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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Chaplin e as mulheres

Coisas boas em jornais



Charlie Chaplin, Oona O'Neil e os filhos em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.


«CHAPLIN terá sido, como poucos, um dos raros artistas sobre quem, à altura da sua morte, tudo estava dito, e as notícias e comentários que no dia seguinte à noite de Natal invadiram os meios de comunicação, não puderam, por isso, evitar de repetir velhos lugares-comuns, citações de intelectuais e de homens de Estado, frases superlativas e encómios avulsos. Não podemos censurar-lhes, pois, a falta de originalidade acerca deste homem glorificado em vida, que atravessou um século, que influenciou multidões, que povoou a memória infantil de vários continentes, porque ele era um daqueles seres privilegiados que o destino quis que tivesse encontrado no caminho uma arte que havia nascido com ele. Encontro sem o qual ele não teria talvez passado de um modesto artista de variedades em "tournées" esgotantes entre a América e a Inglaterra ou mesmo - quem sabe? - teria acabado vítima sem celebridade de um processo de escândalo por violação de menores. A verdade é que se toda a gente conhece de cor os seus filmes e se as suas posições humanistas durante a guerra lhe valeram dissabores e aplausos públicos cujo eco se mantém, pouca gente se lembra já dalgumas peripécias que envolveram a vida amorosa e mesmo conjugal deste homem que foi íntimo de Churchill, de Einstein, de Nehru, recebido com honrarias em todas as cortes da Europa, depois de ter sido votado ao ostracismo por uma América puritana, onde Hayes e McCarthy ditavam a lei.»



Charlie Chaplin e sua família. Da esquerda para a direita: Victoria, Josephine e sua amiga Elyane, Chaplin e a esposa Oona e os actores Marlon Brando e Sophia Loren com Annette ao colo, durante as filmagens de "A Condessa de Hong Kong", nos Pinewood Studios em Londres. Reino Unido, 1966. Foto Alfred Eisenstaedt e LIFE Archive.

Um Casanova sentimental


O casamento com Oona O'Neill em Junho de 1943 — não sem algumas contrariedades, pois a filha de Eugene O'Neill, então com 18 anos, menos 38 do que Chaplin, teve que se opor à desaprovação paterna — e a imagem de felicidade conjugal do controvertido patriarca e milionário vivendo na Suíça rodeado de filhos e netos, iria fazer esquecer, nos últimos 30 anos da sua vida, a outra imagem do sátiro impenitente, cujos três casamentos precipitados, tão breves como turbulentos, e não menos processos e inconfidências de amantes despeitadas, fizeram durante anos o gáudio da Imprensa que alimentava a curiosidade malsã de um público volúvel que em pouco tempo passava da mais violenta invectiva à mais histérica das admirações. Era legendária a sua atracção por jovens menores - todos os seus casamentos, excepto o com Paulette Godard, se fizeram com meninas entre os 16 e os 18 anos - "virgens inocentes e indefesas" para a opinião puritana, perversas e fatais Lolitas diria Nabokov; que lhes gabou os encantos como nenhum outro. 


Charlie Chaplin e Paulette Goddard no filme Tempos Modernos (Modern Times, 1936). Li em algum lado que Chaplin sustentou Paulette Goddard até à sua morte. Foto encontrada em theroaring20s.deviantart.com


O casamento com Oona parece vir assim selar uma vida em que este Casanova sentimental foi vítima tanto dos seus imoderados ardores pelo belo sexo como dos rigores da justiça, tanto da sua imprudência como da hipocrisia de algumas falsas inocências que, à sua sombra, quiseram fazer fortuna e carreira. Mas se repararmos que o casamento com a filha de O'Neil é exactamente contemporâneo do seu projecto de "Mr. Verdoux", a verdadeira face de Charlot, como sempre, aparece indissociável da sua máscara e teremos que ver no filme que ele fez sobre Landru — talvez a sua obra mais genial.— a confissão da sua irremediável misoginia e, nesse casamento "feliz", uma prudente concessão aos seus instintos. Ou, pelo contrário, Verdoux seria o exorcismo definitivo com que ele entrava, magnífico, na maturidade de cineasta, levado a descobrir o que Renoir soube sempre melhor do que ninguém: que não há nada mais teatral do que a sinceridade. 


Verdoux casa com Oona O'Neil


Mildred Harris, 1ª mulher de Chaplin.
Foto encontrada em wikipedia.com
A história dos seus três casamentos antes de Oona O'Neil, é tão acidentada como os seus  divórcios, e não menos turbulenta que as suas aventuras extra-conjugais. Em 1918, então com 38 anos e já célebre e festejado em toda a América, Chaplin casa pela primeira vez: com Mildred Harris, cuja idade oscila, segundo os biógrafos, entre os 15 e os 16 anos. Um filho, que morreria três dias depois, um divórcio dois anos mais tarde, a primeira campanha pública contra Chaplin que é acusado pela esposa de "crueldade mental" e obrigado a uma indemnização de 100 000 dólares, depois de ter fugido com o negativo do seu último filme "O garoto de Charlot", que os advogados de Mildred Harris lhe ameaçavam confiscar. É a primeira vez, no entanto, que surge entre Chaplin e a mulher o conflito aberto — ciúme, inveja, sentido do negócio? — entre a carreira e a vida conjugal, historia que se irá repetir, vezes sem conta, sempre que as mulheres com quem viveu ou casou tentavam fazer (ou continuar) a sua carreira fora do seu controlo. No caso de Paulette Godard, por exemplo, quando decidiu intimamente que a iria utilizar em "Tempos Modernos", Chaplin começa por comprar a Hal Roach o contrato que o ligava à futura esposa. E na época em que Edna Purviance era a sua actriz preferida — mais  precisamente no princípio dos anos 20 – Chaplin resolveu encomendar a Sternberg um filme que, até hoje, salvo uns raros eleitos na época, nunca ninguém viu nem provavelmente verá. As razões obscuras e a história secreta deste filme que é dos mais misteriosos da história do cinema, dão-nos uma pequena ideia do personagem controverso que era Charlie Chaplin.



O romance com Pola Negri


Pola Negri e Charlie Chaplin. Foto 
de mothgirlwings.tumblr.com
O seu romance com Pola Negri entre 1922 — data da sua chegada á América – e 1923 – altura em que a actriz declara publicamente a sua ruptura com Chaplin – foi outro dos casos sentimentais que encheram as colunas da Imprensa americana durante mais de um ano e não deixa de ser curioso compararmos as: versões que ambos dão do seu romance: Chaplin, que lhe dedica duas páginas secas e altivas na sua autobiografia, e Pola Negri que com ele: ocupa um Capitulo nas suas "Memórias de uma estrela". Apesar de reconhecer aqui e ali, ao longo das 25 páginas em que esmiuça a sua vida com Chaplin, algumas qualidades, "gentileza", "graça", "simpatia", "generosidade" e de confessar que ele era um "delicioso companheiro de viagem", Pola Negri não esconde o seu despeito pela forma como Chaplin fugia como uma enguia do compromisso público do casamento que parece obcecá-la tanto e de que Chaplin parece fugir - e com boas razões - como o diabo da cruz; e reserva-se evidentemente a última palavra na sua ruptura com ele, fazendo questão de deixar claro que foi ela quem o pôs na rua depois de lhe ter aturado a vaidade mesquinha, a inveja e a presunção. 



O escândalo de Lita Grey


Charlie Chaplin e Lita Grey. Foto de www.listal.com
O divórcio de Lita Grey em 1927 seria, porém, o caso mais despudorado e revoltante e o que custou a Chaplin mais dissabores e mais dólares, o que mais prejudicou a sua carreira, o escândalo que mais desencontradas paixões levantou em toda a América. Lita Grey, com quem ele casara dois anos antes secretamente numa pequena cidade do México, e de quem viria a ter dois filhos, iria persegui-lo em tribunal, instada pela cupidez da mãe, depois de tornar públicas as mais sórdidas alegações de divórcio. Ávida de dinheiro e de celebridade, Lita Grey não hesitou em vender ao "New York Times" as suas confissões, que dias depois eram vendidas a público num folheto de 25 cêntimos o exemplar. Contra a clamorosa prova de puritanismo fascista, que foi o processo, se levantaram várias vozes de intelectuais e artistas de todo o mundo, mas o mais veemente protesto veio de Louis Aragon que num famoso Manifesto, intitula "Hand's off Love" ("Tirem as mãos do Amor") lamentavelmente pouco conhecido, defendia a figura de Charlot e o génio de Chaplin, fazendo daquele processo bandeira contra a hipocrisia sexual pequeno-burguesa, contra os juízes e o capitalismo americano. E o início desse extenso Manifesto, que teve logo a adesão de todos os grandes e pequenos nomes do surrealismo (Breton, Arp, Desnos, Éluard, Max Ernst, Lenis, Masson, Péret, Prévert, Queneau, Man Ray, Sadoul, Tangúy e muitos outros) e cuja violência verbal, no seu estilo de contra-ataque tão caro aos surrealistas, só tem igual na violência torpe das acusações de Lita Grey de que a opinião pública americana mais conservadora e puritana se fizera imediatamente eco e defensora.

António-Pedro Vasconcelos, texto e titulos, em Expresso 30-12-1977


Charlie Chaplin e sua filha Josephine em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.




«Tirem as mãos do amor»



Os surrealistas em defesa de Charlot


CHAMOU-SE "Hands off Love" ("Tirem as mãos do amor") o violento Manifesto com que Louis Aragon - logo apoiado pelas grandes e médias estrelas do Surrealismo - saltou em defesa de Charlie Chaplin, aquando do seu escandaloso divórcio com Lita Grey, em 1927, atacando ao mesmo tempo todo o reaccionarismo que se concentrou em defesa dos chamados "bons costumes". Devido à sua extensão, não podemos transcrever na íntegra (e valeria a pena, dado que o documento é hoje pouco conhecido), mas eis alguns fragmentos exemplificativos do estilo verrinoso desse autêntico panfleto.

(...) JÁ é monstruoso pensar-se que se existe um segredo profissional para os médicos, segredo que não é mais afinal que salvaguarda de um falso pudor e que, no entanto, expõe seus detentores a repressões implacáveis, em contrapartida não existe um segredo profissional para as mulheres casadas. E, no entanto, o estado de mulher casada é uma profissão como qualquer outra, a partir do dia em que ela reivindica como devida a sua ração alimentar e sexual. Um homem que a lei obriga a viver com uma só mulher não tem outra alternativa se não partilhar com ela os seus próprios hábitos e as suas próprias inclinações, colocar-se à sua mercê. Se ela depois o expõe à maldade pública, como é que a mesma lei que deu à esposa os mais arbitrários direitos não se vira contra ela com todo o rigor que merece um abuso de confiança de tal modo revoltante, uma difamação tão evidentemente ligada aos mais sórdidos interesses? E além do mais como se pode entender que os costuma sejam matéria de legislação? Que absurdo! Mas para circunscrever o discurso aos "escrúpulos" assaz episódicos da "virtuosa" e "inexperiente" senhora Chaplin, é necessário dizer que é cómico considerar "anormal, contra a natureza, perverso, degenerado e indecente" o hábito do "fellatio" ("todos os casais o praticam", diz muito bem Chaplin). Se se pudesse abrir, de um modo razoável, uma livre discussão sobre os costumes, seria normal, são, decente, virar contra ela, a denúncia que esta esposa faz, convencida de se ter "humanamente" recusado a práticas tão difundidas e perfeitamente puras e sustentáveis. Mas como é que uma tal estupidez não cessa de fazer apelo ao amor, como no caso desta rapariga que aos 16 anos e dois meses se casa "conscientemente" com um homem rico e vigiado pela opinião pública, e ousa fazê-lo hoje com os seus dois rebentos, nascidos da orelha evidentemente, uma vez que sustenta que "o acusado nunca teve com ela relações conjugais como é hábito entre os cônjuges", estas crianças que agita como actos de acusação; em apoio das suas próprias exigências íntimas? Os sublinhados são nossos, e a linguagem revoltante que sublinhamos, vamos buscá-la emprestada pela acusadora e seus advogados que procuram, antes de tudo o mais, contrapor a um homem vivo os mais repugnantes lugares-comuns dos sentimentos cretinos, a imagem da mãezinha que chama "papá'' ao seu amante legal".

Depois de desmontar uma a uma as cinco acusações dos advogados de Lita Grey, e de aproveitar para afirmar que "a conduta deste homem faz o processo do matrimónio, da codificação imbecil do amor", Aragon conclui no bom estilo surrealista da época:

"Pensamos naquele admirável momento de "Charlot e o Conde", quando durante uma festa Charlot vê passar uma bela mulher, fascinante quanto possível, e num abrir e fechar de olhos abandona a própria vivenda, para a seguir de casa em casa, depois pelo terraço, sem que ela se dê conta. Às ordens do amor, sempre esteve às ordens do amor, eis o que proclamam em uníssono a sua vida e todos os seus filmes. Do amor imprevisto, que é, antes de tudo o mais, um grande, um irresistível apelo. Então é preciso abandonar tudo, e por exemplo, no mínimo, um lar. O mundo com os seus bens legais, a dona de casa e os fedelhos, protegidos pela policia, a caixa de depósitos: é de tudo isto que se evade sem hesitar, seja o homem rico de Los Angeles;. seja o pobre dos subúrbios, desde "Charlot empregado de banco" até à "Corrida do Ouro". Tudo o que tem na mesa, moralmente, é apenas aquele dólar de sedução que qualquer um lhe faz perder, e que no café do "Emigrante" cai continuamente ao chão das calças rotas, aquele dólar que se calhar não passa de uma aparência, fácil de se torcer com uma dentada, simples moeda falsa; que será recusado mas que permite que por um instante se convide para a mesa a mulher semelhante a uma vampe de fogo, a mulher "maravilhosa", e cujas linhas serão para sempre céu. (...)"

Expresso 
30-12-1977



Charlie Chaplin descansando durante as filmagens de Limeligh em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Luzes da Ribalta


Limelight (1952) de Charles Chaplin

Texto de
João Bénard da Costa

Fotos de 
W. Eugene Smith

Chaplin rodeado da equipa técnica, dirigindo uma criança em Limelight. 1952. W. Eugene Smith. Foto de www.magnumphotos.com.



O grande tema musical de Limelight (1952), de autoria de Charles Chaplin. 
Sugiro que ouça enquanto vai lendo o texto.



"Só há duas maneiras de ter razão" escreveu algures Fernando Pessoa. "Uma é caIarmo-nos, a outra, contradizermo-nos". Para Chaplin, cujo problema maior, nos anos dificilíssimos que foram da estreia de Verdoux (1947) à de Limelight (1952) era ter razão, ou que a sua razão lhe fosse reconhecida, calar-se não era solução, antes era dar razão aos adversários. Só lhe restava contradizer-se. Ou seja, abandonar o anarquismo e o pessimismo que o seu último personagem arvorara e regressar a outra vertente do seu génio: o melodramatismo. Um grande melodrama com todos os ingredientes do mito chaplinesco e que voltasse a dar a ver o Vagabundo (e a dá-lo a ver sob luz total) deve ter-lhe parecido o melhor meio de reconciliar tudo e todos com ele próprio, de se fazer "perdoar" e de se voltar a fazer aceitar.


Chaplin rodeado da equipa técnica, ensaia com os bailarinos e com os músicos. Por trás de Chaplin está o assistente de realização Robert Aldrich, ao lado de camisa branca Buster Keaton e ao lado deste o director de fotografia Karl Stuss. 1952. W. Eugene Smith. Foto da LIFE Archive. 

Nunca o vi escrito em parte alguma, nem nenhuma declaração (de Chaplin, ou alheia) me autoriza à convicção. Mas só consigo interpretar a escolha de Limelight, depois de filmes sucessivamente mais imbricados com a realidade global que o rodeava (Modern Times, The Great Dictator, Monsieur Verdoux) pela vontade, consciente ou inconsciente, de Chaplin em pôr fim às tempestades que ele próprio (com esses filmes) desencadeara. A cabeça branca de Chaplin, a cabeça branca de Calvero, sempre me pareceram a "bandeira branca" levantada para restabelecer a paz e a harmonia. Aos seus detractores, oferecia-se de corpo inteiro, pela primeira vez sem disfarces nem máscaras, e oferecia uma história que não podia deixar de ser vista como a história da sua vida. Mais ainda: como a história de quarenta anos de espectáculo (circo, vaudeville, teatro e cinema) de que Limelight seria simultaneamente o requiem e o testamento.


Chaplin mostra partes do filme em pelicula à bailarina Melissa Hayden. 1952. W. Eugene Smith. Chaplin mostrando aos figurantes, como se devem comportar ao assistir a um espectáculo popular de Music Hall. 1952. W. Eugene Smith. Foto da LIFE Archive e de www.magnumphotos.com.


Os comentadores têm destacado o contraste ("contraste dramático") que caracteriza a obra e a vida de Chaplin nos anos 40, Como escreveu o seu principal biógrafo (David Robinson) "a década que se seguiu à estreia de O Ditador foi, ao mesmo tempo, o período mais amargo da sua carreira pública e profissional e o período em que conseguiu, finalmente, a felicidade pessoal que até aí sempre havia tentado e sempre lhe havia fugido".
Robinson referia-se, como se saberá, às múltiplas campanhas que se desencadearam contra ele (acusando-o de comunista, de libertino, de devasso, de corrupto) e ao "casamento feliz" com Oona O'Neill, 35 anos mais nova do que ele. O quarto casamento de Chaplin foi o único que durou, desde 1943 até à morte dele, em 1977.


Chaplin e sua mulher Oona O'Neill, tomando chá nos camarins durante a rodagem de Limelight. 1952. W. Eugene Smith. Foto copiada da revista LIFE Magazine.

Como se sabe, o auge dessa campanha seguiu-se, em 1947, à estreia de Verdoux. O filme foi banido ou proibido em muitos estados americanos e, na imprensa e na rua, gritaram-se slogans como: "Chaplin é comunista"; "Rua com o estrangeiro" (Chaplin havia mantido sempre a nacionalidade inglesa e nunca se naturalizou) "Chaplin vive à nossa custa há tempo demais"; "Chaplin para a Rússia". Pior do que tudo isso: o filme fracassou comercialmente e a United Artists (a orgulhosa casa que os "grandes artistas" de Hollywood haviam fundado em 1919) estava em muito maus lençóis, com dívidas que ascendiam ao milhão de dólares. Sobre uma eventual venda e a distribuição de percentagens, Chaplin zangou-se com toda a gente, incluindo a sua velha amiga e admiradora Mary Pickford.


Chaplin com Harry Crocker e Tim Durante, dois velhos amigos, durante a rodagem de Limelight. 1952. W. Eugene Smith.  Foto copiada da revista LIFE Magazine.

Na Primavera de 1947 (quase coincidindo com a estreia de Verdoux) J. Parnell Thomas, um senador de New Jersey, foi nomeado para presidir à Comissão de Actividades Anti-Americanas. No ano da chamada "doutrina Truman" (convidando todos os americanos a lutar contra a expansão comunista) ia começar a famosa "caça às bruxas" que atingiu o auge no início dos anos 50.
Ao princípio, Chaplin parece não ter tomado muito a sério campanhas e Comissão. Chegou mesmo a dizer que se a Comissão o convocasse compareceria vestido à Charlot e meteria os interrogadores a ridículo. E provocou a Comissão, em finais de 47, quando telegrafou a Picasso a pedir-lhe que encabeçasse um comité de artistas franceses que protestasse, junto da embaixada americana em Paris, contra a perseguição de que estava a ser vítima, na América, o conhecido músico e poeta alemão Hanns Eisler (Eisler foi deportado em 1948, acusado de ser comunista).


Chaplin iniciando a caracterização de Calvero durante a rodagem de Limelight. 1952. W. Eugene Smith. Foto copiada da revista LIFE Magazine.


Pedir a um "conhecido comunista" (Picasso) que intercedesse por um homem acusado de comunismo (Eisler) num pais em histeria anticomunista foi algo que imediatamente alguns senadores consideraram "perilously close to treason". Simultaneamente, Chaplin fez campanha com o partido progressista do antigo vice-presidente Wallace, convencido que este ganharia as eleições de 1948. Não ganhou e só nessa altura Chaplin pareceu ter­-se dado conta das ameaças que o rodeavam. Tinha planeado ir mostrar Londres e os bairros em que tinha nascido a Oona. Percebeu que, se fosse, não o deixariam voltar e que todos os seus bens e toda a sua imensa fortuna estavam em causa. Da desenvoltura, Chaplin passou a uma paranóia persecutória, bem reflectida nas suas memórias. Como Verdoux, tremia de cada vez que lhe batiam à porta. Entretanto, a família crescia: aos dois filhos que tinha tido de Lita Grey (nos anos 20), Charles Jr. e Sydney, juntaram-se, vinte anos mais novos, Geraldine (n. 1946), Michael (n. 1947), Josephine Hannah (n. 1949) e Victoria (n. 1951). Eram os quatro primeiros dos oito filhos de Chaplin com Oona, nascidos entre os 56 e os 73 anos do pai (Christopher James, o mais novo, nasceu em 1962).


Chaplin trabalhando em sua casa com o arranjador musical Ray Rash, as músicas para Limelight. 1952. W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive.


Por coincidência ou não, é na altura em que declara a Thomas "Não sou um comunista. Sou o que vocês chamam "um apóstolo da paz", que Chaplin anunciou um novo filme, ao princípio chamado Footlights, depois, LIMELIGHT. Não será astuto vê-lo como a "representação" que Chaplin quis dar perante a Comissão de Thomas. Só que não voltava vestido de Charlot (sabia bem que qualquer ressurreição de Charlot era impossível) nem vinha meter a ridículo ninguém. Ao mundo e aos homens, oferecia em espectáculo a sua própria vida, na obra mais autobiográfica da sua carreira.
Evidentemente, Calvero não é Charlot ou não é só Charlot (Chaplin disse depois de ter retido muitos elementos da vida de Frank Tinney, um celebérrimo palhaço americano, que ainda tinha visto nos palcos, quando chegou à América). Evidentemente, e por maiores que fossem os problemas por que Chaplin passava nesses finais dos "forties", estava longe de ser um "has-been" como Calvero, ou de viver num quarto a contar tostões e a beber copos. Mas também, evidentemente, Chaplin sentiu nessa altura, mais do que nunca, o drama enunciado na frase com que abre LIMELIGHT: "The glamour of Iimelight from wich age must pass as youth enters". E terá sentido, igualmente, que um mundo acabava, precisamente esse mundo de que Calvero (como ele) tinham sido figuras maiores: uma tradição, com quase 200 anos, que viera da "commedia dell'arte" para o circo e para o music-hall e destes para o cinema mudo. Se quisermos, podemos ir ainda mais longe: era o mundo do bobo — o mundo em que o bobo era o único a quem tudo era permitido — que estava a acabar. Quem, melhor, o podia homenagear e reafirmar do que o último e o mais célebre filho dessa plêiade?


Chaplin preparando-se para filmar, com o director de fotografia Karl Stuss verificando a cena com o fotómetro. 1952. W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive. 


Pode ver-se no que acaba de dizer muita especulação. Mas sabe-se que Chaplin abordou esta obra de modo muito diferente a todas as outras. Em vez de um "script" escreveu uma novela (onde são explícitos os traços autobiográficos de quase todos os personagens); documentou-se, exaustivamente, sobre as histórias de music-hall no ano em que começa o filme (1914, precisamente o ano em que ele iniciara a carreira cinematográfica) e nunca ocultou que Calvero era, também, uma homenagem ao seu pai, que nascera e decaíra como ele e que, como ele, passara da efémera glória à bebida e completo esquecimento.
E será casual o facto de ter confiado o papel de Neville — o seu rival, aquele que lhe vai "roubar" Claire Bloom — ao próprio filho, Sydney? No filme, ao contrário da vida, Calvero não acredita que Terry (aproximadamente da idade de Oona, quando ele conheceu Oona) esteja sinceramente apaixonada por ele ou possa ser feliz com ele. Sempre prevê que um dia um jovem vai chegar... Que esse jovem seja o seu próprio filho (que, aliás, teve um "affair" com Claire Bloom durante as filmagens) dá que pensar.


Chaplin verificando um plano através da câmara, durante a rodagem de Limelight. 1952. W. Eugene Smith. Foto de www.magnumphotos.com.

Aliás, Chaplin convocou para esta obra não só inúmeros fantasmas do passado (o número das pulgas era um dos seus números favoritos, que, ao menos desde The Circus, sempre tinha querido meter num filme) como os fantasmas do presente. E lá estão, na primeira sequência (miúdos da rua) Geraldine, Michael e Josephine Chaplin, os três filhos mais velhos do seu casamento com Oona. A própria Oona dobrou, em duas sequências, Claire Bloom.
Mas o maior dos espectros deste filme é, sem dúvida, Buster Keaton. À época quase esquecido, aquele que, hoje, muitos consideram ter sido autor e actor de génio superior ao de Chaplin, foi convocado para esse genial número musical que é, simultaneamente, apogeu do "slapstick" e máxima homenagem a ele. E é difícil não reconhecer que, na sua famosa cena com as pautas, quase rouba o número a Chaplin, da primeira e única vez em que este aceitou contracenar com um grande cómico (Jack Oakie e Martha Raye, respectivamente em O Ditador e Verdoux, também o foram, mas pertenciam a outra família e outras tradições).


Chaplin ensaiando frente ao espelho. 1952.  W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive.  


LIMELlGHT é um filme concebido em função desse "clou": a glória do "slapstick" (o número das pulgas, o violinista embruxado, a queda no tambor) e o triunfo do grande cómico coincidindo com a sua morte. Calvero morre no palco, olhando a sua última criação (Claire Bloom) que dança circularmente, refazendo o eterno retomo. Com ele, e nessa figura circular tão cara a Chaplin, "the show goes on", na melhor tradição do " Limelight ".
É o fim perfeito, para o perfeito melodrama e Chaplin não descurou um elemento para essa apoteose: o seu hino à vida, junto a Claire Bloom; a cena em que esta volta a andar; o tema da Colombina e de Arlequim; a reflexão sobre a arte como vaidade do mundo e glória do mundo. Tudo, neste filme, aponta para o perfeito testamento e sabe-se que Chaplin o concebeu como tal, sempre julgando — e dizendo — que se tratava do seu último filme.


Chaplin ensaiando frente ao espelho. 1952.  W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive.  


Se o não foi, continua a ser o filme mais recapituIatório de toda a sua carreira, aquele que mais exemplarmente reflecte o seu credo artístico e o seu credo humano. De todas as suas máscaras, mais ainda do que Charlot, Calvero é a suma representação de Chaplin, na sua grandeza e no seu lado "humano, demasiado humano".
Aos 63 anos, acusado por todos os lados, mais controverso do que nunca, Chaplin legou ao mundo, através do mais exacerbado melodramatismo (sustentado pela celebérrima música deste filme e pelo seu celebérrimo tema) a coreografia exacta das suas crenças e dúvidas, da sua arte e do lugar que nela assumiu.


Chaplin ensaiando frente ao espelho. 1952.  W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive.  

Mas se com Limelight voltaram todas as apoteoses (as estreias célebres de Londres, Paris ou Roma com "toda a Europa" aos pés dele) só não voltou o que ele mais teria tentado: a reconciliação com o público americano. Já a bordo do Queen Elisabeth para uma estreia que sempre quis londrina (em homenagem à sua cidade natal) Chaplin foi secamente informado que se cumprira a ameaça que desde 1948 temia: o governo americano não o deixava voltar e Limelight só vinte anos depois (em 1972) pôde ser visto na América. Em 1952, iniciava-se o "exílio europeu" de Chaplin, que ia viver na Suíça, em Vevey, os últimos 25 anos da sua vida. Se, com Limelight, não terminou a sua obra, com Limelight terminara os 40 anos da sua vida na América. Em 1912, nasceu Charlot. Em 1952, morreu Calvero. Nesses 40 anos cabe um mundo. E é desse modo — e sobre esse mundo — que Limelight é feito. Quando Charlot começou, a publicidade falava de "riso e talvez uma lágrima" (como se diz na epigrafe de The Kid). Limelight inverte a regra. Se nos convida ao riso — em tantos e tão geniais momentos — convida-nos sobretudo às lágrimas. E mesmo quem se recusar à lógica do melodrama, dificilmente verá Limelight de olhar enxuto. Porque em Limelight se exprime (parafraseando Calvero) não sentido da vida, mas desejo da vida. Só quem pôs esse desejo acima de qualquer sentido se pode perfazer na morte no palco, olhando o movimento que o perpetua, e tendo ao seu lado, na profundidade de campo — último velador — o único homem (Buster Keaton) que tanto como ele acreditou na força desse desejo e na capacidade transfiguradora do cinema para o exprimir.

JOÃO BÉNARD DA COSTA

Texto encontrado em www.prof2000.pt


Esta é terceira vez que coloco esta foto, sempre julgando que se tratava de um ataque de riso de Chaplin nas filmagens de Limelight. Chaplin na foto, estava sim, a mostrar aos figurantes, como se deviam comportar ao assistir a um espectáculo popular de Music Hall. 1952. W. Eugene Smith. Foto da LIFE Archive

Chaplin em uma cena de Limelight. 1952.  W. Eugene Smith.  Foto da LIFE Archive. 





quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O fantasma do vagabundo


Testemunhos sobre Charlie Chaplin
por
José Mendes

Publicado no Expresso de 15 Abril 1989


Coisa boas em jornais

O que se aprendeu com Chaplin? Artur Semedo, Raul Solnado, Luis Miguel Cintra, Herman José e Mário Viegas recordam os tempos de criança onde imperava a figura de Charlot e tentam desvendar o mistério do seu legado.


Charlie Chaplin, erguido por Douglas Fairbanks e fazendo o truque do chapéu de Charlot, na frente da multidão na baixa de Manhattan, para promover as Liberty Bond (titulos de apoio à causa dos aliados durante a 1ª Guerra Mundial). 1918, Nova York, EUA. Foto LIFE Archive.

Para o realizador de O Barão de Altamira e O Querido Lilás, Artur Semedo, Charles Chaplin foi um extra-terrestre e uma figura predominante na sua carreira: «ele esteve sempre ligado a toda a minha vida de cinema, teatro e televisão. Foi, é e será sempre a contribuição mais decisiva para esta espécie de cinema de feira que penso, logo faço». Reconhecendo em Chaplin uma genialidade paradoxal, espartilhada entre a realidade e a ilusão e continuamente assente em lutas desequilibradas, o criador de Charlot marcou profundamente a sua vida artística. «Chaplin evangelizou-me com as suas inquietações perante o mundo, moldou-me desde menino, nesses tempos áureos e fúnebres em que a tosse convulsa nos levava desta para pior. Não tossi, cresci, passei a barreira do serviço militar e Chaplin continuou a ser o prolongamento do meu desajustado cérebro de artista - bom ou mau, não interessa, não sou eu que estou em causa, é a dívida que tenho para com ele».
Semedo confessa ser herdeiro de muito poucas coisas e, se não confirma se gosta de profetizar, não parece ter dúvidas em relação a Chaplin: «ele é imortal, vive em todos nós. A herança-Chaplin, posso dizê-lo, foi das poucas que tive. Ele é uma componente decisiva de toda a minha existência de solavancos tragicómicos. Só a ele peço perdão pela insuficiência do que por cá vou fazendo».


Charlie Chaplin com a roupa e a caracterização da sua personagem Calvero, no filme Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), dirige os músicos e os bailarinos, rodeado da equipa técnica. Por trás de Chaplin está o assistente de realização Robert Aldrich, ao lado de camisa branca Buster Keaton e ao lado deste o director de fotografia Karl Stuss.  Foto W. Eugene Smith e  LIFE Archive.


Um legado universal

Raul Solnado pode ser considerado outro dos seus herdeiros. Basta para isso voltar a ver Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa, onde o cómico português vive na pele de João Barbelas, um vagabundo sonhador que se apaixona por Maria (Glicínia Quartin), uma rapariga com um passado infeliz. No final tudo acaba o melhor possível e vão estrada fora cheios de ternura, esperança... e muita fome. Diz Solnado: «No dia em que Chaplin inventou Charlot, o vagabundo sonhador, romântico, carregado de generosidade, humanismo, nessa data, Chaplin não só ganhou o dia como ganhou a eternidade. Vagabundos existem muitos, Charlot só existe aquele. Ele provocava o riso por vários ângulos; porque é desajeitado, porque é megalómano, e porque quando parte para uma conquista já vai totalmente apaixonado».
Incluindo-se no número de actores cómicos que devem muito a Chaplin, Solnado não deixa de se surpreender por uma característica que, do seu ponto de vista, é admirável no realizador de Luzes da Ribalta: a capacidade de provocar o riso através da comoção e da revolta «que é, quanto a mim, a mais bela forma do riso. Charlie Chaplin é o génio que nos legou este património universal e hoje todos os cómicos do mundo são melhores por tudo o que quiseram aprender com ele».


Raul Solnado falando de Chaplin 27 anos depois: «Sou melhor actor por causa dele» e Raul Solnado e Glicínia Quartin em Dom Roberto (1962) de Ernesto de Sousa. Fotos copiadas do jornal Expresso.

Quanto a Luis Miguel Cintra, a figura de Charlot e a própria personalidade de Charles Chaplin estiveram longe de o influenciar. Mesmo assim, não deixa de constituir uma grata recordação de infância que o leva hoje a dizer que, por um princípio rígido de não seguir os gostos das maiorias, talvez tenha injustiçado o génio do actor britânico: «Eu vi muito mal os filmes do Chaplin. Quando os vi era muito novo e não os voltei a ver. Ao contrário do que seria de esperar e é espantoso, mesmo para mim, não se tratou de uma personalidade artística que me tivesse marcado. De maneira nenhuma! Lembro-me, em miúdo, em casa da minha bisavó, de nos fecharem a todos numa sala, a mim e aos meus primos, para ver, através de um projector que havia em casa dela, os filmes curtos do Charlot, como o Charlot na Patinagem e coisas assim».
A memória do fim da adolescência, apesar de marcada pelos filmes de Chaplin, fazem aparecer na sua vida outro actor a quem acabará por dar a preferência: Buster Keaton. «Era um tempo em que eu achava que gostava mais do Keaton do que do Chaplin e havia uma espécie de concurso entre os meus colegas para saber quem gostava mais de quem. Eu gostava do Keaton mas levei algum tempo a perceber porquê. Suponho que tem a ver com o facto de eu não gostar daquilo que a maior parte das pessoas gostam. Apercebi-me disso muito tarde e enervava-me toda a gente poder gostar do Chaplin».


Charlie Chaplin dirigindo Sophia Loren em uma cena do seu último filme A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967). Londres, Reino Unido, 1966. Foto de Alfred Eisenstaedt e  LIFE Archive.

«Buster Keaton era o tal»

A relação com os filmes sonoros de Chaplin, particularmente em títulos como A Condessa de Hong Kong ou Um Rei em Nova Iorque, causaram-lhe impressão diferente. Adorou-os, evidentemente, «mas sempre com essa ideia já feita de que o Buster Keaton é que era o tal. Quando vi A Condessa já era mais velho e o que acabou por ser aborrecido foi que filmes como esse não os voltei a ver. Lembro-me de ter visto A Condessa de Hong Kong e de o ter achado deslumbrante, fabuloso e com uma espécie de sabedoria da vida que faz com que se possa tratar e falar das coisas mais simples e aparentemente mais banais e também isso só muito mais tarde vim a perceber o que significava.»
Para quem tem acompanhado, mesmo que de uma forma fugaz, a carreira de Luis Miguel Cintra, quer no teatro quer no cinema, seria surpreendente chegar à conclusão que também nele a herança de Chaplin passava por referente obrigatório. O actor é o primeiro a admiti-lo: «para a minha carreira Chaplin não foi um referente. De facto, não o foi, mas acho que tem muito a ver com a idade com que vi os filmes. Lembro-me de ter ido ver Um Rei em Nova Iorque muito miúdo - nem sei se aquilo era para maiores de 18 anos - mas sei que fui ver noite e lembro-me que isso à era uma coisa muito extraordinária. Com As Luzes da Ribalta já foi diferente. Vi-o outras vezes e chorava do princípio até ao fim.»
Uma das razões que terão levado Luis Miguel Cintra a não incluir o nome de Charles Chaplin entre as suas referências obrigatórias deveu-se igualmente ao tipo de mensagem veiculada pelas películas do criador de Charlot. Enquanto pensava seriamente sobre que carreira deveria abraçar, o encenador do Teatro da Cornucópia estava decidido, em qualquer dos casos, a não suportar melodramas piegas: «ninguém me pode obrigar a dizer que o Chaplin foi muito importante para a minha formação artística. Isso, de facto, não sou capaz de dizer. Havia essa questão de se tratar de filmes muito comoventes e muito sentimentais e eu vi-os naquela fase em que todos os adolescentes combatem isso. Quer dizer, não podem ser sentimentais, têm de ser racionais, precisam de saber porque razão um personagem pensa isto ou aquilo e não se deixar embalar pela comoção. Foi o que me aconteceu em relação ao Chaplin, como se dissesse ‘não pode ser, isto é muito piegas!’»



Charlie Chaplin como soldado em Charlot nas Trincheiras (Shoulder Arms, 1918), foto LIFE Archive e como mordomo em A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967). Londres, Reino Unido, 1966. Foto de Alfred Eisenstaedt e  LIFE Archive.


Humores de palhaço

Precisamente para contrapor o que lhe parecia a pieguice «insustentável» dos filmes de Chaplin, Luis Miguel Cintra encontrou em Buster Keaton a alternativa ideal já que o actor americano cultivava um «lado extremamente austero e misterioso» que lhe era muito mais agradável e que, ao mesmo tempo, fazia todo o sentido: «falar dos dois era quase como pensar na diferença entre o palhaço rico e o palhaço pobre. Para mim, o tipo de humor do Chaplin estava mais próximo do palhaço pobre e o de Keaton do palhaço rico, apesar da figura do Pamplinas não ter nada a ver com o palhaço rico. Naquele tempo, o lado melodramático do Chaplin era-me quase insustentável mas hoje acho isso uma estupidez total, adoro os melodramas, quanto mais piegas melhor!»
Chaplin, no entanto, possuía uma característica que, à partida, poderia encontrar em Luis Miguel Cintra uma resposta favorável a polivalência de actividades, a noção de espectáculo global e a forma corno, tomando um assunto específico, ele parecia estar sempre a falar da vida inteira ao mesmo tempo: «Acho que as grandes pessoas do espectáculo têm de ser assim, pessoas que não são capazes de distinguir o que é representar, o que é dirigir ou o que é iluminar. Para mim ele tinha a sabedoria típica das pessoas que, ao abordar um único assunto é como se falassem da vida inteira ao mesmo tempo. Isso é muito bonito e sente-se que quando está a fazer arte está a viver, quando está a fazer cinema está a falar da vida que é aquilo que toda a gente com certeza gostaria de ser capaz de fazer. Eu também gostava».


Charlie Chaplin vestido de Calvero descansando durante as filmagens de Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.

«Eu nunca morri de amores pelo Chaplin». Herman José abre assim o jogo que, não sendo desencantado, também não se compadece com o mito: «a única qualidade que a morte possui na classe artística é a de envolver de repente as pessoas numa bruma de misticismo onde tudo é desculpado e onde tudo é genial. As imagens do Chaplin têm, para mim, a mesma importância das do Bugs Bunny».
Acreditando piamente que o humor e a tendência para o disparate são coisas genéticas e que não se aprendem, Herman José viu os seus primeiros «chaplins» em casa dos pais, nos tempos de criança, e só quando fazia anos: «na altura havia os filmes de Super 8, os meus pais tinham um projector e traziam para casa, de vez em quando, uns Bugs Bunnies e se calhar uns Mickeys e uns Chaplins lá pelo meio porque encantavam as crianças. Quanto ao Chaplin, parece-me que ele soube pegar numa qualidade genética, aquela tendência para o disparate que é genética e não se aprende. Se me é permitido falar em nome de todos os humoristas de algum êxito, no fundo o que fazemos não é mais do que profissionalizarmos características que já tínhamos na primeira e na segunda infância e depois, segundo a nossa esperteza, podemos comercializá-las bem ou mal».
Sobre a personalidade de Charles Chaplin, da sua forma de trabalhar e das suas relações com as pessoas, Herman não tem dúvidas: ele estava longe de ser um anjo. «Chaplin era esperto. Era um comerciante, uma pessoa muito dura a dirigir, era violento nas suas relações e nas suas decisões e soube administrar maravilhosamente aquela qualidade de satisfazer a necessidade que o povo americano tem de ver pieguice (que o americano é muito criança enquanto público, precisa da lágrima ao canto do olho)».


«O meu Chaplin é o Benny Hill»

Para Herman José, a fase sonora da obra cinematográfica de Charles Chaplin é a mais deficiente porque já não consegue suster a importância que o realizador tinha alcançado no tempo do mudo: «quando eu comecei a amadurecer, olhava para o Chaplin sem uma grande paixão e essa paixão diminuiu quando comecei a ver os seus filmes sonoros onde já não consegue estar à altura da importância que tinha no mudo. Ele consegue disfarçar essa incapacidade porque era um homem cultíssimo, inteligente e que se sabia rodear muito bem mas, salvo raríssimas excepções, eu não considero os seus últimos filmes obras-primas».
Entre os personagens criados por Herman José, uma galeria notável e cada vez mais vasta, a figura do Sr. Feliz (na dupla «Feliz e Contente», ao lado de Nicolau Breyner) foi, por diversas vezes, ligada a Charlot. O fato negro, o chapéu de coco e a bengala indiciavam-no quase sem equívocos. Mas, segundo o autor de Hermanias, não era no «boneco» que a relação resultava: «o 'Feliz e Contente' foi inspirado no Dupont e Dupond, do Hergé mas, como aconteceu com o Chaplin, o que eu fazia era disfarçar a minha incapacidade para fazer outras coisas que não sabia fazer (estava no teatro há um ano) e os meus tiques pessoais, em certas coisas, poderiam ter alguma coisa a ver com o Chaplin mas só por coincidência e não por influência».
Um herói, para ele, se o tem de haver, é Benny Hill: «ele é muito discutido e contestado em certos círculos mas, quanto a mim, é genial. O Benny Hill é o meu Chaplin ». Assim, a grande lição do autor de Tempos Modernos, o seu maior ensinamento para aquilo em que Herman se veio a tornar resume-se à questão do trabalho. Também para Herman José tudo tem de ser feito com extremo rigor: «é certo que ele me deixou isso, mas o rigor é o que nós temos de aprender à nossa custa. Não há génios espontâneos em nenhuma profissão»

Quanto à personalidade de Charles Chaplin, Herman não partilha a opinião de Artur Semedo. O criador de Serafim Saudade tem de Chaplin a ideia de um homem sorumbático, mas reconhece que a partir dos quarenta anos todos os comediantes têm a tendência para compensar na vida privada a alucinação da vida profissional, «e olhe que eu conseguia suportar a pieguice dos filmes dele, talvez porque ela era tão bem produzida e em doses tão certas que não chegava nunca para chatear. Fazer melodrama sem ficar ridículo é uma arte dificílima que ele dominou, admiravelmente desde o princípio. Mas para mim não era um extra-terrestre, antes pelo contrário, ele não podia ter sido mais gestor, mais 'yuppie' e mais terrestre do que foi. Isso é que lhe deu o êxito»


Artur Semedo, com Zita Duarte, em «O Barão de Altamira»; Luis Miguel Cintra em «Os Canibais»; Mário Viegas em «A Mulher do Próximo»; e Herman José em «O Querido Lilás»: Influências e indiferenças face a Charlot. Copiado do Expresso.

O enorme peso do fantasma

«Ele é o maior actor do século XX». Quem o afirma, sem o mínimo sinal de relutância, é Mário Viegas que, apesar de não se lembrar de quando começou a ver os filmes de Charlot, recorda - também ele - as sessões em casa dos pais «com aqueles filmes todos cortados, que havia por aí, do Chaplin e do Bucha e do Estica» e do tempo em que assistia a catorze sessões seguidas de Os Tempos Modernos na sala do malogrado Teatro Monumental. «Foi sempre a pessoa que mais me comoveu ver a representar. Era uma máquina de fazer rir e de comover as pessoas, porque fazer rir é comover, as pessoas riem por emoção».
Mário Viegas sempre se perguntou se Charlot era um burguês decadente ou um proletário em ascensão. Muito poucos o terão provavelmente visto assim, mas para o actor e recitador, sempre concentrado no personagem Charlot, o «fantasma» de Chaplin pesa, enorme, sobre qualquer actor: «ele quebrou, através da figura do Charlot, a fronteira entre o riso e o choro e não há nada mais dramático, às vezes, do que fazer rir. Depois dele pouco mais apareceu. O Charlot não envelheceu com o actor Charlie Chaplin ao contrário de Buster Keaton, que era autodestrutivo e autêntico como no filme Film em que ele tem a coragem de nos dar a figura de um Pamplinas velho. Ele é o grande actor cómico dos pobres e é um grande bloqueio - senti muito isso quando estava a fazer o filmezinho com o Sam - compreender que o Chaplin esgotou quase todas as formas. Ele é o complexo de inferioridade de qualquer actor».

Texto, titulo e legendas das fotos copiadas: José Mendes
Publicado no Expresso de 15 Abril 1989


Charles Chaplin rindo perdidamente durante as filmagens de Luzes da Ribalta. Chaplin estava a mostrar aos figurantes, como se devem comportar ao assistir a um espectáculo popular de Music Hall. 1952. Foto W. Eugene Smith e  LIFE Archive.




(Fotos LIFE Archive)