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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Joshua Benoliel e a Ilustração Portugueza


Durante a Greve: O povo assaltando um carro eléctrico. 1912. Lisboa. Joshua Benoliel.


«O fotojornalismo português tem um pai e chama-se Joshua Benoliel. A obra deste pioneiro do jornalismo fotográfico é pouco divulgada e a sua importância nunca enquadrada historicamente de forma a dar-lhe a importância determinante que tem no nascimento de um fotojornalismo português. As suas fotografias são mostradas muitas vezes sem a indicação de que são de sua autoria, como se fossem documentos anónimos, de domínio público, sem autor. A obra de Benoliel está dispersa, muitas das suas chapas de vidro – o suporte com que ele trabalhou predominantemente – partiram-se, sumiram ou foram dadas como cacos inúteis.» 
Luiz Carvalho, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005


A caminho do dever: Um adeus carinhoso. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Os emigrantes alentejanos: A chegada do vapor que os conduzia á ponte do Terreiro do Paço. 1911. Lisboa. Joshua Benoliel.

«Um fotojornalista não é um «bate-chapas». Isso é evidente em Benoliel. Ele fotografou os principais acontecimentos do seu tempo, mas além do conteúdo, as suas fotografias são esteticamente belas. É isso que aprecio muito na sua obra, sobretudo se pesarmos que na altura não havia máquinas digitais, nem automáticas, as películas eram muito lentas . Fico deslumbrado como é que ele – e outros, embora ele seja um expoente – conseguia fazer aquelas imagens espantosas.» 
Eduardo Gageiro, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005

As cheias do Douro: Cais da Ribeira. 1910. Porto. Joshua Benoliel.

A caminho de França: Comprando fruta antes do embarque. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

No Cais de Caminha: Desembarque de sargaço. 1913. Caminha. Joshua Benoliel.

Tropas portuguesas para França: Acariciando a filha antes de partir. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel


«É, para mim, o maior repórter fotográfico do século passado. Benoliel era um homem de visão rápida e de grande sensibilidade artística. Além disso, viveu numa época em que só um fenómeno, um senhor, podia fazer aqueles instantâneos, grandes planos, panorâmicas, cenas de rua, revoluções... 
Fala-se muito dos grandes repórteres fotográficos, após os anos 50, como o Cartier-Bresson, o Frank Capa e outros grandes nomes da Magnum. Mas o Joshua Benoliel trabalhava em condições muito diferentes. Enquanto os fotógrafos depois dos anos 50, trabalhavam com Leicas, objectivas luminosas, sensibilidades rápidas, o Benoliel trabalhava com autênticos trambolhos de fole, pesando quilos, com chapas de vidro, muitas vezes emulsionadas por ele próprio e sensibilidades baixas aliadas a objectivas pouco luminosas. Com esses caixotes, esse homem movia-se por artes que hoje nos parecem mágicas, fotografando instantâneos que hoje nos parece impossível terem sido feitos naquelas condições.» 
João Ribeiro, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005


De Espanha para Portugal: Galantaria de Português. 1911. Minho. Joshua Benoliel.

Expedicionários Portugueses: Escrevendo a um camarada uma carta para a família  1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Marinha de Guerra Portuguesa: Preparando um torpedo. 1916. Lisboa? Joshua Benoliel.

A partida para França: Uma despedida afectuosa. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Concurso Hipico das Caldas: Salto de sebe por um campino. 1910. Caldas da Rainha. Joshua Benoliel.


Duas capas da Revista Ilustração Portugueza:  O abraço de despedida. 1914. Local desconhecido. Joshua Benoliel. e Fazendo compras na feira. 1909. Local desconhecido. Joshua Benoliel.



ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA – Foi lançada pela Empresa do jornal O Século em Novembro  de 1903 e manteve-se até 1993. Uma longevidade mais aparente do que real, porque a partir de 1931 verifica-se apenas a edição de um ou dois números por ano, com poucas páginas, evidenciando o propósito exclusivo de manter a posse do título.
(...) Edição semanal, a  Ilustração Portuguesa tem na imagem a sua marca distintiva. O editorial de apresentação faz questão de vincar bem essa opção, sublinhando a importância do desenho que, «pelos tempos fora, reproduziu tudo». Entendida como um complemento d’ O Século, propunha-se utilizar essa linguagem universal para  dar a conhecer «o mais belo e o mais útil». A Ilustração Portuguesa seria o «álbum das grandes festas e dos casos triviais», na ideia de que essa informação seria de proveito «tanto aos homens de hoje como ás gerações vindouras»
(...) Entre os seus primeiros  desenhadores encontravam-se  Alberto Souza, Cândido, Carlos Pereira, Jorge Colaço; mas foi na segunda série, por via de colaboradores como  Almada Negreiros, Apeles Espanca, Bensaude,Bernardo Marques, Cottineli Telmo, Ferreira da Costa, Gaspar Teles, Jorge Barradas, Manuel Gustavo, Rocha Vieira, Start Carvalhais, que a Ilustração Portuguesa se fez catálogo de arte. O propósito  de informar por imagens  alcançou-se também com recurso à fotografia que, à rapidez de execução, acrescentava a nota da veracidade de tudo o que é captado pela lente de uma máquina, e o toque de modernidade. Num ápice, os desenhos são suplantados pelos clichés de Bobone, Camacho, João Correia dos Santos e V. Mello; e, iniciada a segunda série, de Augusto Teixeira, Benoliel, Delius, Félix, Frederico Braga, Garcez, Guedes d’Oliveira, João Magalhães Júnior,  Novaes, Photographia Sequeira & Roque, Salgado, Vasques, entre muitos outros; aos quais havia ainda que acrescentar as dezenas de amadores, de todo o país, que enviaram fotografias para a Ilustração Portuguesa, que as publicou, identificando os autores pelo nome e agradecendo a oferta; com igual ou maior interesse foram recebidas as fotos dos militares que participaram na I Grande Guerra. É um conjunto impressionante, não obstante a pequena dimensão de muitos registos e a sua fraca definição.  Foi certamente fundamental ou mesmo determinante para o sucesso da Ilustração Portuguesa. Não é difícil imaginar quão sedutora  terá sido,  mesmo entre os  iletrados, uma publicação que faz notícia do que acontece em todo o mundo, no país, isto é, nos grandes centros urbanos, mas também  nas vilas e aldeias  mais recônditas, oferecendo paisagens reconhecíveis, rostos familiares e até o  protagonismo de uma fotografia, um desenho ou uma história.
In, hemerotecadigital.cm-lisboa.pt


(Fotos copiadas de capas da Revista Ilustração Portugueza da Hemeroteca Digital da CML)


Os textos das fotos foram retirados das capas da revista Ilustração Portugueza



quarta-feira, 30 de maio de 2012

Stuart de Carvalhais, A vida sem rede

«A distância em relação ao poder é a escola mais importante de Stuart .»
(António, Cartonista em Jornal de Letras, 28-08-89)


Stuart de Carvalhais (1887-1961)


José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais, mais conhecido por Stuart de Carvalhais, foi um pintor, e autor de banda desenhada. É considerado o pai da banda desenhada em Portugal. Para além de divertir o público com os desenhos que apareciam nos jornais, revistas ou livros, quem com ele privou é unânime em afirmar que na vida pessoal sempre foi uma pessoa de trato muito divertido, sendo mais que muitas as anedotas reais que se passaram consigo. Apesar de grande parte do meio intelectual do seu tempo o olhar com desdém, o grande escritor que foi Aquilino Ribeiro definiu-o na perfeição: "O grande e pobre Stuart". (In, infopedia.pt)

Coisas boas em jornais


STUART, A vida sem rede
por
Fernando Assis Pacheco


Stuart de Carvalhais.
Contam-se por milhares os seus cartoons, sabe-se lá quantos perdidos para todo o sempre. Stuart de Carvalhais executava-os à medida das, encomendas e à cadência das necessidades próprias, mas um dia desabafou para Aquilino Ribeiro: «Há dezoito anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos...»

Filho de um engenheiro agrónomo e de uma senhora de ascendência escocesa, ambos transmontanos, José Herculano Torrie Suta rt d'Almeida Carvalhais nasce em 07.03.1887 na cidade de Vila Real, de onde, muito pequeno, o pai o leva para Zalamea la Real, província do Huelva, ao ser ali colocado nas minas de Rio Tinto. Aprende então Espanhol e mistura-o generosamente com o Português enquanto aprende as primeiras letras.
Aos seis anos a família regressa a Portugal: Alenquer, mais tarde Montemor-o-Novo e Lisboa. José Herculano faz parte do curso dos liceus em Évora, apanhando um irónico chumbo em Desenho.
Lisboa, para onde os Carvalhais vêm em 1901 — o pai contratado pelo Museu Etnográfico na qualidade de colector-preparador, por empenho de Leite de Vasconcelos —, não parece vê-lo melhorar por aí além quanto aos estudos. A mãe ainda alimenta o sonho de vê-lo cursar Belas Artes. Em vez disso entra para o atelier de Jorge Colaço e inicia-se na técnica do azulejo, ganhando como aprendiz 5$00 por metro quadrado. (Ao azulejo voltará em 1921, com Francisco Valença, para decorar a escadaria do Diário de Lisboa.)

É Colaço que o inicia na ilustração e na caricatura, acompanhando-lhe os primeiros passos, a estreia absoluta no Tiro e Sport logo seguida de uma colaboração regular n'O Século Cómico, em 1906. Até 1913, ano da partida para Paris, Stuart faz a mão em tudo quanto é publicação de humor, dirigindo mesmo uma folha, A Sátira (1911). Também experimenta ser clown, com o nome artístico de Mr. Billot, no Palácio Foz, então um local muito in da Lisboa Alegre. E torna-se habitué do teatro de revista. Da fama de Don Juan não se livra: traz uma girl por conta, ou vice-versa, que é ainda mais gratificante.
Evitemos a minúcia biográfica, mais próxima de uma obra de fundo como Crónicas d'um Stuart, de Osvaldo de Sousa, edição recente (Dom Quixote). Mas 1913 merece algumas linhas largas.
«Usava os cabelos soltos ao vento, um rolo de papéis debaixo do braço...», «contará a Vasco Callixto. «E um desejo imenso de visitar Paris...» A oportunidade surge-lhe à conversa com Carlos Franco, José Pacheko e Valentim Talone, no Café Martinho. Entre o «queres vir?» e o «vou!» é um sopro, do Rossio à Gare d'Austerlitz correm 34 horas zebradas — o verbo vai estar na moda — de ânsia e premonição de triunfo. Entre as redacções, claro. E uma delas promoverá mesmo Stuart a vedeta. Título, Ruy Blas.


"Lisboa numa roda só:  aí vai Stuart de Carvalhais empurrado 
rua fora, nos tempos em que viver era formidável".

A experiência parisiense do exdiscípulo de Jorge Colaço tem essa vertente profissional séria, em que ele multiplica as colaborações por várias revistas e jornais de humor, ao mesmo tempo que apura o traço na boa escola de Gousbofa e Poulbot, como diz João Abel Manta; e o lado boémio, de adolescente retardado, bebendo mais do que a conta e, confissão ou hipérbole, fazendo pé de alferes às beldades do bairro, entre as quais uma empregada doméstica com que se terá tomado de amores. Pobre ingénua Louise. Uma vez o português mostra-lhe um postal com a Torre de Belém. (Et c'est quoi?), pergunta a rapariga abrindo muito os olhos. «Le palais de ma famille!», diz Stuart .
Louise, aliás Louisette, haveria desempenhado um papel importante no contrato do Ruy Blas, isto segundo uma das versões do artista, que também avançará com uma outra não coincidente. Pecha bastante sua: o passado retocado. A versão Louisette é digna de romance, incluindo um encontro com a mulher de um cabeleireiro que arranja a coiffure da mulher do director do Ruy Blas... Impagável. Mas, como quer que seja, o todo-poderoso Muller, director da revista, gosta de Stuart e propõe-lhe 500 francos por mês, sob exclusivo.


"Quatro tipos de Lisboa apanhados em flagrante nos bairros pobres, às vezes
Stuart limitava-se a usr um pau de fósforo para dar vida às suas personagens"

Todavia esta cláusula leonina não existe no seu mundo, é uma violência inaudita para quem se vê assoberbado com pedidos de colaboração, tentado por ofertas em metal sonante. Ei-lo a mandar desenhos e caricaturas para Le Journal, Cri de Paris, Le Sourire, L'Assiette au Beurre, Pel-Mel, Pages Folies, a coberto de pseudónimos que não funcionam diante da evidência do traço. Crê-se, de resto, que terá pesado na decisão de voltar para Lisboa uma presumível ameaça de processo judicial: Muller deu à casca, reclama a pele de Stuart. Ou foi para fugir a um outro perigo, o da mobilização? Os estrangeiros residentes em França não estavam a salvo do Distrito de Recrutamento, e disso falou insistentemente o português para se limpar do regresso precipitado, em 1914.
Reinaldo Ferreira, o Repórter X das manchetes, ouvi-lo-á lamentar que foi «maluco em vir embora». Por cá a glória não excede as participações nos Salões dos Humoristas (1912, 1913) e a estima dos seus pares, a vida sem rede abre novo capítulo: aí está ele casado com D. Fausta Moreira, que lhe dará o filho único, Raul, prometido também a uma carreira de desenhador, mas não na faixa humorística. Lisboa. Uma paixão, uma cisma, um deambular entre a gente modesta que lhe vale meia dúzia de tipos (a varina, o guarda do chanfalho, a cocotte barata, a megera do carrapito, o ardina, o amigo, do briol) repetidos até à exaustão.

"O outro Stuart, artista «tout court», sem
necessidade de legenda, fez uma única
exposição (de pintura) nos anos 30"
Vinte e seis anos depois da morte, como o vê o cartoonista Vasco, também vila-realense, também com Paris às costas — mais longo, por motivo diferente?
«Era um galeriano como o Camilo. Nas condições concretas da Lisboa do seu tempo, deu-se à preguiça, mas de qualquer maneira comia do que trabalhava. E tem um prestígio ingrato: alcoólico, boémio, artista à portuguesa. Parece que era um tipo de uma grande bondade, coisa má nesta terra. Artisticamente facilitou, mas era um poderossímo talento
Vasco acha que não houve apenas um Stuart, sim vários. E desses vários preza muito especialmente «o anarquista», colaborador d'A Batalha.
«O Stuart de que falo aqui vem na tradição de Goya e Daumier: o desenho satírico de 'combate', o estilo forte e agressivo. Mais tarde, vítima das circunstâncias, vai cair no pitoresco e no picaresco, que é um equívoco nesta galáxia do desenho de humor
Dói-lhe «a vida frustrada» do conterrâneo, o adivinhar que ele talvez não tenha sido levado a sério no seu tempo. «Coitado do Stuart, a vender bonecos pelas redacções. Agora não pode ser, passe mais logo... Tudo isso não era nada nobilitante.» Para Vasco este «andar à trincha» foi a pior fase de Stuart.

Mas antes disse ele faz nome, cria imagem, poisa um decidido pé no cimento fresco do átrio da fama. É o desenhador da moda, o cartoonista requestado, e mais ainda pela facilidade do traço, a rapidez, a bonomia (não faz exigências, acomoda-se ao que há). Na falta de outro material usa um pau de fósforo aparado, ou o pincel careca, de dois pelos, que molha no seu frasquinho de nanquim. Se necessário usa também graxa. E papel qualquer serve. Não havendo branco, vá uma demão de guache. Colaborou n’A Batalha? Ora, e os desenhos para o Papagaio Real monárquico saudosista? Depois, é certo, chegou a chamuscar o coiro no 7 de Fevereiro (de 1927), conforme depoimento inquestionável de Aquilino, a quem teria pedido «uma espingardinha» para o que desse e viesse. Em 1934, porém, já está às sopas da Câmara Municipal de Lisboa (cartazes para as festas da cidade), em 1937 ilustra um escrito macaco editado pelo SNI, Le peuple portugais et ses caractéristiques sociales, de Francisco Casanova. «Não passo de um fabricante de desenhos...»
José-Augusto França, a propósito: «O seu lápis não tinha ideologias». (Mas quem o conheceu, mesmo nos piores anos, garante uma coisa: Stuart não era homem para andar com Salazar ao peito. Sabia-lhe a vinho martelado?)
Recapitulemos. Sobre desenhador de humor, o vila-realense pode ser considerado pioneiro da Banda Desenhada; mesmo a nível mundial não houve muita gente de qualidade antes dele, poderia fazer-se a prova traduzindo algumas tiras, aí estão as Aventuras de Quim e Manecas, em 1915, n'O Século, que igualmente passarão ao cinema em realização sua.
"Quim e Manecas, a banda desenhada de 1915, faz
de Stuart um pioneiro no género"
Ao mesmo tempo é o cartazista, o capista de partituras musicais duas vezes premiado no estrangeiro, o cenógrafo e figurinista de teatro, o decorador (d'A Brasileira, do Bristol Clube, do I Salão de Outono de Elegância Feminina, mas também da Feira Popular, a convite de Leitão de Barros), o desenhador de selos para os CTT, enfim o pintor — escasso, tímido, com uma exposição individual em 1932, na Casa da Imprensa. É amigo de Abel Manta, de Botelho e outros artistas sediados n'A Brasileira, mas a título individual, não do grupo em si, com o qual se sente pouco à vontade. O seu território: Bairro Alto, Camões, orografia do zinco.
António dá-o como sendo a ponte entre a geração de desenhadores de humor do fim da I República e os do pós-25 de Abril, José de Lemos atribui-lhe dimensão europeia, Baltazar diz que ele «marcou várias gerações como personagem e como cidadão» (inquérito de António Valdemar in Diário de Notícias, 2.3.1986).
Que intervenção foi a sua? Mais através da ironia do que da sátira, embora em cartoons da primeira fase atinja um alto grau de agressividade. Depois, implantada a censura estadonovista, volta e meia tenta o drible em habilidade, mas há notícias (do Sempre Fixe) de que o lápis azul o não deixa preopinar além do tacitamente estipulado. Nos dias de azebre Botelho vinga-o com o célebre mocho Piu, sinal de que um alferes lateiro de má morte cortou a eito nos bonecos. Com o andar dos anos perde gás e perde graça, tipifica, estiliza, cede à facilidade do improviso. A terra é madrasta, o génio pessoal displicente.

Quem o não ler com vagar — vagar e simpatia — arrisca-se a tropeçar apenas no boémio. Mas para tanto é necessário ir às bibliotecas e às hemerotecas, folhear A Sátira, O Século, O Século Cómico, o Papagaio Real, A Situação, o ABC, o ABC a Rir, o ABCzinho, o Sportsinho, Os Ridículos, A Ilustração, o Magazine Bertrand, o Diário Popular, o Fixe, o Diário de Notícias, Ó Picapau, o Cara Alegre, passos achados e perdidos da sua paixão.
« Stuart não era um alcoólico, mas era o mais simpático dos bêbados que conheci e o mais autêntico e abandonado dos artistas», defende Thomaz de Mello (Tom) no inquérito do Diário de Notícias.
Fará, não obstante, curas de desintoxicacão alcoólica, a primeira quando tem 39 de idade. E é um facto que grande parte dos testemunhos dos seus contemporâneos refere explícita ou implicitamente esse feitio laxista e dissipador.
As histórias de Stuart são como as cerejas. Encomendam-lhe um boneco urgente, fecham-lhe a porta da saleta à chave: na fase em que anda, costuma pirar-se e ir ao tinto. Inútil, quando o chefe de redacção volta: está a saleta vazia, e o papel em branco. Ou muda de casa, para um modesto piso . desguarnecido de móveis, e como não tem despensa trata de desenhar presuntos e salpicões numa parede. Ou quer fazer ,- diz — uma exposição, procura um amigo a quem pede trabalhos seus, depois vende-os, o amigo refila, «Bolas, mas eu tinha-te comprado os bonecos!», e ele escarninho, sonso, «Ah sim? E para que é que tu querias essa merda ?»
Lopo Lauer, empresário de teatro, justa com Stuart a confecção de um pano de fundo para um quadro musical no Eden. Dá-lhe o material preciso e diz-lhe que pode ir a um restaurante próximo - basta pôr na conta. O artista deixa sair Lauer, corre à sala de mesa, deita abaixo uma lautíssima ceia e entorna-se. Quando reentra no Éden, tem uma náusea e vomita sobre a tela que está a pintar. Lauer, que o espreitava do balcão, viu a cena, irrita-se, arrepela-se. «Tudo perdido!, i Não está: disfarçando as manchas de vinho num cenário roxo, Stuart salva a estreia do espectáculo. Bate as casas de penhores, as redacções, os amigos endinheirados. quando lhe surge á oportunidade de fazer qualquer coisa na Feira Popular, onde tem Leitão de Barros e José André dos Santos a abençoa-lo, inventa uma barraca para ler a sina: é a Bruxa, uma moscambilha do alto coturno. Muitas histórias suas abonam a falta de senso comum, mas perguntar se em mais de uma ocasião não terá sido desfrutado. É a vida sem rede, a dez metros de angústia sobre a pista.
João Abel Manta, que põe reservas a grande parte da obra gráfica de Stuart, filia o seu estilo em Gousbofa, admitindo que os vagabundos e os piteireiros do português descendam dos clochards do francês Estes vegetam sous les pouts, aqueles empinam copos de dois ou enxotam moscas na Feira das Mercês, excursão anual do' desenhador. Por outro lado, diz Manta, os Quins,'os Manecas e outros miúdos da galeria stuartiana evocariam Poulbot e o seu Poil de Garotte. «Era um intuitivo que nunca teve grande preparação técnica. A coisa mais gira dele e a sua forma de tratar o pretò e o branco, e o modo como faz os contornos. O seu preto e branco seria depois muito usado na Banda Desenhada: por exemplo Hugo Pratt


"Um miligrama de chouriço ou a arte
portuguesa de enganar a malvada"
Compará-lo aos Forain, aos Gousbofa, é trabalho vão. A melhor homenagem que lhe podemos mostrar seria uma exposição de bonecos muito escolhida, da ordem das duas, três centenas. Dar-lhe dignidade implica pôr de lado a produção menor.
Em Junho de 1926, dias depois do golpe, Stuart publica, no Fixe um rápido cartoon figurando a Republica de barrete frígio a tocar tambor. Legenda: «Mortos de pé!... Os vivos estão de cócoras».
Tem para viver ainda 35 anos e um lápis, ou um pau de fósforo. Bem pergunta o talhante ao homem do chapéu: «Então quanto quer de chouriço», E o outro, esquálido «Um miligrama...»



Artigo de Fernando Assis Pacheco em O Jornal 24-07-89
as fotos e as gravuras foram copiadas do próprio jornal.






Alguns exemplos de trabalhos
de Stuart Carvalhais

Outra Faceta do Fado, desenho de Stuart Carvalhais, anos 40




Contam-se por milhares os seus cartoons, sabe-se lá quantos perdidos para todo o sempre. Stuart de Carvalhais executava-os à medida das, encomendas e à cadência das necessidades próprias, mas um dia desabafou para Aquilino Ribeiro: «Há dezoito anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos...»
(Fernando Assis Pacheco em O Jornal, 24-07-87)





(Fotos e desenhos encontrados na net)