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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lisboa ao sabor da memória


Um pequeno "retrato" da vida boemia em Lisboa nos 60 e 70

Texto de Margarida Bom de  Sousa

Títulos, legendas e fotos copiados do

Expresso,  Sábado, 27 Agosto 1983


Coisas boas em jornais

Nos últimos cinquenta anos Lisboa sofreu uma transformação radical nos seus hábitos, na sua vivência e também na sua aparência externa: perdeu o seu carácter de "aldeia à medida do homem" para se transformar num conjunto de várias aldeias que aspiram, talvez em vão, a ser um dia cidade.

«Chiado: a vida de rua,  dos cafés ou das noitadas é hoje apenas uma ténue recordação». 
Foto Rui Ochôa, copiada do Expresso.


PARECE inevitável — escreve David Mourão Ferreira no prefácio de um livro intitulado "Saudades de Lisboa" — não só da parte dos lisboetas mas também dos habitantes de Lisboa, ao chegarem a certa idade, terem saudades da Lisboa que conheceram na sua juventude, e de considerarem que a Lisboa em que vivem já na maturidade não passa de uma triste degradação da outra".
"É possível — acrescenta — que haja aqui um erro de perspectiva pois, como disse um escritor belga — Alexis Curvers —, ‘a beleza para qualquer homem é aquilo que ele amou durante a mocidade’".
Contudo, é um facto que Lisboa sofreu nos últimos cinquenta anos uma transformação radical nos seus hábitos, na sua vivência e também na sua aparência externa. Perdeu o seu carácter de cidade serena, imperturbável e silenciosa como em 1867 a definia Eça de Queirós — para, no entanto, continua a não criar, a nada iniciar, deixando-se ir ao sabor das correntes e do improviso, do "laissez faire, laissez passer", colmatando aqui e ali as brechas que se foram abrindo, indiferente à sua beleza, como uma mulher gorda que há muito deixou de se preocupar consigo mesma.
E se muitos continuam a amá-la, a gostar de viver nela e a defendê-la contra tudo e todos, o certo é que, na intimidade, a criticam arduamente, nostálgicos de uma época passada que teima em não regressar, esquecidos de que a mudança passa por cada um de nós.

A Lisboa dos cafés

Uma das coisas que sem dúvida alguma, mais se modificou em Lisboa nos últimos cinquenta anos foi a forma das pessoas conviverem. A vida de rua, de cafés, de grandes noitadas em casas de fados ou discotecas, restringiu-se, pouco a pouco, às reuniões em casa de particulares, dando origem à formação de pequenos grupos fechados, que deixaram de comunicar entre si.
Com efeito, nos anos 40 e 50 - e até mesmo muito antes disso, no princípio do século —, a "educação" de um lisboeta não podia considerar--se completa sem que tivesse transposto, ao menos algumas vezes, a porta de um café. Grande parte da vida das pessoas passava-se nesses locais, que se agrupavam por "especialidades": havia os cafés políticos, os literários, os boémios, os desportivos, os tauromáquicos, e ainda outros, ilustres - sobretudo pela "maledicência".


 «Se muitos continuam a amar Lisboa, a gostar de viver nela e a defendê-la contra tudo e todos, o certo é que na intimidade, a criticam, nostálgicos de uma época há muito perdida». 
Copiadas do Expresso.


"Era até certo ponto o caso do café Portugal — conta David Mourão Ferreira — onde se reuniam escritores ligados ao movimento neo-realista e outros adversários da 'situação', e que foi, numa dada altura, conhecido por Portugal a Cantar — designação de um espectáculo célebre da época. Tratava-se de um modo bastante ameno de exprimir a existência de um Portugal que fingia cantar mas que gemia, ou uivava, contra a situação vigente".
"Outro café também notório pela `maledicência' política — continua o escritor — era, ao lado do Portugal, a Brasileira do Rossio, essencialmente frequentada por republicanos e democratas, ou seja, aquilo a que se chamava 'a gente do `reviralho'. Ali ocorriam de vez em quando irrupções da PIDE (antes PVDE Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e, antes disso ainda, Polícia de Informação). Foi lá que conheci, por exemplo, entre várias outras figuras pitorescas, um simpático surdo-mudo que foi preso três vezes por ser boateiro: é que ele divulgava efectivamente boatos de revoluções, de conspirações, de escândalos... através de gestos! Muito expressivos, aliás".
A Leitaria do Chiado, ao lado da Brasileira, foi também  a segunda casa de muitos lisboetas, sobretudo daqueles que passaram pela Escola de Belas Artes.
João, que a começou a frequentar assiduamente aos quinze anos, recorda os anos de 56 e 57 "quando começaram a aparecer os existencialistas, de longas barbas, grandes camisolas e ar pensativo, causando grande impacto nos chamados `burgueses' - os empregados das lojas, que os miravam como se fossem autênticos bichos. Outra das coisas que gostava de observar na leitaria era a diversidade de pessoas que a frequentava, desde os jovens, com os seus modos um tanto especiais, aos homens que iam para as obras e paravam para tomar o pequeno-almoço, aos advogados que tinham o cartório próximo ou, durante a tarde, às senhoras que iam às compras".
"E havia o Acácioprossegue; rindo um contínuo da Escola completamente doido que passou a frequentar a Leitaria depois de se reformar e que a maior parte do dia estava calado, mergulhado nos seus pensamentos. Mas, de vez em quando, lá quebrava o seu mutismo, e punha-se assim a falar para o primeiro que lhe aparecesse à frente: `Olha, pá! Tu põe-te a pau. Porque o Estado resolveu fazer duas estradas de Setúbal a Nápoles, paralelas uma à outra, só que uma é toda de ferro e a outra de chocolate. E olha - e o Acácio apontava o dedo, ameaçador - morreu um coelhinho branco como tu, que ia num espadalhão a uma alta velocidade, porque escorregou na estrada de chocolate. E tu — virava-se para outro de nós — podes passar ali pelo Poço do Bispo que há lá uma árvore que dá maços de Camel. Já sabes, podes tirar um ou dois que os saloios não se importam. E também podes tirar duzentos ou trezentos quilos, que eles às vezes dão, outras vendem'.
"Mas ele falava com um ar tão sério que quem não o conhecia quase acreditava. E quando era preciso interná-lo no Júlio de Matos? Bastava dizermos-lhe assim: `Oh Acácio, é só para ires ali prestar umas declarações à Pide', que ele lá ia, feliz e contente, dentro da ambulância."


Café Vá-Vá em 2009 é um restaurante e pazzaria. Foto Google view.


Os tempos do Vává

Fernando Lopes, António-Pedro de Vasconcelos, Paulo Rocha, César Monteiro, Seixas Santos, Manuel Costa e Silva, António Escudeiro — naquela época eram ainda um punhado de idealistas que se reuniam diariamente à volta de uma mesa do Vává, lutando por uma carreira que, se hoje é difícil, na altura era uma verdadeira loucura, vivendo à base de pequenos expedientes e de algumas idas ao “prego”.
No seu gabinete da RTP, na Cinco, de Outubro um gabinete austero onde apenas sobressaem alguns cartazes de filmes como o da "Canção de Lisboa, primeiro filme feito por portugueses" — Fernando Lopes fala, durante mais de duas horas, de um tempo em que havia mais solidariedade entre as pessoas, em que as barreiras sociais não eram tão evidentes, onde a comunicação se estabelecia com maior facilidade.
"As pessoas tendiam a reunir-se fora das suas casas e faziam-no; essencialmente, por grupos de interesses. No que diz respeito ao cinema, já tinha havido nos anos 40, um grande café, o Paladium, onde se reuniam os cineastas, técnicos e autores de uma época que, em termos de filmes, se pode definir como a que vai do `Pai Tirano' ao `Pátio das cantigas'. Depois, e durante os anos 50, houve como que um desaparecimento da tertúlia de cinema, que se refez, posteriormente, à volta do Parque Mayer, no Riba D'Ouro, numa tentativa de conciliar gente de uma época anterior com gente mais nova que começava a aparecer".
"Mais tarde — continua enquanto acende um cigarro que parece fazer parte integrante dele — acabámos por ter o nosso próprio sítio, o Vává, que se encontrava numa posição estratégica quer em relação aos laboratórios de cinema existentes (a Odisseia Filmes e a Tóbis), quer em relação às nossas próprias casas".


«Lisboa, 1983, entre hábitos e paisagens diversas: indiferente à sua beleza». Copiada do Expresso.


Um café situado numa nova Lisboa — a Avenida de Roma e Alvalade, zona onde começava a surgir uma outra maneira de viver, mais livre e mais ousada — e pelo qual passavam, igualmente, muitos estudantes da Universidade, nesses anos 60 um verdadeiro foco de agitação política e cultural.
Assim, acabou por se tornar num ponto de encontro de gente de cinema, da universidade e da música — particularmente os defensores da nova música anglo-saxónica, como os Shadows, e de intervenção, como Adriano Correia de Oliveira — entre a qual se estabeleceu uma grande solidariedade, cimentada por uma resistência comum ao fascismo.
"Dado que a sociedade não compartilhava as ideias destes grupos, — prossegue Fernando Lopes — eles tiveram de se defender, criando os seus próprios códigos e valores que, mais tarde, acabaram por ter um certo sentido, penso que de liderança em relação à mudança".
Com efeito, muitas das pessoas que então frequentavam o Vává começavam a ser conhecidas publicamente. Medeiros Ferreira, Jaime Gama, Alfredo Barroso e Jorge Sampaio, entre outros, faziam também parte do grupo, "um grupo que, ao manter um certo tipo de intervenção política e cultural, tendeu para a abertura de novos espaços de convívio, revalorizando o que a moral pequeno-burguesa transformara em qualquer coisa de pecaminoso: o gosto da festa e do prazer”.
"Também as relações afectivas e sexuais, se alteraram completamente a partir destes locais — adianta Fernando Lopes — tornando-se muito mais livres e muito menos hipócritas".
Mas a vida no Vává caracterizava-se ainda por um outro aspecto relacionado directamente com a própria subsistência dos seus frequentadores, e que consistia na existência de uma "banca privada", em que o próprio dono do café participava, através da qual os mais necessitados conseguiam chegar ao fim do mês, tornando a vida relativamente mais fácil.
"Havia também, e em última análise, uma instituição, fabulosa em Lisboa, que tende cada vez mais a desaparecer, chamada `prego', e que fazia com que cada um de nós pudesse pedir em casa, à tia, à avó ou à mãe, um relógio ou outra coisa qualquer susceptível de se poder transformar em dinheiro, o qual, depois, claro, era repartido por todos".


«Havia uma instituição fabulosa chama prego». Foto Hermínio Clemente copiada do Expresso.


O bichinho da boémia

"Eu já trazia de Lourenço Marques o bichinho da boémia, onde todos os bons espíritos se encontram".
Maluda, que pintava de dia e vivia de noite, chegou a Lisboa em 59, com vinte e quatro anos de idade, para imediatamente e "inevitavelmente", como ela diz com certo gozo, cair na vida nocturna. Numa vida feita de personagens sistemáticos — os errantes da noite — que se concentravam especialmente nas casas de fado, nalguns bares e, esporadicamente, em "boites", como a Tágide ou o Embaixador.
"Uma das casas de fado que normalmente antecedia a concentração era a Adega da Lucília do Carmo, onde actuava quase sempre o Alfredo Marceneiro. Do grupo faziam parte o Zé Casimiro, o Zé Maria Santos, o Fernando Pinto Coelho, que muitas vezes tocava guitarra, o visconde Passos de Nespereira, que só vivia de noite, o Raul Solnado, o actual rei de Espanha, o Fernando Figueirinhas, o duque de Lafões, os Sabrosas, o Manuel Gomes e o Sebastião Pombal, que por vezes preenchiam as faltas dos guitarristas e isto para só falar de alguns. Outro dos locais preferidos era a Toca, do Carlos Ramos, onde o António de Bragança e a Maria Teresa de Noronha cantavam às vezes, e onde estavam quase sempre as tias, Tarouca — D. Anica e mana Margarida — duas encantadoras velhinhas".            
Um ambiente de boémia que nascia ao cair do dia, no qual se encontravam os amantes da noite, do fado, e da conversa em redor de uma mesa cheia de copos.
"Porque estas coisas de que eu lhe falo — Maluda não fala, ri — não aconteciam uma ou duas vezes por semana, mas sim todos os dias, pela noite fora, até às seis e sete da manhã. Eram madrugadas feitas de conversa e laracha onde eventualmente o fado acontecia, como quando a Amélia começava a cantar, já depois das três da manhã, na Taberna do Embuçado, do João Pereira Rosa, só para meia dúzia de amigos.
“E antes de irmos tomar o pequeno-almoço à Ribeira ou a casa de um de nós, porque àquela hora já apetecia tomar um café, ainda dávamos um pulo à Cova do Galo, onde actuavam o Pepe e o Sivuca.
"Mais tarde — recorda Maluda — e com características diferentes, surgiu o Botequim da Natália Correia, com toda aquela `entourage' de poetas e gente ligada à literatura, com a Maria Paula a cantar versos que faziam a caricatura, sempre actualizada, dos acontecimentos políticos."
Contudo, a vida nocturna não se limitava a estes locais. Abertos até tarde e muito mais acessíveis, os cafés também faziam parte da noite, abrigando um outro tipo de gente ao qual, a partir de uma certa hora, se juntavam os espectadores do teatro de Revista ou do S. Carlos, ávidos de uma boa ceia. Havia mesmo alguns cafés que só fechavam das cinco às seis da manhã "para limpeza deles e dos  clientes".


Mercado da Ribeira - Mercado 24 de Julho. 1936. Eduardo Portugal. Foto do Arquivo Fotográfico da CML.

Interior do Mercado da Ribeira - Mercado 24 de Julho na actualidade. Foto encontrada em www.ezimut.com


O fim dos cafés

A partir de certa altura a manutenção dos grandes cafés — como era o caso do Chave de Ouro, no Rossio, que ocupava a totalidade de um prédio de cinco andares — começou a tornar-se insustentável. Por um lado, devido ao aumento das matérias-primas e da mão-de-obra, bem como do valor económico dos próprios espaços em causa. Por outro, devido ao desenvolvimento dessa onda de especulação desenfreada que assolou Lisboa a partir dos finais dos anos 50, com a proliferação de bancos e suas filiais, transformando aqueles cafés em alvos privilegiados para a abertura de novas sedes e dependências bancárias.
"Aliás, hoje — constata David Mourão Ferreira — e apesar da nacionalização da banca, devemos continuar a ser um dos países do mundo em que tais `beneméritas' instituições ocupam, proporcionalmente, áreas mais amplas e mais luxuosas. A não ser que as contínuas desvalorizações do escudo exijam cada vez maiores espaços para armazenar cada vez maiores quantidades de papel que não valem nada...”
Mas não foram os bancos os únicos responsáveis pelo fim destas "instituições". A própria vida das pessoas alterou-se profundamente, sobretudo depois da mudança de regime. Divergências até aí imperceptíveis, pela existência de um inimigo comum bem definido — o fascismo — começaram a surgir e, gradualmente, os grupos começaram a desfazer-se. A faceta de praça pública que caracterizava a vida nos cafés, fazendo com que as diferenças sociais quase não se notassem e proporcionando simultaneamente um convívio fácil, mesmo entre desconhecidos, foi desaparecendo para surgir no seu lugar um outro tipo de convivência social, mais voltado para o interior das casas e compartilhado apenas por meia dúzia de amigos.
"Evidentemente que agora, em 83, isso é muito mais sensível — considera por seu turno Fernando Lopes — porque de certa forma se está a sentir o refluxo de toda a actividade que ocorreu em Portugal entre 74 e 76. E o que mais se nota é que existe muito menos comunicação. Nesse aspecto estamos a ficar iguais a qualquer grande cidade em que cada um vive na sua pequena ilha".
Todavia, Maluda observa que já em 67 esta mudança de hábitos dos lisboetas se começava a fazer sentir:
"Quando regressei definitivamente, depois de ter trabalhado em Paris — lembra com uma ponta de tristeza na voz — toda a efervescência que caracterizava a vida boémia da cidade tinha desaparecido. Uns atribuíam o facto a uma certa contracção devido à guerra colonial. Outros à decadência das casas de fado que entretanto tinham aberto as suas portas aos turistas, perdendo com isso qualidade, pois qualquer fadista 'ad-hoc' servia... O que certo é que qualquer coisa mudara. Hoje, existe uma plêiade de gente que enche, de facto, as `boites' e os bares mas que parece muito mais interessada em dançar e em encharcar-se em copos do que em divertir-se como nós o fazíamos, à base da laracha, da caturrice, da graça, da improvisação."
"Por outro lado — continua — a gente nova interessa-se agora por coisas que nada diziam à minha geração, como sejam as exposições, os concertos... No fundo, acho que os novos de agora têm uma vida interior mais rica do que a que nós tivemos, mas a sua forma de participar nas coisas públicas é que me parece superficial em relação ao nosso conceito de boémia. Como se os componentes da noite andassem dispersos..."


«Bairros antigos: as antigas comunidades de vizinhos têm sido desfeitas ao longo dos anos». Copiadas do Expresso.


E a Lisboa de amanhã?

A coisa já não está no segredo dos deuses. Grita-se na bicha do autocarro, discute-se durante os almoços rápidos demais, murmura-se dentro dos partidos, canta-se na rádio. Isto vai mal. Mesmo muito mal. Evidentemente que não é só em Lisboa, nem é só em Portugal, o que deveria servir-nos de consolação. Mas não serve. Por outro lado, ainda não conseguimos criar aquela indiferença necessária para suportar estoicamente o facto de o nosso dinheiro cada vez valer menos, de ser mais fácil encontrar uma agulha num palheiro que uma casa, de haver sempre alguém com uma cunha maior que a nossa quando tentamos arranjar emprego, de perdermos o avião porque uma cimenteira teimosa resolveu passar por uma rua demasiado estreita, interrompendo o trânsito durante mais de uma hora. Pequenos contratempos que fazem parte do quotidiano dos lisboetas.
Para já não falar da incógnita que rodeia os abastecimentos à cidade, transformando cada ida ao supermercado num milagre da substituição, o sumo em vez do leite, o mel pela manteiga, a massa quando se pensou em batatas. Como também é reconfortante sentir a segurança com que as pessoas se movem na rua, perfeitamente cientes de que à mínima tentativa de assalto serão imediatamente socorridas por um agente ou, no mínimo, quando este não se encontra por perto, pelos outros transeuntes. Ou ainda observar o frenético vaivém dos reboques da PSP, ávidos de automóveis estacionados nas paragens de autocarros onde estes aliás não param, sem todavia conseguirem evitar os sucessivos discursos para disciplinar o trânsito.
"Tentando ser objectivo — David Mourão Ferreira fala da Lisboa actual pensando na outra, na que conheceu na sua juventude — creio que se tem verificado uma real degradação de Lisboa, sob variadíssimos aspectos e a diferentíssimos níveis, a qual tem a ver com um desenvolvimento, perfeitamente irracional do tecido urbano e das próprias expressões arquitectónicas e também com uma pastosa intensificação do trânsito que acaba por ser paralisante.
"Degradação que tem igualmente a ver com a falta de cuidado que as entidades autárquicas têm manifestado em criar algo de novo no espaço urbano de Lisboa e em conservar o que devia ser conservado. E na chamada conservação do Património — acrescenta — passa-se exactamente o mesmo que se verifica no `conservadorismo' em políticas 'o que tem arruinado os conservadores', disse-o Paul Valéry, `é a má escolha das coisas a conservar'."
Esta degradação, segundo o escritor, está também ligada à falta de uma profunda reforma das mentalidades, acompanhada de uma não menos profunda reforma social:
"António Sérgio chamou várias vezes a atenção para a necessidade de as duas reformas irem de par uma com a outra. E claro que não basta que haja medidas de carácter urbanístico, arquitectónico e social, até cultural no mais vasto sentido. É necessário que isso seja, simultânea ou previamente, acompanhado da reforma das mentalidades e que tal reforma se verifique nos estabelecimentos de ensino, nos lares, nos meios de comunicação, nomeadamente nos meios audiovisuais. E enquanto não houver essa reforma simultânea e de raiz, Lisboa, como todo o resto do território português, a maior ou menor prazo, degradar-se-á irremediavelmente".


«Uma velha "aldeia" à procura de ser a cidade que nunca foi». Foto Rui Ochôa, copiada do Expresso.


Um caso exemplar  

Mas, e enquanto não surge a reforma, existe outro tipo de problemas, mais concretos, que parecem preocupar grandemente os lisboetas. Um deles prende-se com o desenvolvimento físico da cidade, com o seu crescimento desordenado, o que deve ou não ser conservado, onde e como construir:
O Gabinete de Ordenamento Urbano, criado durante o executivo de Aquilino Ribeiro, tinha exactamente como objectivo apoiar a CML a resolver este tipo de problemas.
"Não era propriamente um gabinete de planeamento — diz-nos a arquitecta Luz Valente Pereira que participou no projecto — mas antes um gabinete de apoio técnico ao executivo camarário para a resolução de problemas concretos que fossem surgindo e que o referido executivo nos apresentava. No entanto, teve uma vida curta e difícil, quer pelo desinteresse do próprio executivo que o criou, quer ainda pela dificuldade de acesso à informação viva sobre a cidade, nomeadamente a que estava de posse da própria Câmara. Isto para já não falar da desactualização cartográfica e, de uma maneira geral, da má qualidade e incompatibilidade da informação recolhida sobre a cidade nos diferentes serviços públicos. Conseguimos, no entanto, fazer alguns trabalhos, como o da zona Ribeirinha ou da Ameixoeira; que acabaram por não passar de simples opiniões num papel".
No entanto, outras cidades europeias, nomeadamente Paris, debateram-se com problemas semelhantes ao nosso e, ao que parece, conseguiram encontrar soluções satisfatórias. Também do outro lado do Atlântico, em S. Francisco da Califórnia, cidade que muitos comparam a Lisboa, se conseguiu conter o crescimento caótico da cidade.
"Uma das coisas que mais me interessou ao estudar o planeamento daquela cidade — prossegue Luz Valente Pereira — foi a luta do município para criar meios de conservação da cidade e das suas características, apesar de apostado no desenvolvimento, da existência da propriedade privada do solo e da actuação de interesses especulativos de poderosos promotores. A progressiva, mobilização do interesse da população na defesa da sua cidade, considerada a mais bela `habitável' dos EUA, mobilização essa que o município nunca deixou de promover, tem tido como consequência o apoio à aplicação da legislação municipal para controlo da transformação da cidade pela própria opinião pública. E é curioso verificar que as sentenças proferidas pelos tribunais relativas a pleitos entre promotores e o município de S. Francisco têm sido progressivamente favoráveis a este."
E planear e desenvolver uma cidade não será exactamente isto? Ir de encontro, aos objectivos dos seus habitantes, tornando a cidade agradável a todos de forma a que cada um a sinta como algo de "familiar"?
"Ora nós não sabemos — prossegue Luz Valente Pereira —, concreta e localizadamente, o que os habitantes de cada bairro, de cada rua, consideram de interesse fazer ou não para melhorarem as suas condições de vida. A discussão sobre ‘que cidade é e que cidade deveria ser Lisboa’ não está feita, não se debate publicamente a cidade que somos, o nosso futuro, e daí que nos sintamos todos, técnicos e não técnicos, muito desamparados para ter uma opinião consistente sobre a cidade, para além dos aspectos estruturais e dos grandes princípios organizativos e de conservação da sua imagem.
"E dramática a renovação que se processa na mira de lucros imediatos para alguns, escavacando, lote a lote, edifícios de óptima construção e substituindo-os por outros de qualidade muitas vezes inferior, cada qual de seu feitio. E, além deste aspecto, o facto de os anteriores habitantes serem muitas vezes obrigados a irem viver para zonas periféricas cada vez mais longínquas, desfazendo-se, assim, comunidades de vizinhança existentes para, no seu lugar, surgirem vastas zonas de serviços que vão sucessivamente estrangulando a cidade".
Lisboa, uma cidade cada vez mais caótica, que, como David Mourão Ferreira diz, perdeu o seu carácter de "aldeia, de aldeia grande, à medida do homem" para se transformar num conjunto de várias aldeias à procura da cidade que nunca foi, que ainda não é, que não sabemos se jamais será.


Texto de Margarida Bom de  Sousa
Títulos, legendas e fotos copiados do
Expresso,  Sábado, 27 Agosto 1983






quarta-feira, 14 de março de 2012

Levante-se o réu, diz o juiz


Levanta-te tu meu filho da puta! 

responde João de Deus no filme A Comédia de Deus de João César Monteiro (1995).



João de Deus sentado no banco dos réus.


Discurso de João de Deus 
em  A Comédia de Deus de João César Monteiro 

«Minhas Senhoras e meus Senhores, poupar-vos-ei o relato atribulado em que, por circunstâncias meramente furtuitas e inesperadas, me tornei geladeiro e, pouco a pouco, me fui devotando ao meu ofício. Sou um homem de paz. Podia, quem sabe, ser um criminoso, um proscrito, em permanente rebelião contra uma lei social cega e aberrante. Não sei. Sei que nunca poderia ser político, engrossar o cortejo dessa corja que põe e dispõe do ser humano, guiando-o para um devir cada vez mais favorável à condição de rastejante. "- És réptil e em réptil te tornarás" é a lógica que forma incansavelmente a nossa vergonhosa degradação enquanto indivíduos, enquanto espécie. Contra a trapaça universal os gelados enregelados, o meu gelado, que leva em si toda a energia calórica do mundo, uma palavra amiga, uma prova de amor. Rigor e fantasia. O último luxo soberano de um homem livre que teve a suprema ousadia de, no país dos gatos pingados, exaltar a vida. Não tenho receitas, fórmulas mágicas. Cada gelado que fabrico tem um perfume que lhe é próprio - o seu perfume. Nunca é semelhante ao anterior, nunca será igual ao que lhe sucede. Cada um tem, no entanto, algo para recordar: uma viagem, um passeio, um encontro, um ente querido, a mulher amada... O meu sonho, talvez irrealizável, é fabricar um perfume que concentre em si todos os perfumes, harmoniozamente chegar-me a Deus, à quintessência dos perfumes. Não atraiçoem nunca os sonhos da vossa infância. Se abrirdes os vossos corações talvez possamos provar o glorioso gelado final.»



 
João de Deus discursa na cerimónia de apresentação de um novo "perfume", tendo em vista a sua exportação.


A COMÉDIA DE DEUS 
DE JOÃO CÉSAR MONTEIRO

«A Comédia de Deus é um filme «florentino». Não só porque nele se vislumbram as qualidades raras de um artesanato infinitamente experiente e sagaz, que se mantêm ainda como a única forma de descoberta (a indústria não descobre nada, limita-se a produzir e a reproduzir); não só pelas criaturas que o habitam — condottieres e suas damas, arrebatados por amores dilacerantes, onde a pura abjecção serve para sublimar uma refinadíssima sensibilidade platónica —, mas também porque A Comédia de Deus possui a coerência de uma visão do mundo que não se esgota na vertigem episódica das vidas de João de Deus, a personagem criada por César Monteiro no anterior Recordações da Casa Amarela e que ressurge aqui (renasce) como hábil e misterioso misturador de aromas na gelataria O Paraíso das Avenidas Novas. Como outrora na pintura florentina (como no sorriso da Gioconda que é, talvez, o signo que maximamente a define), A Comédia de Deus (alente-se na evidente ambiguidade do título) é um filme onde a anedota é sempre o desdobramento figurativo, e não metafórico, de uma cena muito mais complexa e terrível. Desde Silvestre (1981) que o cinema de João César Monteiro nos andava a prometer isto. E o isto, que era então uma promessa (ainda enclausurada, por exemplo, no pequeno teorema figurativo do final de À  Flor do Mar), chegou por fim, e é formidável, claro, porque tem o tamanho exacto das suas ambições.
Face a A Comédia de Deus — à justeza e frontalidade do seu radicalismo —, não será difícil imaginar o silêncio embaraçado de todos quantos têm defendido (de forma mais ou menos pública, aliás) milagrosas soluções para a conformação do cinema português e que quase sempre acabam por invocar, afinal, modelos decalcados de um triste folclore nacional - cançonetista (um bom «ritmo», uma boa «rima», feita de palavras que «todos percebam»). Sem querer transformar este filme naquilo que ele não é e que tão obviamente recusa, um objecto corporativo, «espelho» das virtudes do cinema português, e, no entanto, inegável que A Comédia de Deus — até por via do seu sucesso internacional — mostra claramente quais as «paradas» em que o cinema se mexe hoje, mundo fora, e que pouco se compadecem de uma estética «pimba», feita à medida do umbigo português (que, já agora, tem fama de pequeno e ingrato). Rodeado pelas suas Rosarinhos e Joaninhas, obcecado pela higiene da gelataria, o fausto solitário e libertino de João de Deus é um momento importante de resistência do cinema moderno em face de uma morte anunciada pela banalidade da televisão e de todos os produtos em forma de filme que a procuram converter em modelo. Mais do que um filme moral, A Comédia de Deus é um objecto de fé. E por isso o título, que não podia assentar-lhe melhor.»
(João Mário Grilo, Publicado na revista Visão a 25 Janeiro 1996)





sábado, 22 de outubro de 2011

JOÃO CÉSAR MONTEIRO, A MINHA CERTIDÃO



NASCI aos 2 de Fevereiro de 1939, na Figueira da Foz.


Tive infância caprichosa e bem nutrida, no seio de uma família fortemente dominada pelo espirito, chamemos-lhe assim, da 1 ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anti-clericais, muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.

João César Monteiro.


Por volta dos 16 anos, fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca mais fui visto na companhia de políticos.Tendo finalmente conseguido dissipar toda a fortuna na satisfação de brutais apetites, o meu garboso pai veio a falecer vitimado por cruel ataque cardíaco, deixando-me, perplexo e sem um chavo, a coçar a cabeça. Era chegada a hora de dar o corpinho ao manifesto, como a maior parte das pessoas. Filho que era de meu pai, atravessei senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu pas mal de choses», era repatriado.


Rodagem de "Sophia de Mello Breyner Andresen", 1969. 


Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema. O Sr. Vasconcelos andava ao mesmo e parecia fazer progressos que, infelizmente (para ele), o futuro ainda não comprovou. No ano seguinte, trabalhei como assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter aprendido mais qualquer coisinha se não tivesse sido tão presunçoso.Em 1963, na injusta qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, parti para Londres e fim de frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. Aliás, ainda não percebi muito bem para que é que os ingleses nasceram. Deve com certeza ser pela mesma razão que nasceram os percevejos, as baratas e o pão integral, vulgo pão que o diabo amassou. A estadia em Londres, essa foi extremamente divertida, sobretudo no salutar plano das doces amizades; contudo, no regresso à Pátria, o meu pavoroso aproveitamento escolar foi muito sentido, como vergonhosa acção, por provincianas carpideiras a quem nunca passará pelas cabeças, tão chorosas dos mal gastos dinheirinhos da Gulbenkian, que a estupidez e e incompetência assentam arraiais em qualquer parte do mundo, inclusive no coração de Londres, sob o pomposo nome de London School of Film Technique.


Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, 1970. 


Em 1965, conheci o Paulo Rocha e os seus «Verdes Anos», o Fernando Lopes e o seu «Belarmino». Tomei-me de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível. Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projecto de filme em 16 m/m, intitulado «Quem espera por sapatos de defunto morre descalços». Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis. Esse ano negro não findaria, no entanto, sem que deixasse a meio o primeiro filme publicitário que me enfiaram nas unhas: de como, graças ao Não-sei-quê, fazer desaparecer em três penadas o mau cheiro do sovaco, e me internassem num hospício para acalmar as febres.



Fragmentos de um Filme-Esmola: A Sagrada Família (1972).



De novo na vida civil, os meus excessos ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar durante um ano, como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda. Em 1968, após um reconfortante período em que descobri que mães há muitas e pai só um, o celeste, dei mostras de, para além do instinto de conservação, possuir muitos outros bons instintos e fui finalmente recomendado ao produtor Ricardo Malheiro. Foi, pois, na mais desregrada euforia que fiz o filmezinho sobre Dona Sophia. Pouco tempo volvido (ó desgraça!), o Malheiro ia à falência ou, o que vinha a dar ao mesmo, a falência ia ao Malheiro. Sem grande proveito, tentei ainda a publicidade. Desesperadamente. Três ou quatro filmes, uma viagem, hélas! à Guiné, e disse.


Foto célebre de João César Monteiro, 1975/76. 


No ano seguinte, estimulado por algumas boas vontades (saudades), resolvi repegar no projecto «Quem espera por sapatos de defunto morre descalço», cujas filmagens se arrastaram ao longo de dois anos. Numa altura em que eu já deitava o filme pelos olhos, a Fundação Gu1benkian concedeu-me (obrigadinho) um subsidio de $$$$$$$$$$$$$$$$... 180 contos, divididos em 3 prestações. Aqui, tive a tentação de dar uma volta. Pedi ao Vasconcelos para filmar dois planos que faltavam ainda ao filme, e fui. Itália e a inevitável Paris. Esgotada a finança, voltei para acabar o filme, receber a última prestação e partir outra vez, ora de comboio, ora à boleia, consoante a inspiração: Barcelona, Marselha, Florença, Milão, Como, Cernobbio, Paris.

Que Farei com Esta Espada? (1975).


Entretanto, o filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista. Não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário, mas ser insultado por um manhoso negociante é coisa que me põe fora de mim. Detesto a promiscuidade e ensinaram-me a guardar escrupulosamente as distâncias. Por uma única e bem simples exigência: a de manter intacta e intocada e minha pessoa, para além da consciência de todos os meus erros e imperfeições. Levo, as mais das vezes, esta fantochada com o riso no costado, mas não é por acaso que, cada vez mais, me dou com menos pessoas.


Silvestre, 1982. 


Arrumados definitivamente os «Sapatos» iniciei, no Verão passado, «A Sagrada Família», que espero terminar por um destes dias. Presumo que não lhe estará reservada melhor sorte que a do filme anterior, mas devo confessar que a considero uma experiência relativamente importante, se não, e com certeza que não, no plano global de um cinema português, pelo menos, no plano particular do meu próprio cinema e na exacta medida em que, por um lado, discute e corrige dialècticamente o filme anterior e, por outro, prepara já o filme seguinte. O filme seguinte chama-se «A Tempestade», baseia-se no poema dramático de Shakespeare e na ópera de Purcell e será perpetrado numa Arrábida pintada a Robbialac se, como se espera, a edilidade local não levantar intransponíveis obstáculos. Quanto mais não seja, há que atender aos relevantes serviços que a prestimosa tinta, que é só a que mais pinta e que mais dura, tem prestado ao colorido da Nação.


Recordações da Casa Amarela (1989).


Que pensar de tudo isto? Em primeiro lugar, que a vida está má para os pobres. Depois que, nisto ou naquilo, vivemos todos muito ocupados, inclusive na falta de ocupação. Por último, que enquanto, pela parte que me toca, passo o tempo, como agora e aqui, a acariciar o meu dilatado egozinho e a fornecer de mim imagens razoavelmente aliciantes, como estas, existem pessoas bem mais obscuras que, discreta e devotadamente se vão ocupando de mim e do meu glorioso destino o que, aliás, não é novo. Parece que tem sido uma constante da História.
Assim sendo, resta-me reconhecer a solidão moral de uma prática cinematográfica cavada na dupla recusa de ser uma espécie de carro de aluguer da classe mais favorecida e, o que é mais grave, de trocar essa profunda exigência por toda e qualquer forma de demagogia neo-fadista que transporte e venda a miserável ilusão de servir outra coisa.
("A Minha Certidão")
JOÃO CÉSAR MONTEIRO
in Revista &ETC, Nº 8, 30/IV/1973, pag. 19


Vai e Vem, 2003 



"O cinema não tem consolo. Porque é película, e a película nem sequer é tão saborosa como um gelado. É uma matéria físico-química, mais salgada do lado da emulsão porque tem ácidos - isto quando se põe a língua. Não sei se dá saúde. Mas não traz felicidade. E ainda por cima nesta idade já não excita muito o egozinho. O que é que eu gostava de ser? Gostava de não ser cineasta, não ser artista, ser gente simples, passando despercebidamente pelo grande magma social. Isto pressupõe uma certa inveja: não é a inveja de não ser um grande cineasta como o Murnau, é a inveja de não ser afável e simpático como o marido da minha porteira. Não consigo ser. Porque mexo em coisas que têm a ver com a criação, com a arte."

João César Monteiro ao jornal Público, 1995
In, bibliomanias.no.sapo.pt


(fotos á solta na Net)




sexta-feira, 17 de junho de 2011

José Mário Branco: Música de Palavra(s)

Estive para não ir porque estava à volta com as minhas dores mas fui  e abençoados sejam os santos populares (em dia de eclipse), só estando lá se pode acreditar. Eu, que já vi dezenas de concertos do Zé Mário fiquei por várias vezes com um aperto no coração (acreditem que comigo isso é dificíl), acho que estou a ficar piegas. José Mário Branco com ajuda da Manuela de Freitas e acompanhado de Camané, e dos músicos, Carlos Bica, José Peixoto e Filipe Raposo, deram um concerto único e extraordinário no Cinema São Jorge, na abertura do Festival Silêncio.


José Mário Branco e Manuela de Freitas. 
Foto Francisco Grave.


A Sala escureceu depois dos organizadores terem dito umas breves palavras e notei os músicos entrarem no escuro e então entra um excerto do filme do João César Monteiro "Sophia de Mello Breyner Andresen" com a própria a dizer um poema ver aqui e depois entra a música de Tentanda a Via de Antero de Quental e logo o Zé Mário coméça a cantar com aquela voz que deus lhe deu e com ele e depois com o Camané vieram as palavras de alguns dos nossos maiores poetas.

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante!


José Mário Branco – Concerto Cinema São Jorge
Festival do Silêncio

Esta foto não é do espectáculo mas podia ser, estava à solta na Net


ALINHAMENTO-GUIÃO
(os textos à direita apareciam projectados durante as canções)


01. Video: excerto do filme de João César Monteiro "Sophia de Mello Breyner Andresen" com Sophia a dizer um poema

02. Tentanda via de Antero de Quental

Antero de Quental
"Mestre, meu Mestre querido"

03. Uma vez que já tudo se perdeu de Ruy Belo

Ruy Belo
“no meu país não acontece nada”

04. Travessia do deserto de José Mário Branco inspirada no poema Caminho de Sophia de Mello Breyner Andresen
“eu sabia
que antes do próximo oásis
alguém morreria"
(Sophia)

05. Queixa das almas jovens censuradas de Natália Correia

Natália Correia
40 anos depois, outra vez

06. Não te prendas a uma onda qualquer de Bertolt Brecht

Bertolt Brecht
começar de novo
a partir de dentro
a partir de perto
a partir da base

07. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades de Luís de Camões

Luís de Camões
… para que tudo fique na mesma?

08. De pé (Antero) de José Mário Branco

Antero de Quental
“que sois os loucos
porque andais na frente”

09. vídeo de David Mourão-Ferreira a dizer um poema

10. Lembra-te sempre de mim de David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira
"e por vezes lembramos que por vezes"

11. Quadras de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa
"essa coisa da alma"

12. Ser aquele (fado menor) de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa

"... este silêncio no qual, ofegantes,
sabemos com tanta dor
que ainda estamos vivos”
(Herberto Helder)

13. Arrocachula de José Mário Branco

“de longe muito longe desde o início
o homem soube de si pela palavra”
(Sophia)

14. A meu favor de Alexandre O'Neil

Alexandre O'Neil
"o amor é o amor
e depois?"

15. Inquietação de José Mário Branco

“tudo o que sonho ou passo
o que me falha ou finda
é como que um terraço
sobre outra coisa ainda
- essa coisa é que é linda”
(Fernando Pessoa)

16. As palavras de Manuela de Freitas

“secretas vêm, cheias de memória”
(Eugénio de Andrade)

17. vídeo de Mário Cesariny a dizer um poema

18. Perfilados de medo de Alexandre O'Neil

Alexandre O'Neil

“ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes”
(Jorge de Sena)

19. Silêncio pesado de Manuela de Freitas

“nada é inacessível no silêncio ou no poema”
(António Ramos Rosa)

20. Com fúria e raiva (poema de Sophia dito por José Mário Branco

21. Sopra demais o vento de Fernando Pessoa


«e agora vão dormir»