sábado, 28 de julho de 2012

Os paraísos perdidos de Artur Sem-Medo


Texto de
Maria José Mauperrin


Fase de Artur Semedo como galã dos anos 50.
Foto encontrada em serbenfiquista.com


Coisas boas em jornais


Os fantasmas da infância e a paixão de representar de Artur Semedo

“Sou  o último dos marialvas”, afirmava o Barão de Altamira 
aos seus correligionários do Movimento Independentista de Olivença.


«Pode dizer-me as horas?», pergunta, na tarde solarenta, a jovem ao transeunte burguês  de jeans e blusão de cabedal.
«Não uso», responde ele, apontando para o pulso esquerdo com a mão direita, a única enluvada de negro.
«Porquê?» —, pergunto-lhe depois. «Por medo à morte?»
A questão parece surpreendê-lo. A Primavera chegou, o sol já dá um novo brilho às ruas, às pessoas. O Tejo corre lá ao fundo, mais rápido do que o trânsito denso que nos envolve. Volta-se, olha-me, e diz: «Quanto à morte, quando ela vier cá estou. Não a temo. Já estive, muitas vezes, com um pé nela. Quanto ao relógio, não uso porque não gosto.»
Ocorre-me que provavelmente os nomes influenciam os comportamentos. Como o de Semedo que, segundo Artur, é uma aglutinação de Sem-Medo, apelido original da sua família. Quanto ao nome de baptismo, não faz qualquer referência histórica. Não deixa contudo de salientar que, além de não gostar de usar relógio, não gosta, não admite, igualmente, «a traição e a delação», coisas, como diz, «que só se podem resolver com um lavar de honra».


Cartaz do filme Chaimite,de Jorge Brum do Canto, 1953; 
«talvez o maior papel no cinema de Artur Semedo».

«Dêem água ao menino!»

Como conceitos e preconceitos não se transmitem geneticamente, mesmo quando se descende dos Sem-Medo ou até do último dos marialvas, o Barão de Altamira, há que inquirir aonde se foram buscar.
«A minha educação castrense e à família militar», esclarece Artur Semedo.
Quando refere «família militar» estará a pensar mais no Colégio Militar do que na influência do seu pai, militar de carreira. No entanto, parece que a sua passagem pelos «meninos da Luz» não foi muito pacífica.
«Claro que não, embora tenha grandes e boas recordações desse tempo. Fui expulso. Houve um professor, o major Pato, que me acusou de estar a copiar no exame.»
E estava?
«Com certeza. A matéria não me interessava, porque havia de perder tempo a estudá-la? O professor mandou-me levantar e pôr em sentido. Eu respondi-lhe que isso só me iria fazer perder tempo e atrasar a prova. Isto foi considerado um desrespeito ao professor e as consequências foram a minha expulsão.»
Um desaire que esteve longe de frustrá-lo.
«O que eu gostava era de representar. Desde criança. Representava para a família, mas tinham de me pagar. E a assistência era numerosa. As criadas também assistiam. O que eu fazia era uma imitação do que via nos filmes. Uma das cenas que muito os impressionava era quando, em pleno Verão, vestido com um sobretudo de fazenda azul muito espessa (chamava-se fazenda Moscovo), com um cachecol enrolado ao pescoço, me arrastava pelo corredor da casa e entrava na sala a pingar suor, de boca aberta e olhos esbugalhados: Então a minha mãe gritava para a cozinheira, a Baziliza e para a Henriqueta, que era a criada de fora: «Dêem água ao menino, dêem-lhe água!».


Anuncio de uma peça de teatro no cinema Odéon às 18,30h, com Artur Semedo e a grande actriz Maria Lalande e anuncio da estreia de O Dinheiro dos Pobres (1956), o primeiro filme realizado por Artur Semedo.


Um militarão bonito

No entanto, apesar do «jeitinho do pequeno» para a arte de Talma, a escolha de carreira passou mais pela determinação do pai Semedo - «um militarão bonito» - do que pelas manifestas tendências criativas e artísticas do filho. E, assim, a ida para o Colégio Militar.
Embora os desígnios paternos não correspondessem aos desejos do jovem candidato a actor, hoje, à distância de quase seis décadas, Artur Semedo recorda sem amargura:
«Eu adorava o meu pai. Era um homem muito inteligente, e bonito. Arrasava corações. Provocou imensas paixões e uma delas teve um desfecho bem trágico. Uma irmã da minha mãe, divorciada, incapaz de resistir à grande paixão que sentia pelo meu pai, acabou por se suicidar. O encanto dele era o de saber ser terno e simultaneamente dominador.»
Faz uma pausa, como quem procura uma definição mais rigorosa, e diz, a rir: «Havia nele qualquer coisa de farinha 'Lacto-Búlgara' (era a que se dava aos bebés, nesses tempo) e de cheiro a cavalariça.»
A mãe aceitava essas paixões...
«... Mal, como seria de esperar. Por vezes, tinham discussões terríveis. Eu ficava então muito triste, sobretudo porque gostava muito dele», volta a repetir. «Eu usei-o muito, aliás como uso tudo aquilo de que gosto: Era de facto um militarão, mas também um homem de grande “charme”.»


Excerto de Malteses, Burgueses e às vezes, de Artur Semedo, filmado em 1973 e estreado em 11 Abril 1974, 20 anos depois do primeiro filme. Carregado no youtube por paulomfcunha em 28-10-09.


Acumulação de memórias

A tarde ia pelo meio. Acabara de ver o último filme de Artur Semedo. Sentado junto à janela que já foi montra de mercearia, resguardada por uma cortina de «filet», suspensa de um varão de latão doirado, o realizador de O Barão de Altamira, entre plantas e um enorme espelho do século passado, de moldura pintada a oiro, copo cheio de sumo puro de laranja – «não bebo álcool, estou a antibióticos» - ilude perguntas, salta de história para história e fala, fala, sobretudo da sua vida - que ele avalia como «cheia».
Ainda que o requintado ambiente do bar fizesse lembrar alguns dos «climas» de filmes de Visconti, o cinema foi o grande ausente na conversa corn o realizador.
Ou talvez não. Porque não será antes esta forma narrativa de «flash-back» permanente, este saltitar de história para história, de assunto para assunto, numa quase total incapacidade de se fixar apenas numa ideia, e de trabalhá-la, uma das características dos filmes de Artur Semedo?
«Talvez que essa acumulação de memórias, essa sobrecarga de referências que você diz ter sentido, no meu filme, tenha a ver com as poucas oportunidades que há, entre nós, de fazer cinema. Eu tenho, em cada filme, uma enorme necessidade de esgotar o que tenho cá dentro», diz.
Quando fala em «esgotar o que tenho cá dentro», e ainda que no decorrer da conversa apenas se tenha referido ao seu pai, lembro-me da «Mãezinha» de O Barão de Altamira. E pergunto-lhe: esta «Mãezinha» é um exorcismo de algum dos seus fantasmas de infância?
«Não, embora esta 'Mãezinha' tenha a ver com a minha infância, nada tem a ver com a minha mãe. A ideia ocorreu--me ao lembrar-me de uma frase que o meu avô, José Francisco, costumava dizer à minha avó, para lhe acalmar os receios da morte: `Deixa , não te preocupes. Quando morreres, mando-te embalsamar e ficas aqui em casa'. A ideia ficou-me, e por isso a 'Mãezinha' do Barão é um manequim que recebe um tratamento igual ao das pessoas. Faz parte da família.»
Semedo não esgotara tudo o que tinha para dizer; a voz tem outro registo, mais lento e arrastado, quando volta a falar: «Isto tudo são coisas que estão dentro de mim e que algumas pessoas não entendem. Por isso há quem diga que o meu filme tem cenas que são autênticos 'videoclips'. Talvez tenham razão, mas eu não vejo assim. Tudo isto faz parte da minha pessoa.»
Como cineasta sente-se próximo de algum outro em particular?
«Eu não me sinto um cineasta como os outros. Posso até estar a fazer um cinema diferente, até um anticinema, não sei. A partida não tenho essa preocupação.  Também não me coloco na faixa dos nossos cineastas, ainda que respeite grande parte deles.»



O Rei das Berlengas de Artur Semedo (1978). Com Mário Viegas 
a fazer vários papeis. Carregado por hardb0p em 31-12-09.

Mário Viegas e Artur Semedo em foto sem data nem local. Mas, de certeza na época de O Rei das Berlengas (77/78), ao fundo vê-se umas arcadas que parecem o santuário de fátima, o que pode explicar o "ar de enterro", com que os dois estão. Foto encontrada em cavalinhoselvagem.blogspot

Pretérito e masculino

Corno diz Jorge Luís Borges, «não há paraísos que não sejam paraísos perdidos». É um pouco esta a ideia com que ficamos depois de ouvir Artur Semedo. Um Artur Semedo que abusa dos verbos no pretérito.
«Não tinha dado por isso», diz.
Também é evidente no seu discurso a importância que o elemento masculino tem na sua vida. Da infância refere o pai e o avô. Da juventude fala das «aventuras» que viveu com outros homens. Mesmo no seu filme, o Barão é casado com uma mulher meio tonta, a «Mãezinha» é de pasta de papel, a enfermeira é impudente e a «outra» é bonita mas estúpida. Nem sequer escapa a irmã do «alcaide» de Olivença. Será que O Barão de Altamira não é o último dos marialvas e que a inteligência, a amizade e a dignidade só são possíveis no masculino?
«De facto, eu tive um universo masculino. No meu tempo as mulheres não se misturavam com os homens. Digo, não fui habituado a ver na mulher uma amiga, uma companheira para os copos.»
As mulheres são apenas objectas de desejo?
«De paixão: Tive grandes paixões e fui correspondido. Mas isso acabou há vinte é cinco anos, quando conheci a Pilar, com quem continuo e continuarei casado. Sosseguei desde que a encontrei.»
Se tivesse de escolher entre mulheres, automóveis e cavalos, que escolheria?
«Tudo. Das mulheres já falámos. De cavalos digo-lhe que sempre gostei muito e que fui um óptimo cavaleiro. Melhor do que o meu irmão, que entrava em concursos. Quanto aos automóveis, foi uma paixão que começou na minha infância. Outra influência do meu avô. Ele era um homem todo para a frente. Começou por ter uma moto e depois foram os carros. E eu, miúdo pequeno, sentava-me ao volante e, com o carro parado, fingia que guiava. E também à mesa com os pratos. Brrrumm, brrumm, e lá ia pela mesa fora até derrapar. E a minha mãe a gritar: `Está quieto, Artur, está quieto'.»

O Barão de Altamira (1986) de Artur Semedo; Rosa Lobato Faria, Artur Semedo, Isabel Mota e actor desconhecido. Foto copiada do jornal Se7e.

Uma história de automóveis

A paixão pelos carros e pela velocidade levou-o a comprar um «carrão», a meias, com o Manuel da Fonseca. E a história vem a seguir:
«Um dia resolvemos vir a Lisboa, para a farra. Quando chegámos a Setúbal, o  carro começou a falhar. Tivemos de  ir procurar uma garagem e lá fomos dar com uma, onde estava um homem (bem, não sei se lhe hei-de chamar senhor), que reparou avaria. Quando lhe perguntei quanto custava, ele disse que não era nada. Então o Manuel da Fonseca chamou-me á parte e disse: “Temos de lhe dar uma gratificação. Quanto há-de ser?” Dez escudos, digo eu. Agradeci ao homem e estendi-lhe os dez escudos. Com um ar atrapalhado, ele recusou, mas agradecendo. E nós a insistirmos. E ele a recusar. Até que se voltou para nós: Desculpem, não posso aceitar. Guardem o vosso dinheiro, que a mim não me faz falta. Sou um dos homens mais ricos de Setúbal. Três anos depois, estava a bater-lhe à porta para lhe pedir dinheiro emprestado – para fazer uma 'tournée' a África. E ele emprestou. E eu paguei-lhe.»
Artur Semedo gosta de dizer que é homem de boas contas. Porém, ao contrário do que chegou a constar, não usa uma luva preta para pagar uma promessa. Ele explica: «Eu estava a filmar Sofia e a Educação Sexual, do Geada. Na cena, eu segurava um balão de conhaque, daqueles grandes. Talvez pelo nervosismo que há sempre que se começa a filmar, apertei o copo com demasiada força e os vidros cortaram-m os tendões da mão direita. Fui sozinho para o hospital, fui operado e fiquei com menos de 50 por cento de mobilidade na mão, além de uma híper sensibilidade. Foi por isso que comecei a usar luva. Hoje faz parte da minha imagem. Uso-a sempre preta para não desgostar os meus fãs.
Também o Barão de Altamira não dispensa a sua luva negra. Talvez que também ele a use para não desgostar os seus correligionários. Talvez que também ele tenha tido um avô «todo para a frente», um pai «militarão, mas cheio de charme». Só o que ele não consegue ter é a quase irresistível comunicabilidade de Artur Semedo.

Maria José Mauperrin
Jornal Expresso 
12 Abril 1986


O Barão de Altamira: Artur Semedo com Zita Duarte e  com Silvia Rato e Manuel Dias. 
Fotos copiadas de jornais.


Noticias  de O Barão de Altamira: Ante-estreia na Cinemateca; 
participação dos Trovante e critica de José Vaz Pereira.


 O Querido Lilás (1987) e Um Crime de Luxo (1991), os dois últimos 
filmes de Artur Semedo, ficam para outra oportunidade.
Fotos da net.


''O Benfica nunca perde ás vezes é que não ganha''
Artur Semedo




Sem comentários:

Enviar um comentário