Marlon Brando, Eva Marie Saint e Karl Malden em uma cena do filme, Há Lodo no Cais (On the Waterfront, 1954) de Elia Kazan. 1954. Alfred Eisenstaedt. Foto LIFE Archive.
Há, em quase todos os portugueses, um pouco de Terry Malloy. «I coulda been a contender», diz ele. Disse ele. Poderia ter sido um campeão. O condicional diz tudo. Poderia. O que faltou a Terry Malloy? O que falta aos portugueses para saírem da condição passiva, para deixarem de serem os homens de fretes no cais? Malloy vai encontrar a sua oportunidade no amor que lhe testemunha Edie Doyle (Eva Marie Saint), que lhe transmite a força capaz de o colocar de novo de pé, e lhe permite avançar, em passos vacilantes, para o armazém, dirigindo uma equipa de trabalho, agora liberta do medo dos «gangsters» que controlavam o sindicato dos estivadores, nos cais de Nova Iorque.
Estou a falar, como já muito bem entenderam, de Há Lodo no Cais, o filme de Elia Kazan, onde ganhou o seu primeiro Óscar um nome que então provocava paixões, e que ainda hoje é o testemunho único de uma forma de representar: Marlon Brando.
Marlon Brando, com o Óscar no braço esquerdo, falando com uma mulher não identificada na cerimónia dos Óscar's de 1955, no RKO, Theater, após receber o Óscar de Melhor Ator pelo filme, Há Lodo no Cais de Elia Kazan. Hollywood, EUA. 1955. George Silk. Foto LIFE Archive.
E uma forma de ser, também. De tal forma, que o que atrás disse sobre a personagem se poderia dizer sobre o protagonista. Brando foi um campeão. Isso ninguém contesta. Mas poderia ter sido muito mais. Brando poderia ter sido «o» actor por excelência, para além de ser o «modelo» que todos queriam copiar. Elia Kazan afirmou que Marlon Brando «arruinou» duas gerações de actores. A afirmação tem pertinência, na medida em que todo o novo actor que aparecia, seus contemporâneos ou da geração seguinte, em vez de seguirem o seu caminho procuravam, antes de mais, imitá-lo. Antes de se descobrirem a si próprios, fosse um Paul Newman, que o conseguiu, fosse um James Dean, que não teve tempo.
Marlon Brando e Anna Magnani durante as filmagens de, O Homem na Pele da Serpente (The Fugitive Kind, 1959) de Sidney Lumet. Foto gahetna.nl.
Brando foi, antes de mais, um «esbanjador» de talento; deitava-o às mãos cheias pelas janelas de uma série de filmes medíocres, de um Desirée (onde foi Napoleão) a Os Sedutores, de Ralph Levy. Inclusive, a partir de Duelo no Missouri (1976) não fez outra coisa senão expor-se, exibir-se como uma «curiosidade» mais do que como actor, e fazendo-se pagar na justa medida, ou seja, quase o «seu peso em ouro» (para 13 dias de trabalho em Superman cobrou 3,7 milhões de dólares e 10% dos lucros! Sendo o filme de 1978, façam as contas à inflação), o que talvez tenha sido a razão da sua entrega aos requintes culinários, especialmente guloseimas (ah! O belo sorvete!) que rapidamente o transformaram de «personalidade», numa imponente «rotundidade» cinematográfica (é vê-lo na última versão de A Ilha do Dr. Moreau, de John Frankenheimer, de 1996).
Marlon Brando e Jane Fonda durante as filmagens de Perseguição Impiedosa (The Chase, 1966) de Arthur Penn. Foto gahetna.nl.
Mas mesmo nesta fase de «diletante» do ecrã, em que praticamente se recusava a estudar os argumentos, limitando-se a ler as suas deixas em cartões estrategicamente colocados, a sua presença e figura impunham-se sobre tudo e todos, dando-nos ainda a breve e soberba composição do coronel Kurtz em Apocalipse Now, de Coppola, e conseguindo uma nova nomeação para o Óscar (de actor secundário) em 1989 no papel de um advogado em Assassinato sob Custódia. E o seu último grande papel (a tempo inteiro!), em O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, feito em 1972, é um filme em que a sua persona cinematográfica se confunde com a sua pessoa, quando evoca memórias familiares que poderiam ter sido suas.
Marlon Brando e Elizabeth Taylor durante as filmagens de Reflexos num Olho Dourado (Reflections in a Golden Eye, 1967) de John Huston, baseado no livro da grande escritora Carson McCullers. 1966. Loomis Dean. Foto LIFE Archive.
Digam o que disserem do que ele fez nestes anos pródigos, em que brincou consigo próprio e esbanjou o talento, ninguém pode negar ou desvalorizar o papel que ele teve na década de 50 e da «revolução» (só este termo se aplica ao que ele fez) que trouxe para o trabalho do actor, no palco ou no cinema. Há os que não lhe perdoam ter abandonado os palcos, aonde nunca voltou quando triunfou no cinema com a adaptação do seu sucesso no teatro, Um Eléctrico Chamado Desejo, dirigido por Elia Kazan. Já tivera uma experiência (O Desesperado, de Fred Zinnemann) mas foi o drama de Tennessee Williams que lhe abriu as portas da glória. Bastaria este filme, e também Há Lodo no Cais e o seu Don Corleone de O Padrinho, para o colocarem no panteão das glórias do cinema.
Mas poderia ter sido muito mais, ou algo mais. Não apostou na carreira de realizador (apesar de não se ter saído mal com o «western» Cinco Anos Depois), e transformou a de actor numa espécie de desfile carnavalesco. O que o levou a desistir? Medo do próprio triunfo. Ou apenas fatalismo? Haveria qualquer coisa de português em Brando? Não deixo de pensar nisto quando vejo um filme dele. E não estou, agora, a pensar no Mundial de futebol.
Manuel Cintra Ferreira
Expresso, 1 de Julho de 2006
Marlon Brando em O Padrinho (The Godfather, 1972) de Francis Ford Coppola.
Pier Paolo Pasolini. Foto sem data encontrada em historica.com.br
Coisas boas em jornais
1922, 5 de Março — Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha. O pai, Carlo Pasolini, originário de uma antiga família de Ravena cujos bens dissipara, é tenente de infantaria. A mãe, Susanna Colussi, de origem friulana, é professora primária em Casarsa della Deizia.
«Em 1922, ano mergulhado no século, Bolonha respirava um ar de valsa.» (Pasolini, `L'Usignolo della Chiesa Cattolica', Longanesi, Milão, 1958).
Em Outubro, os trinta mil «camisas negras» de Mussolini marcham sobre Roma.
1925 — Nasce o irmão de Pier Paolo, Guido Alberto, em Belluno. «Nesse tempo, eu ainda me dava bem com o meu pai. Era extraordinariamente caprichoso, isto é, presumivelmente, neurótico, mas bom. Para com a mãe, (...) encontrava-me no estado de alma que seria o de toda a minha vida, o de um amor desesperado.» (`Empirismo Herege', Assírio e Alvim, 1982).
Pier Paolo Pasolini e sua mãe Susanna. Anos 60. Foto Mario Dondero em en.daringtodo.com
«Toda a minha vida foi influenciada pelas cenas que o meu pai fazia à minha mãe. Ele acusava-a de viver nas nuvens, o que não era verdade. O facto era que ele era fascista, e ela não.» (‘E tu chi eri — Interviews d'enfance, Dacia Maraini, Bompiani, Milão, 1973).
Durante a infância e os primeiros anos da adolescência, Pier Paolo é transplantado de cidade em cidade, devido à carreira militar do pai.
1929 — Pier Paolo escreve os seus primeiros poemas em Sacile, onde termina a escola primária.
«Misteriosamente, um belo dia, a minha mãe mostrou-me um soneto escrito por ela no qual exprimia o seu amor por mim (...) Alguns dias mais tarde, escrevi os meus primeiros versos, os quais falavam de rouxinol' e de `folhagem'.»
1935/40 — Novas deslocações: Cremona, Reggio Emilia. Longa estadia em Bolonha, estudos secundários (Liceu Galvani) e universitários (licenciatura em Letras). Prepara uma tese sobre o poeta Pascoli. Toma consciência do conformismo fascista e participa nos primeiros cineclubes. Começa a desenhar com uma regularidade que nunca o abandonará, até aos últimos retratos da Callas e dos seus amigos romanos.
«Tudo o que eu descobria e amava era posto sob silêncio ou banido sem a menor cerimónia pelos fascistas: Rimbaud, os poetas simbolistas, herméticos, os grandes autores de teatro (...) O meu antifascismo de adolescente era mais cultural do que politico.» (‘As últimas palavras do herege', entrevistas com Jean Duflot, Brasilense, 1983).
1942 — A família refugia-se em Casarsa, enquanto o pai se encontra prisioneiro de guerra no Quénia. E é ao pai que Pasolini dedica o livro de poemas que, a expensas próprias, publica nesse ano: `Poesia e Casarsa' (escrito em dialecto friulano). O livro é recenseado no Corriere de Lugarno, por Gianfranco Contini.
Pier Paolo Pasolini e seu pai, Carlo Alberto, em Florença nos anos 30. Foto de www.presseaporter.com
1943 — Pier Paolo cumpre o serviço militar em Livorno. A 8 de Setembro, dia do Armistício, recusa entregar-se aos alemães e foge para Casarsa.
«Troquei Pisa por Casarsa, em farrapos, com dois sapatos diferentes, depois de ter desobedecido aos oficiais que me haviam dado ordens para entregar as armas aos alemães. Depois de ter percorrido uma centena de quilómetros a pé e de me ter arriscado mais de cem vezes a encontrar-me num comboio com destino à Alemanha... recomecei logo a escrever versos em friulano e Italiano (...). Mas isso não me impediu de ir escrever `Viva a liberdade' nas paredes, e de acabar, pela primeira vez na minha vida, na prisão, experimentando, assim, o que são os homens da Ordem.» (citado em `Pasolini', seminário dirigido por Maria Antonietta Macciochi, Bernard Grasset, Paris, 1980).
1945 — O seu irmão Guido, resistente da brigada 'Osoppo', é ferido, perseguido e executado sumariamente por resistentes jugoslavos. O tema da `morte do jovem' atravessa doridamente toda a obra de Pasolini.
«(...) ele era o melhor de todos nós. Era tão bom, tão generoso, que quis dar-me a prova disso, sacrificando-se pelo seu irmão mais velho, que talvez amasse demasiado, em quem talvez acreditasse demasiado. (...) Lancei-o no antifascismo mais ardente, com a paixão dos catecúmenos, porque, também eu jovem, descobrira, apenas dois anos antes, que o mundo no qual eu nascera sem nenhuma perspectiva era um mundo ridículo, absurdo... e, então, eu não tinha ainda lido Marx e era liberal, com uma preferência pelo partido de acção. Penso que nenhum comunista poderá condenar a acção do guerrilheiro Guido Pasolini...» (Vie Nuove, 1961).
Envelhecido, o pai regressa a Casarsa. Tor-minada a sua tese de licenciatura, Pasolini lecciona, entre 1945 e 1949, em Valvasone, na região de Casarsa. A 18 de Fevereiro de 1945 funda, com um grupo de jovens universitários friulanos, a Academia de Língua Friulana, que edita cadernos de pesquisa filológica e poética — os 'Stroligut de ca' da l'aga' (O Feiticeiro deste lado da água). Era o início da luta contra a homogenização linguística desencadeada pelo fascismo e acirrada pela civilização tecnológica (o consumismo que Pasolini considerará o «novo fascismo»).
Entre 1943 e 1949, escreve os poemas que publicará em 1958 sob o título 'L'usignolo della Chiesa Cattolica' (O rouxinol da Igreja Católica).
Pier Paolo Pasolini - Homem de Letras. Primeira parte de um documentário que pode encontrar no youtube na totalidade. Carregado por europecinema em 03/01/2008.
1947 — Inscreve-se no Partido Comunista Italiano, onde se torna secretário da secção de Casarsa — mas esta militância consignada não durará mais do que um ano.
«(...) fiz como um certo número de camaradas, não renovei a minha carteira depois da expiração. A orientação cada vez mais estalinista de Togliatti, essa mistura de autoritarismo e de paternalismo sufocante, não me parecia favorável ao desabrochar das grandes esperanças do pós-guerra. (...) Simultaneamente, nestes anos 48-49, eu descobria Gramsci (...) A ressonância da obra de Gramsci em mim foi decisiva (‘As últimas palavras de um herege').
«Marx não tomou em consideração o irracional. Digo Marx para dizer o marxismo.» ('Ulisse', Setembro, 1960.)
Todavia, falará sempre do PCI como «um país limpo dentro do país».
1949 — Pasolini é acusado de ter tido «relações carnais com alguns dos seus alunos». A denúncia parte de um padre a quem Pier Paolo se confessara, que rompe o segredo da confissão. Durante os restantes vinte e seis anos da sua vida ser-lhe-ão movidos mais de trinta processos por homossexualidade. O Partido expulsa-o «por indignidade moral do poeta Pier Paolo Pasolini».
Foge para Roma com a mãe; instalaram-se inicialmente na Piazza Costaguti, no pórtico de Ottavia, e depois nos Borgate, em Ponte Mammolo, perto da prisão de Rebilobia (lugares recorrentes da escrita pasoliniana).
«Estou sem trabalho, reduzido à mendicidade. Muito simplesmente porque sou comunista. Não me espanta a diabólica perfídia democrata-cristã; espanta-me a vossa desumanidade. Tu sabes bem que falar de desvio ideológico é uma imbecilidade. Apesar de vocês, eu permaneço e permanecerei comunista, no mais autêntico sentido do termo. Qualquer outro, no meu lugar, se suicidaria, mas, infelizmente, devo viver pela minha mãe.» (Carta a Francesco Mautino, da Federação Comunista.)
Finalmente, consegue um posto de professor em Cianpino, com 27 mil liras por mês; mais tarde, graças a Giorgio Bassani, começará a trabalhar em argumentos para cinema. A mãe trabalha como mulher-a-dias. O pai reunira-se-lhes entretanto, e mudam-se os três para a Via Fonteiana.
1952 — Publica `Poesia Dialectal do Século XX' (em colaboração com Mario dell'Arco).
1954 — Publica `La Meglio Giuventu' (A Melhor Juventude), recolha das suas poesias friulanas. Publica um diário poético: `Dal Diario'. Trabalha, pela primeira vez, como argumentista, no filme de Mario Soldati 'La Donna del Fiume' (A mulher do rio). «Eu literalmente morria de fome.» (`As últimas palavras de um hereje'.)
Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, perto de Roma durante as filmagens do primeiro filme de Pasolini "Accattone". Foto de 1961, de Marina Cicogna encontrada em www.livincool.com
1955 — Colabora na revista «Officina», que, apesar da sua curta vida, ficará como testemunho importante de alguns intelectuais italianos face ao automatismo e conformismo dominantes. Publica `Ragazzi di Vita', transposição romanesca da sua experiência nas borgate, primeiro grande êxito literário, primeiro processo por «obscenidade». Publica um 'Canzonieri Italiano' (Cancioneiro italiano) e uma `Antologia della Poesia Popolare'.
1956 — Colabora no argumento de `As Noites de Cabiria’, de Frederico Fellini. Até 1973, trabalhará em numerosos argumentos (cerca de doze) com Bolognini, Rossi, Fellini, Bertolucci - entre outros.
1957 — Publica 'Le Ceneri di Gramsci' (As Cinzas de Gramsci), que recebe o Prémio de Poesia de Viareggio e o consagra face à crítica.
Morte do pai. «Não queria tratar-se, em nome da sua vida retórica. Não nos dava ouvidos, nem à minha mãe nem a mim, porque nos desprezava. Uma noite voltei a casa apenas a tempo de o ver morrer.»
1958 — Publica «L'Usignolo della Chiesa Cattolica» (O Rouxinol da Igreja Católica), (poemas).
1959 — Publica «Una Vita Violenta» (Uma Vida Violenta), romance que é traduzido em onze países e sucessivamente reeditado em Itália — e também processado.
Pasolini com Anna Magnani e Ettore Garofolo durante a rodagem de "Mamma Roma" (1962). Foto de burusi.wordpress.com
1960 — Publica «Roma 50, Diário»; «Sonetto Primaverille»; «Passione e Ideologia»; «Poesia Popolare Italiana». Realiza a sua primeira longa-metragem, «Accatone», com a qual se inicia também o rosário dos processos cinematográficos...
«A primeira imagem — lembrança que tenho do cinematógrafo é um cartaz. Eu devia ter quatro ou cinco anos: a-imagem de um tigre solto, devorando um homem, do qual o mínimo que posso dizer é que parecia sofrer maravilhosamente (...) Comecei a rodar o meu primeiro filme com quarenta anos, sem mesmo saber que existiam objectivas diferentes, ou o que era exactamente uma panorâmica...
(...) Fui portanto obrigado a inventar uma técnica, que só podia ser a mais simples, a mais elementar possível. Estilisticamente, a simplicidade transmutou-se em severidade, o elementar tornou-se absoluto. (...) A complexidade torna comum, a simplicidade diversifica. («As últimas palavras de um herege»).
1961 — Publica «La Religione del Mio Tempo», compilação dos artigos e poemas publicados em Officina. Publica o «Manifesto per un Nuovo Teatro». Realiza «Mamma Roma».
«`Mamma Roma' é a obra onde, pela primeira vez na vida, eu me repeti. Repeti-me, e cometi esse erro, por ingenuidade. Na vida é preciso ser ingénuo, mas sê-lo no domínio da estética é um erro.» («As últimas palavras de um herege»).
1963 — Realiza «La Ricotta», que será apreendido, e «La Rabbia».
Pier Paolo Pasolini dirigindo Orson Welles em "La Ricotta" (1963). Foto de centotto.com
1964 — Realiza «II Vangelo secondo Matteo» (O Evangelho Segundo São Mateus), que recebe o Grande Prémio da União Internacional da Crítica e o da Organização Católica do Cinema. Publica «Poesie in Forma di Rosa»,
1965 - Publica «Ali dagli Occhi Azzurri».
1966 — Realiza «Uccellacci e Uccellini» (Passarinhos e Passarões).
«O filme de que mais gosto é «Passarinhos e Passarões». Creio tê-lo feito com o máximo de pureza, com uma pureza toda franciscana! Ele não me rendeu absolutamente nada, aliás. Posso mesmo dizer que perdi dinheiro com ele. E um filme bastante pobre, que não custou grande coisa. Emociona-me muito.» («As últimas palavras de um herege»).
1967 — Realiza «Edipo Rei».
1968 — Realiza «Teorema», que será processado e apreendido.
«Assim que os jovens contestatários abandonam a cultura para optar pela acção e pelo utilitarismo, resignam-se à situação na qual o sistema trabalha para os inserir.» («As últimas palavras de um herege»).
1969— Realiza «Porcile» (Pocilga).
1970 — Realiza «Medeia».
Pasolini com Maria Callas durante as filmagens de "Medeia" (1969). Foto de www.presseaporter.com
1971 — Publica «Trasumanar e Organizzar» (Transumanar e Organizar).
«Quero dizer por isso que a outra face da transumanação (a palavra é de Dante, sob esta forma apocopada) ou da ascese espiritual, é precisamente a organização.»
Inicia o ciclo da «Trilogia da Vida» com o «Decameron», (segundo Boccacio).
«São filmes bastante fáceis e eu fi-los para opor à sociedade de consumo actual um passado bem recente em que o corpo humano e as relações humanas eram ainda reais, ainda que arcaicas, ainda que pré-históricas (...) Mas estes filmes acabaram por ser, eles próprios, ultrapassados tornados velhos pela tolerância da sociedade de consumo. (...) Foi por isso que abjurei a `Trilogia da Vida', que era uma nova fase, digamos, de carácter popular, simples.» (Citado em «Pasolini», seminário, já referido).
1972 — Publica «Empirismo Erético», reflexão semiológica acerca do cinema e da literatura, iluminada por Saussure, Bar-thes, Metz (tradução portuguesa: «Empirismo Herege», Assírio e Alvim, 1982),
Realiza o segundo filme da «Trilogia da Vida», «I Racconti di Canterbury» (Os Contos de Canterbury), de novo processado e apreendido.
1973 — Em Calderon, experimenta a sua concepção do teatro da palavra. Publica «II Mestiere di Scrittore» (A profissão do escritor).
Rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Foto de www.cinemista.com.br
1974 — Último filme da Trilogia: «II Fiore Delle 1001 Notte» («As Mil e Uma Noites»), que sofre, como se esperava, perseguições várias.
Realiza «Saló o le 120 Giornatte di Sodoma» (Saló ou os 120 dias de Sodoma), que será objecto de processo e apreensão após a morte de Pasolini.
«Não sei muito bem porque fiz este filme. Espero compreender porque o fiz dentro de alguns meses ou anos. O sexo aparece ainda aqui mas em vez de ser utilizado, como na `Trilogia da Vida', como algo de feliz, belo e perdido, é utilizado como qualquer coisa de terrível, tornou-se a metáfora do que Marx chama a comercialização do corpo, a alienação do corpo. O que Hitler fez brutalmente, matando, destruindo os corpos, a sociedade de consumo fê-lo no plano cultural; na realidade, é a mesma coisa. (Citado em «Pasolini», Seminário, op. cit.)
Entre 1970-1975, Pasolini intensifica as suas intervenções em «scritti» dispersos por vários jornais. Estas prosas são publicadas em volume sob o título «Scritti Corsari» (Escritos Corsários ou «Escritos Póstumos», em tradução portuguesa, Moraes).
1975 — 2 de Novembro — Pier Paolo Pasolini aparece de madrugada assassinado numa praia entre Ostia e Fiumicino, contra um fundo de barracas e destroços. Presumível, assassino: um «ragazzo di vita» de nome Pelosi.
«Os cabelos escorrendo sangue, o rosto inchado de nódoas negras e hematomas, a maxila esquerda fracturada, o nariz metido para dentro, as orelhas parcialmente arrancadas, uma ferida horrível entre a nuca e o pescoço que sangrava ainda, os dedos cobertos de nódoas negras e contusões, dez costelas fracturadas, tal como o externo. Também se observava um rasgão largo e profundo nos testículos, o fígado encontrava-se dividido em dois, o coração rebentado.»
Rodagem de Decameron (1971). 1971. Foto de Mario Tursi em pasolinipuntonet.blogspot.pt
1975 — Publicação em Portugal de dois romances (inéditos à data da morte) do tempo de adolescência «Amado Mio» e «Atti Impuri». («Amado Mio» e «Actos Impuros», ed. dupla Difel.)
Sobre «Atti Impuri»: «'Atti Impuri', até pela sua forma abertamente de diário, é uma comovida descida aos infernos de um eu assolado por contradições profundas, para trazer á superfície o verde paraíso dos anos passados no Friuli.» (Carlo Vittorio Cattaneo, «Expresso», 2/7/85).
Sobre «Amado Mio»: «Tudo se passa numa atmosfera alternadamente fresca (os banhos no rio ou no canal, que constituem um dos mais belos lugares recorrentes na prosa de Pasolini) e abafada (o suor sobre os corpos, uma pressentida promiscuidade que remete para o universo adolescente da indiferenciação das sensações) em campos que se estendem a perder de vista, entre tons violáceos e `o fumo acre e fabuloso do lume matinal'.» (António Mega Ferreira, «Jornal de Letras», 2/4/85).
Cronologia estabelecida por Inês Pedrosa no Jornal de Letras de 1 de Outubro 1985.
Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975) Foto de www.pasolini.net