típica das pessoas que, ao abordar um único assunto é como se falassem da vida inteira ao mesmo tempo. Isso é muito bonito e sente-se que quando está a fazer arte está a viver, quando está a fazer cinema está a falar da vida que é aquilo que toda a gente com certeza gostaria de ser capaz de fazer. Eu também gostava».


Charlie Chaplin vestido de Calvero descansando durante as filmagens de Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.

«Eu nunca morri de amores pelo Chaplin». Herman José abre assim o jogo que, não sendo desencantado, também não se compadece com o mito: «a única qualidade que a morte possui na classe artística é a de envolver de repente as pessoas numa bruma de misticismo onde tudo é desculpado e onde tudo é genial. As imagens do Chaplin têm, para mim, a mesma importância das do Bugs Bunny».
Acreditando piamente que o humor e a tendência para o disparate são coisas genéticas e que não se aprendem, Herman José viu os seus primeiros «chaplins» em casa dos pais, nos tempos de criança, e só quando fazia anos: «na altura havia os filmes de Super 8, os meus pais tinham um projector e traziam para casa, de vez em quando, uns Bugs Bunnies e se calhar uns Mickeys e uns Chaplins lá pelo meio porque encantavam as crianças. Quanto ao Chaplin, parece-me que ele soube pegar numa qualidade genética, aquela tendência para o disparate que é genética e não se aprende. Se me é permitido falar em nome de todos os humoristas de algum êxito, no fundo o que fazemos não é mais do que profissionalizarmos características que já tínhamos na primeira e na segunda infância e depois, segundo a nossa esperteza, podemos comercializá-las bem ou mal».
Sobre a personalidade de Charles Chaplin, da sua forma de trabalhar e das suas relações com as pessoas, Herman não tem dúvidas: ele estava longe de ser um anjo. «Chaplin era esperto. Era um comerciante, uma pessoa muito dura a dirigir, era violento nas suas relações e nas suas decisões e soube administrar maravilhosamente aquela qualidade de satisfazer a necessidade que o povo americano tem de ver pieguice (que o americano é muito criança enquanto público, precisa da lágrima ao canto do olho)».


«O meu Chaplin é o Benny Hill»

Para Herman José, a fase sonora da obra cinematográfica de Charles Chaplin é a mais deficiente porque já não consegue suster a importância que o realizador tinha alcançado no tempo do mudo: «quando eu comecei a amadurecer, olhava para o Chaplin sem uma grande paixão e essa paixão diminuiu quando comecei a ver os seus filmes sonoros onde já não consegue estar à altura da importância que tinha no mudo. Ele consegue disfarçar essa incapacidade porque era um homem cultíssimo, inteligente e que se sabia rodear muito bem mas, salvo raríssimas excepções, eu não considero os seus últimos filmes obras-primas».
Entre os personagens criados por Herman José, uma galeria notável e cada vez mais vasta, a figura do Sr. Feliz (na dupla «Feliz e Contente», ao lado de Nicolau Breyner) foi, por diversas vezes, ligada a Charlot. O fato negro, o chapéu de coco e a bengala indiciavam-no quase sem equívocos. Mas, segundo o autor de Hermanias, não era no «boneco» que a relação resultava: «o 'Feliz e Contente' foi inspirado no Dupont e Dupond, do Hergé mas, como aconteceu com o Chaplin, o que eu fazia era disfarçar a minha incapacidade para fazer outras coisas que não sabia fazer (estava no teatro há um ano) e os meus tiques pessoais, em certas coisas, poderiam ter alguma coisa a ver com o Chaplin mas só por coincidência e não por influência».
Um herói, para ele, se o tem de haver, é Benny Hill: «ele é muito discutido e contestado em certos círculos mas, quanto a mim, é genial. O Benny Hill é o meu Chaplin ». Assim, a grande lição do autor de Tempos Modernos, o seu maior ensinamento para aquilo em que Herman se veio a tornar resume-se à questão do trabalho. Também para Herman José tudo tem de ser feito com extremo rigor: «é certo que ele me deixou isso, mas o rigor é o que nós temos de aprender à nossa custa. Não há génios espontâneos em nenhuma profissão»

Quanto à personalidade de Charles Chaplin, Herman não partilha a opinião de Artur Semedo. O criador de Serafim Saudade tem de Chaplin a ideia de um homem sorumbático, mas reconhece que a partir dos quarenta anos todos os comediantes têm a tendência para compensar na vida privada a alucinação da vida profissional, «e olhe que eu conseguia suportar a pieguice dos filmes dele, talvez porque ela era tão bem produzida e em doses tão certas que não chegava nunca para chatear. Fazer melodrama sem ficar ridículo é uma arte dificílima que ele dominou, admiravelmente desde o princípio. Mas para mim não era um extra-terrestre, antes pelo contrário, ele não podia ter sido mais gestor, mais 'yuppie' e mais terrestre do que foi. Isso é que lhe deu o êxito»


Artur Semedo, com Zita Duarte, em «O Barão de Altamira»; Luis Miguel Cintra em «Os Canibais»; Mário Viegas em «A Mulher do Próximo»; e Herman José em «O Querido Lilás»: Influências e indiferenças face a Charlot. Copiado do Expresso.

O enorme peso do fantasma

«Ele é o maior actor do século XX». Quem o afirma, sem o mínimo sinal de relutância, é Mário Viegas que, apesar de não se lembrar de quando começou a ver os filmes de Charlot, recorda - também ele - as sessões em casa dos pais «com aqueles filmes todos cortados, que havia por aí, do Chaplin e do Bucha e do Estica» e do tempo em que assistia a catorze sessões seguidas de Os Tempos Modernos na sala do malogrado Teatro Monumental. «Foi sempre a pessoa que mais me comoveu ver a representar. Era uma máquina de fazer rir e de comover as pessoas, porque fazer rir é comover, as pessoas riem por emoção».
Mário Viegas sempre se perguntou se Charlot era um burguês decadente ou um proletário em ascensão. Muito poucos o terão provavelmente visto assim, mas para o actor e recitador, sempre concentrado no personagem Charlot, o «fantasma» de Chaplin pesa, enorme, sobre qualquer actor: «ele quebrou, através da figura do Charlot, a fronteira entre o riso e o choro e não há nada mais dramático, às vezes, do que fazer rir. Depois dele pouco mais apareceu. O Charlot não envelheceu com o actor Charlie Chaplin ao contrário de Buster Keaton, que era autodestrutivo e autêntico como no filme Film em que ele tem a coragem de nos dar a figura de um Pamplinas velho. Ele é o grande actor cómico dos pobres e é um grande bloqueio - senti muito isso quando estava a fazer o filmezinho com o Sam - compreender que o Chaplin esgotou quase todas as formas. Ele é o complexo de inferioridade de qualquer actor».

Texto, titulo e legendas das fotos copiadas: José Mendes
Publicado no Expresso de 15 Abril 1989


Charles Chaplin rindo perdidamente durante as filmagens de Luzes da Ribalta. Chaplin estava a mostrar aos figurantes, como se devem comportar ao assistir a um espectáculo popular de Music Hall. 1952. Foto W. Eugene Smith e  LIFE Archive.




(Fotos LIFE Archive)




sábado, 28 de julho de 2012

Os paraísos perdidos de Artur Sem-Medo


Texto de
Maria José Mauperrin


Fase de Artur Semedo como galã dos anos 50.
Foto encontrada em serbenfiquista.com


Coisas boas em jornais


Os fantasmas da infância e a paixão de representar de Artur Semedo

“Sou  o último dos marialvas”, afirmava o Barão de Altamira 
aos seus correligionários do Movimento Independentista de Olivença.


«Pode dizer-me as horas?», pergunta, na tarde solarenta, a jovem ao transeunte burguês  de jeans e blusão de cabedal.
«Não uso», responde ele, apontando para o pulso esquerdo com a mão direita, a única enluvada de negro.
«Porquê?» —, pergunto-lhe depois. «Por medo à morte?»
A questão parece surpreendê-lo. A Primavera chegou, o sol já dá um novo brilho às ruas, às pessoas. O Tejo corre lá ao fundo, mais rápido do que o trânsito denso que nos envolve. Volta-se, olha-me, e diz: «Quanto à morte, quando ela vier cá estou. Não a temo. Já estive, muitas vezes, com um pé nela. Quanto ao relógio, não uso porque não gosto.»
Ocorre-me que provavelmente os nomes influenciam os comportamentos. Como o de Semedo que, segundo Artur, é uma aglutinação de Sem-Medo, apelido original da sua família. Quanto ao nome de baptismo, não faz qualquer referência histórica. Não deixa contudo de salientar que, além de não gostar de usar relógio, não gosta, não admite, igualmente, «a traição e a delação», coisas, como diz, «que só se podem resolver com um lavar de honra».


Cartaz do filme Chaimite,de Jorge Brum do Canto, 1953; 
«talvez o maior papel no cinema de Artur Semedo».

«Dêem água ao menino!»

Como conceitos e preconceitos não se transmitem geneticamente, mesmo quando se descende dos Sem-Medo ou até do último dos marialvas, o Barão de Altamira, há que inquirir aonde se foram buscar.
«A minha educação castrense e à família militar», esclarece Artur Semedo.
Quando refere «família militar» estará a pensar mais no Colégio Militar do que na influência do seu pai, militar de carreira. No entanto, parece que a sua passagem pelos «meninos da Luz» não foi muito pacífica.
«Claro que não, embora tenha grandes e boas recordações desse tempo. Fui expulso. Houve um professor, o major Pato, que me acusou de estar a copiar no exame.»
E estava?
«Com certeza. A matéria não me interessava, porque havia de perder tempo a estudá-la? O professor mandou-me levantar e pôr em sentido. Eu respondi-lhe que isso só me iria fazer perder tempo e atrasar a prova. Isto foi considerado um desrespeito ao professor e as consequências foram a minha expulsão.»
Um desaire que esteve longe de frustrá-lo.
«O que eu gostava era de representar. Desde criança. Representava para a família, mas tinham de me pagar. E a assistência era numerosa. As criadas também assistiam. O que eu fazia era uma imitação do que via nos filmes. Uma das cenas que muito os impressionava era quando, em pleno Verão, vestido com um sobretudo de fazenda azul muito espessa (chamava-se fazenda Moscovo), com um cachecol enrolado ao pescoço, me arrastava pelo corredor da casa e entrava na sala a pingar suor, de boca aberta e olhos esbugalhados: Então a minha mãe gritava para a cozinheira, a Baziliza e para a Henriqueta, que era a criada de fora: «Dêem água ao menino, dêem-lhe água!».


Anuncio de uma peça de teatro no cinema Odéon às 18,30h, com Artur Semedo e a grande actriz Maria Lalande e anuncio da estreia de O Dinheiro dos Pobres (1956), o primeiro filme realizado por Artur Semedo.


Um militarão bonito

No entanto, apesar do «jeitinho do pequeno» para a arte de Talma, a escolha de carreira passou mais pela determinação do pai Semedo - «um militarão bonito» - do que pelas manifestas tendências criativas e artísticas do filho. E, assim, a ida para o Colégio Militar.
Embora os desígnios paternos não correspondessem aos desejos do jovem candidato a actor, hoje, à distância de quase seis décadas, Artur Semedo recorda sem amargura:
«Eu adorava o meu pai. Era um homem muito inteligente, e bonito. Arrasava corações. Provocou imensas paixões e uma delas teve um desfecho bem trágico. Uma irmã da minha mãe, divorciada, incapaz de resistir à grande paixão que sentia pelo meu pai, acabou por se suicidar. O encanto dele era o de saber ser terno e simultaneamente dominador.»
Faz uma pausa, como quem procura uma definição mais rigorosa, e diz, a rir: «Havia nele qualquer coisa de farinha 'Lacto-Búlgara' (era a que se dava aos bebés, nesses tempo) e de cheiro a cavalariça.»
A mãe aceitava essas paixões...
«... Mal, como seria de esperar. Por vezes, tinham discussões terríveis. Eu ficava então muito triste, sobretudo porque gostava muito dele», volta a repetir. «Eu usei-o muito, aliás como uso tudo aquilo de que gosto: Era de facto um militarão, mas também um homem de grande “charme”.»


Excerto de Malteses, Burgueses e às vezes, de Artur Semedo, filmado em 1973 e estreado em 11 Abril 1974, 20 anos depois do primeiro filme. Carregado no youtube por paulomfcunha em 28-10-09.


Acumulação de memórias

A tarde ia pelo meio. Acabara de ver o último filme de Artur Semedo. Sentado junto à janela que já foi montra de mercearia, resguardada por uma cortina de «filet», suspensa de um varão de latão doirado, o realizador de O Barão de Altamira, entre plantas e um enorme espelho do século passado, de moldura pintada a oiro, copo cheio de sumo puro de laranja – «não bebo álcool, estou a antibióticos» - ilude perguntas, salta de história para história e fala, fala, sobretudo da sua vida - que ele avalia como «cheia».
Ainda que o requintado ambiente do bar fizesse lembrar alguns dos «climas» de filmes de Visconti, o cinema foi o grande ausente na conversa corn o realizador.
Ou talvez não. Porque não será antes esta forma narrativa de «flash-back» permanente, este saltitar de história para história, de assunto para assunto, numa quase total incapacidade de se fixar apenas numa ideia, e de trabalhá-la, uma das características dos filmes de Artur Semedo?
«Talvez que essa acumulação de memórias, essa sobrecarga de referências que você diz ter sentido, no meu filme, tenha a ver com as poucas oportunidades que há, entre nós, de fazer cinema. Eu tenho, em cada filme, uma enorme necessidade de esgotar o que tenho cá dentro», diz.
Quando fala em «esgotar o que tenho cá dentro», e ainda que no decorrer da conversa apenas se tenha referido ao seu pai, lembro-me da «Mãezinha» de O Barão de Altamira. E pergunto-lhe: esta «Mãezinha» é um exorcismo de algum dos seus fantasmas de infância?
«Não, embora esta 'Mãezinha' tenha a ver com a minha infância, nada tem a ver com a minha mãe. A ideia ocorreu--me ao lembrar-me de uma frase que o meu avô, José Francisco, costumava dizer à minha avó, para lhe acalmar os receios da morte: `Deixa , não te preocupes. Quando morreres, mando-te embalsamar e ficas aqui em casa'. A ideia ficou-me, e por isso a 'Mãezinha' do Barão é um manequim que recebe um tratamento igual ao das pessoas. Faz parte da família.»
Semedo não esgotara tudo o que tinha para dizer; a voz tem outro registo, mais lento e arrastado, quando volta a falar: «Isto tudo são coisas que estão dentro de mim e que algumas pessoas não entendem. Por isso há quem diga que o meu filme tem cenas que são autênticos 'videoclips'. Talvez tenham razão, mas eu não vejo assim. Tudo isto faz parte da minha pessoa.»
Como cineasta sente-se próximo de algum outro em particular?
«Eu não me sinto um cineasta como os outros. Posso até estar a fazer um cinema diferente, até um anticinema, não sei. A partida não tenho essa preocupação.  Também não me coloco na faixa dos nossos cineastas, ainda que respeite grande parte deles.»



O Rei das Berlengas de Artur Semedo (1978). Com Mário Viegas 
a fazer vários papeis. Carregado por hardb0p em 31-12-09.

Mário Viegas e Artur Semedo em foto sem data nem local. Mas, de certeza na época de O Rei das Berlengas (77/78), ao fundo vê-se umas arcadas que parecem o santuário de fátima, o que pode explicar o "ar de enterro", com que os dois estão. Foto encontrada em cavalinhoselvagem.blogspot

Pretérito e masculino

Corno diz Jorge Luís Borges, «não há paraísos que não sejam paraísos perdidos». É um pouco esta a ideia com que ficamos depois de ouvir Artur Semedo. Um Artur Semedo que abusa dos verbos no pretérito.
«Não tinha dado por isso», diz.
Também é evidente no seu discurso a importância que o elemento masculino tem na sua vida. Da infância refere o pai e o avô. Da juventude fala das «aventuras» que viveu com outros homens. Mesmo no seu filme, o Barão é casado com uma mulher meio tonta, a «Mãezinha» é de pasta de papel, a enfermeira é impudente e a «outra» é bonita mas estúpida. Nem sequer escapa a irmã do «alcaide» de Olivença. Será que O Barão de Altamira não é o último dos marialvas e que a inteligência, a amizade e a dignidade só são possíveis no masculino?
«De facto, eu tive um universo masculino. No meu tempo as mulheres não se misturavam com os homens. Digo, não fui habituado a ver na mulher uma amiga, uma companheira para os copos.»
As mulheres são apenas objectas de desejo?
«De paixão: Tive grandes paixões e fui correspondido. Mas isso acabou há vinte é cinco anos, quando conheci a Pilar, com quem continuo e continuarei casado. Sosseguei desde que a encontrei.»
Se tivesse de escolher entre mulheres, automóveis e cavalos, que escolheria?
«Tudo. Das mulheres já falámos. De cavalos digo-lhe que sempre gostei muito e que fui um óptimo cavaleiro. Melhor do que o meu irmão, que entrava em concursos. Quanto aos automóveis, foi uma paixão que começou na minha infância. Outra influência do meu avô. Ele era um homem todo para a frente. Começou por ter uma moto e depois foram os carros. E eu, miúdo pequeno, sentava-me ao volante e, com o carro parado, fingia que guiava. E também à mesa com os pratos. Brrrumm, brrumm, e lá ia pela mesa fora até derrapar. E a minha mãe a gritar: `Está quieto, Artur, está quieto'.»

O Barão de Altamira (1986) de Artur Semedo; Rosa Lobato Faria, Artur Semedo, Isabel Mota e actor desconhecido. Foto copiada do jornal Se7e.

Uma história de automóveis

A paixão pelos carros e pela velocidade levou-o a comprar um «carrão», a meias, com o Manuel da Fonseca. E a história vem a seguir:
«Um dia resolvemos vir a Lisboa, para a farra. Quando chegámos a Setúbal, o  carro começou a falhar. Tivemos de  ir procurar uma garagem e lá fomos dar com uma, onde estava um homem (bem, não sei se lhe hei-de chamar senhor), que reparou avaria. Quando lhe perguntei quanto custava, ele disse que não era nada. Então o Manuel da Fonseca chamou-me á parte e disse: “Temos de lhe dar uma gratificação. Quanto há-de ser?” Dez escudos, digo eu. Agradeci ao homem e estendi-lhe os dez escudos. Com um ar atrapalhado, ele recusou, mas agradecendo. E nós a insistirmos. E ele a recusar. Até que se voltou para nós: Desculpem, não posso aceitar. Guardem o vosso dinheiro, que a mim não me faz falta. Sou um dos homens mais ricos de Setúbal. Três anos depois, estava a bater-lhe à porta para lhe pedir dinheiro emprestado – para fazer uma 'tournée' a África. E ele emprestou. E eu paguei-lhe.»
Artur Semedo gosta de dizer que é homem de boas contas. Porém, ao contrário do que chegou a constar, não usa uma luva preta para pagar uma promessa. Ele explica: «Eu estava a filmar Sofia e a Educação Sexual, do Geada. Na cena, eu segurava um balão de conhaque, daqueles grandes. Talvez pelo nervosismo que há sempre que se começa a filmar, apertei o copo com demasiada força e os vidros cortaram-m os tendões da mão direita. Fui sozinho para o hospital, fui operado e fiquei com menos de 50 por cento de mobilidade na mão, além de uma híper sensibilidade. Foi por isso que comecei a usar luva. Hoje faz parte da minha imagem. Uso-a sempre preta para não desgostar os meus fãs.
Também o Barão de Altamira não dispensa a sua luva negra. Talvez que também ele a use para não desgostar os seus correligionários. Talvez que também ele tenha tido um avô «todo para a frente», um pai «militarão, mas cheio de charme». Só o que ele não consegue ter é a quase irresistível comunicabilidade de Artur Semedo.

Maria José Mauperrin
Jornal Expresso 
12 Abril 1986


O Barão de Altamira: Artur Semedo com Zita Duarte e  com Silvia Rato e Manuel Dias. 
Fotos copiadas de jornais.


Noticias  de O Barão de Altamira: Ante-estreia na Cinemateca; 
participação dos Trovante e critica de José Vaz Pereira.


 O Querido Lilás (1987) e Um Crime de Luxo (1991), os dois últimos 
filmes de Artur Semedo, ficam para outra oportunidade.
Fotos da net.


''O Benfica nunca perde ás vezes é que não ganha''
Artur Semedo