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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Esplendor na Relva, Elia Kazan, 1961


por 
João Bénard da Costa


Deannie Loomis na aula, lendo o poema que dá o titulo ao filme.
Foto encontrada em www.dvdbeaver.com

“Eu sei que Deannie Loomis não existe / mas entre as mais essa mulher caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste.”
Começa assim o soneto intitulado “Esplendor na Relva”, que Ruy Belo inseriu em Homem de Palavra[s]. Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da protagonista interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido literal) é o filme de Elia Kazan Splendor in the Grass (1961), com argumento de William Inge.
Hoje, o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns - poucos, e certamente não felizes - foi paixão tão devastadora como a que, no filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty) tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais intensas dos late fifties e dos early sixties: Marilyn Monroe (esse assombroso poema chamado “Na Morte de Marilyn”, que vem no Transporte no Tempo e em que nos pede para “em vez de Marilyn dizer mulher”) - e Natalie Wood.

 Warren Beatty & Natalie Wood by Eliot Elisofon. 1961.

Eu sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também sei que Natalie Wood “não existe / mas entre as mais”, etc. E há nesse verso um prodígio de adequação poética.
É quando se diz que “a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste”. Resiste à “imaginação pura” (no sentido de “pura imaginação”) ou resiste, “pura”, à imaginação? Ou seja, o adjetivo “pura” refere-se à imaginação ou a Deannie Loomis? Ou - pode ser também - à “linha que resiste”? Nestas três perguntas está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo não saberia, mas, como também ele escreveu (na “explicação preliminar” à 2ª edição do livro): “Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que tão importante era já para os gregos.” E, emSplendor in the Grass, tudo está no ver, que traz a história dos meninos e moços de Kansas - meninos e moços dos anos 20, de antes da Depressão - à dimensão das mais belas histórias de amor e de morte jamais contadas.

Natalie Wood e Warren Beatty na cerimonia dos óscar's de 
1962, onde recebeu o óscar de melhor actriz. 1962. Allan Grant.

Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá o título ao filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, nesse dia, não era sobre Os Cavaleiros da Távola Redonda mas sobre Wordsworth e a Ode of Intimation to Immortality. Deannie/Natalie chegava de vestido grenat muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam - e ela também, embora ninguém lho tivesse dito - que Bud/Warren, incapaz de separar por mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne.
E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: “No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower.” Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta, ou a esse nível só há a que Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer.
O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o espantosotravelling que arranca Deannie do lugar e a põe diante da professora atónita, depois daquele outro em que sai a correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras, que “that radiance that was once so bright / Is now forever taken from my sight”. Irradiância que, no filme, foi entre o plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, também nas cataratas, em que Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas são a mais poderosa das metáforas.
O “esplendor na relva” é o que vimos até à aula: são os planos em que se deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o búzio encostado ao ouvido; são os ursos de pelúcia coexistindo com o retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano da ducha dos rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie a dizer a Bud que ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em negro; é, sobretudo, a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era uma brincadeira. E ela a responder: “Não posso brincar com estas coisas. Eu era capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.”

  Warren Beatty & Natalie Wood by Eliot Elisofon. 1961.

Mas é depois da sequência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e tensão, desde longo período em que Deannie se isola até à crise que a leva ao manicómio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho (iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo (bandelette encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na sequência da festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos rails até às cataratas (terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram.
Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou nesse desespero. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: “We will grieve not, rather find / strength in what remains behind.”
Não estou nada certo que seja “força” o que Natalie Wood encontrou na relva da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estranho. Não estou nada certo que seja “força” o que Warren Beatty encontrou na universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova York em que o pai lhe pagou uma “rapariga parecida com Deannie”. Mas “o que ficou para trás”, isso, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles, das famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais valores.
Elia Kazan disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa à casa paterna, ao que dizem “curada”, e conversa com a mãe que lhe diz que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do “rapaz de Cincinatti”, que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina, que não tinha entrado na história e até já tem um bebê. Deannie vai visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o passado. Depois do “esplendor na relva”, Bud fica com as capoeiras e ela com um companheiro das trevas. “Como numa tragédia grega: sabemos o que vai acontecer e só podemos ver o que acontece.”
Estas palavras são de Kazan. Mas esta tragédia americana não acaba em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, feita de tudo “what remains behind”. “We will grieve not” e, por isso mesmo, a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e de Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy Belo: “Mas agora que cantei da tristeza / não observo já os mais leves traços / e a minha maneira de me matar / é deixar cair ambos os braços.” É a isto que se chama “intimação à imortalidade”?

Texto de João Bénard da Costa
"Folha da Cinemateca", sem data
encontrada em www.focorevistadecinema.com.br

Elia Kazan falando com Natalie Wood e Warren Beatty ouvindo Joan Collins 
(sua namorada na altura) durante as filmagens de "Splendor in the Grass".1961.

 Elia Kazan falando com Warren Beatty durante as filmagens de "Splendor in the Grass".1961.

Natalie Wood e Warren Beatty no Festival de Cannes. 1962. Paul Schutzer.

Natalie Wood (Wilma Deannie Loomis) e Warren Beatty (Bud Stamper) em O Esplendor na Relva.
Foto encontrada em www.dvdbeaver.com


"em Deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais"
Ruy Belo


(Fotos LIFE Archive, excepto as assinaladas)


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Paul Newman - O doce pássaro

por
João Bénard da Costa
A Casa Encantada
Público, Domingo 5 Outubro 2008


Post reformulado, retirei o recorte do jornal Público 
e coloquei apenas o texto de João Bénard da Costa.

Geraldine Page como Ariadne Del Lago e Paul Newman como seu amante, Chance Wayne, fumando haxixe juntos 
em uma cena da produção da Broadway "Sweet Bird of Youth" de Tennessee Williams. NY. 1959. Gordon Parks.


1. A gente nunca imagina o que a vida nos reserva. Nos anos 40 e 50, nunca imaginei que havia de chegar o dia em que Alportuche deixasse de ser a minha praia na Arrábida e no mundo. Nos anos 60 e 70, nunca imaginei que fosse desaparecer a Praia dos Pescadores, quando, depois de carregado luto pela praia da infância e da adolescência, a ela me costumava a habituar. Já nesses anos a entremeava com o Quereiro, a duna meigamente opulenta que fica no fim do Portinho. Nos anos 80 e 90, ela tornou-se quase um exclusivo como exclusivas eram as idas e vindas no yellow boat, dos restaurantes do Portinho (Galeão, primeiro, Beira Mar, depois) até esse areal relativamente longínquo – que alguns, menos preguiçosos, percorriam a pé, em coisa de vinte minutos. Mas o século XX acabou e, no actual, a opulência do Quereiro foi-se, como se foi a meiguice. Este ano, a devastação completouse. Duna de areia? Digam antes cova com areia, que tudo que era convexo côncavo se tornou, com a mesma mágoa sem remédio com que assistimos a semelhantes esvaziamentos nos humanos. “Também morre o florir de mil pomares / e se quebram as ondas no oceano”, como escreveu Sophia há muitos, muitos anos.
Assim, de praias na Arrábida o que resta? Uma língua de areia a meio do Portinho, cheia de barracas e palhotas de colmo, onde me dizem que em Julho e Agosto (que eu nesses meses não apareço por lá, senão quando estou muito distraído) se juntam carcavélicas multidões. E eis que chegado a esta idade, eu, crescido embora (Nuno, direitos de autor) em praias quase privativas, me vejo obrigado a palhotas dessas, após uma caminhada de um quarto de hora por um caminho infecto, povoado de dejectos, acotovelando-me com turistas de meia-tigela ou famílias barrigudas, alimentadas a doritos.

Paul Newman falando com Tennessee Williams, depois da estreia da 
peça "Sweet Bird of Youth" na Broadway.  NY. 1959. Gordon Parks.

2. Sábado 27 de Setembro. Sozinho, percorro eu esse melancólico carreiro, quando, numa volta dele, o telemóvel desata a tocar. O número nada me dizia, mas atendi. Do outro lado, uma voz feminina pedia desculpa pelo “incómodo”, mas não sabia se eu sabia que tinha morrido “o actor Paul Newman”. Eu não sabia. Então perguntou-me se eu não queria dar um depoimento (era de uma rádio) sobre “como me situava face à morte do actor Paul Newman”. “Como me situava?”, respondi e perguntei algo atónito. Apeteceu-me dizer-lhe que me situava numa curva de caminho escabroso, mas, como nos vamos habituando a tudo, aceitei o tal comentário, debitando meia dúzia de lugares-comuns ou de clichés feitos. Acho que até cheguei aos jeans e aos olhos azuis. No fim, a senhora, menina ou lá o que fosse saiu-se com esta: “Mas lamenta ou não lamenta a morte do actor?” Só nessa altura desliguei.
Apesar de saber Paul Newman moribundo e de saber até que deixara o hospital onde fora vencido pelo cancro, para poder morrer em casa dele e na cama dele, a notícia não me deixou igual ao litro. Quase cinquenta anos da minha vida os vivi com Paul Newman e passei mais horas com ele, em salas escuras, do que com quase todos os mortais que conheço.
O céu, num dia glorioso, tinha a cor dos olhos de Newman. Mas, quando olhei para o mar, não me consegui lembrar, do pé para a mão, de nenhum filme com Newman à beira dele. Não tardei a lembrar-me. Até do meu favorito (tudo bem pesado) que é a adaptação de Richard Brooks da peça de Tennessee Williams Sweet Bird of Youth (1962) que em Portugal se chamou – vá-se lá saber porquê – Corações na Penumbra. Mas se, nesse filme, como em tantos outros (quase todos os dos anos 60 e 70) são recorrentes os planos do torso nu do actor – esse torso de estátua grega, quando a pedra parece carne e apetece mordê-la –, esses planos não têm que ver com praias ou banhos de mar. Depois, pensei que o mesmo se passa com quase todos os filmes de Marlon Brando, nos anos da sua juventude, e se passa com todos, todos mesmo, de James Dean. Essa trindade de actores, que impôs definitivamente o Método de Strasberg e Kazan em Hollywood, depois de o ter imposto nos palcos, e que vivia tanto dos formidáveis ou atrevidos rostos como da beleza dos corpos, despiu-se largamente da cintura para cima (da cintura para baixo, nesses tempos, nenhum homem se despia em filme que se visse), mas, se a nudez era tão perturbante, tal se devia a estar mais associada a casas e camas do que a espaços livres. Talvez porque, nestes, a seminudez masculina fosse e seja visão habitual que, nos melhores casos, se pode admirar mas não cobiçar, enquanto nos outros já havia o acréscimo da transgressão em que o homem sem camisa levava a pensar no homem sem calças. Quem diz homem diz mulher? Talvez, mas já não estou tão certo e não é para digressões dessas que estou aqui hoje, regressado de férias. 



Tributo a Paul Newman (1925-2008).


3. Volto ao meu Sweet Bird of Youth. Paul Newman criou o papel no palco em 1959, numa encenação de Kazan, e essa criação, como as que teve no Picnic de William Inge ou em Desperate Hours de Joseph Hayes, foram decisivas não só para o impor como actor, como para os contratos subsequentes com Hollywood.
Mas entre a peça e o filme há modificações de bom tamanho e quase todas motivadas por razões censórias. A peça terminava com a castração de Newman pelo clã Finley, que assim se vingava da relação provocantemente sexual que este tivera com o anjo da família, sintomaticamente chamada Heavenly (e celestial foi Shirley Knight, que criou o papel nas telas, e celestial não sei se o foi Diana Hyland, que o criou nos palcos e nunca vi em vida minha). O love-ticket a que o irmão de Heavenly se refere era o propriamente dito. No filme, não havia nenhuma castração. O que ficava esmagado no final era o belo rosto de Newman, após uma sova bruta. Chamaram a Brooks “the chief castrator of honestly cynical stage art” e a esse nal “the cup-out ending to beat all cup-out endings”.
Nunca concordei. E nunca concordei porque, no filme pelo menos, o “sweet bird of youth” de Paul Newman está muito mais na cara e nos olhos (esses olhos de que a câmara se aproxima cada vez mais, cada vez mais) do que no sexo, ou mesmo na relação com Heavenly. É certo que ele é o gigolo de uma envelhecida ex-star (prodigiosa Geraldine Page, que também fizera o papel nos palcos), é certo que é esta quem, acariciando-lhe o torso (nu), fala de “sure hard gold”. Mas esse ouro, se brilha no corpo, brilha ainda mais no olhar azul e louro de Newman. Ora se esse olhar (“your good look”) é o que fundamentalmente revela a personagem, na sua crucial divisão, é esse olhar que é preciso destruir e é esse olhar que é efectivamente destruído, quando Shirley Knight, vestida de branco, o leva no Cadillac negro, no final. Face à personagem criada por Williams e Brooks (mesmo que de costas viradas um para o outro) esse final é mais coerente do que uma escabrosa cabidela. Não é “Hollywood frou-frou”, como à época se disse, mas é o final inteiramente poético que as personagens pediam e mereciam. Em Sweet Bird of Youth, Richard Brooks apenas levou mais longe e mais dentro o que já fizera, três anos antes, quando adaptou, também com Newman e também de Williams, Cat on a Hot Tin Roof. A homossexualidade ou frigidez da personagem (casado com uma “gata” que era nem mais nem menos Elisabeth Taylor) não é explicitada no filme, mas cada plano do corpo de Newman reenvia à carnalidade abafante dessa família de tragédia grega. 

Paul Newman às compras com sua mulher, Joanne Woodward. NY. 1959. Gordon Parks.


4. Paul Newman foi grande quase até ao fim, pois só em 2005 se retirou. O célebre “good look” era ainda bem visível (talvez “the best look”), quando finalmente lhe deram o Óscar em 1986, pela sua criação em The Color of Money de Scorsese, sintomaticamente um remake do prodigioso The Hustler de Robert Rossen, em que já era esmagado e esmigalhado e em que já era tão sensualmente masculino como joguete de deuses, que uma inusitada fragilidade não lhe permitia dominar.
É talvez por isso – resumindo e simplificando muito – que eu nunca concordei com os que o consideravam uma réplica menor de Brando ou de Dean. Percebo Kazan, quando este disse que ninguém como Newman compreendeu o espírito do Método, representação de contradições. Os braços suplicantes, as mãos que tremem enquanto diz “Listen to me” ou tantas outras marcas da escola nunca são nele cliché fácil, mas o sinal do desacordo entre tão belo exterior e tão convulso interior. Exemplo flagrante e quase inicial: a sua versão de Billy the Kid, de Arthur Penn e Gore Vidal (The Left-Handed Gun, 1958) quando o teenager William Bonney (Billy) era apanhado por uma guerra absurda e dela trouxe a amargura revoltada que o levou a matar sempre por uma razão e sem razão, em desenraizamento longínquo e final. Quando o filme se estreou em Portugal, em descoberta quase simultânea de Arthur Penn e de Paul Newman, com o título parvíssimo Vício de Matar, Ruy Belo, que aqui evoquei na minha última crónica de Verão, escreveu um poema espantoso. Esse que começa com a pergunta  “Para onde há-de ir billy the kid?”. E mais adiante: “O caminho da ida e o caminho da volta / não são afinal o mesmo caminho / Billy conhece agora o destino. Sempre inquieto sempre a correr / amou a vida como se amar fosse morrer / Sabe-lhe bem ser de novo menino.”
Releio o poema e penso em Paul Newman. Ele foi tão grande em velho. Ele foi tão bonito em velho. Mas quando pensamos nele – doce pássaro – é a juventude o que mais lembramos, é o novíssimo Paul Newman – corpo e olhar ou corpo e alma – de quem temos mais saudades. E sabe-nos bem que ele seja de novo menino. Mudando Billy por Paul: “Paul que nunca soubera fugir / nem mesmo pergunta para onde há-de ir.

João Bénard da Costa
A Casa Encantada
Jornal Público
Domingo 5 Outubro 2008


Repare-se na expressão do rosto da mulher que está sentada ao lado 
de Paul Newman num programa de TV em 1958. Leonard Mccombe.

Paul Newman. 1967. Mark Kauffman.



(Fotos LIFE Archive)



quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Vida, paixão e arte de Chianca de Garcia


«O mais belo grande plano de mulher no cinema português é esse em 
que ela (Beatriz Costa) apareceu com as três camisas de um enxoval»
João Bénard da Costa a propósito de Aldeia da Roupa Branca

Chianca De Garcia - Entrevista (excertos). Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira. «Em 1982, Luis de Pina esteve com Chianca no Rio, onde participou, como entrevistador, (...) juntamente com Reinaldo Varela e José Manuel Coelho, filmes que a RTP transmitiu no Verão do ano passado.» M.J.D., em jornal Se7e 01-11-1983.


«Não se deve procurar no cinema nacional aquilo que existe no cinema estrangeiro, isto é, os seus problemas, os seus recursos, a sua expressão. No cinema nacional procura-se aquilo que tiver carácter e realidade nacional. Só isso interessa. O cinema português deve contar-nos histórias que o povo sinta, compreenda e viva.» (Chianca de Garcia)


Chianca de Garcia

Entrevista conduzida por José Alberto Braga

Expresso - 30 Dezembro 1977


Coisas boas em jornais

Beatriz Costa e Chianca de Garcia. Durante a rodagem do filme, O Trevo de Quatro Folhas, de que não existe cópia..
Foto encontrada em datasnahistoria.blogspot.pt


AUTOR teatral, realizador de cinema, encenador, director artístico, Chianca de Garcia foi tudo isso. Algumas peças suas foram êxito nos palcos lisboetas, nos anos 20 e 30, e alguns filmes por ele realizados tiveram igualmente sucesso. Mas ele é, sobretudo, o realizador desse grande êxito popular que se chama "A Aldeia da Roupa Branca". Um dia, em 1939, disse que ia ao Brasil por duas semanas. Nunca mais voltou. Lá ganhou maior nome, fama e prestígio.


«Chianca de Garcia: o ontem e o hoje». Copiado do Expresso 1977.

Em busca do ser humano

Expresso — Para começar, fale-nos da sua juventude. Enfim, suas primeiras memórias, curiosidades, etc.
Chianca de Garcia — Durante os meus primeiros anos fui contemporâneo de factos espantosos. O assassinato do rei D. Carlos, na rua do Arsenal, em 1908, fez-me descobrir o lado trágico da vida. Há coisas que acontecem quando algo está errado. Foi desde então, com constantes reprimendas familiares, que passei a acompanhar os acontecimentos que estavam conduzindo à queda da monarquia. Frequentei comícios. Uma vez, por acaso, vi Afonso Costa empolgar o povo com palavras de dinamite. Aquilo era bonito. Retórico. A multidão delirava. Foi quando de repente, um agente policial fulminou com dois tiros um velho operário que dava vivas à República. Fugi no meio da pancadaria geral. Também aplaudi António José de Almeida, que quinze anos mais tarde, assistiu, no camarote presidencial do Teatro Politeama, à peça "Filha de Lázaro", que eu escrevera com Norberto Lopes. Agora, era ele quem batia palmas. Mas a nós dois, no palco. No entanto, o Norberto, nunca tinha assistido a comícios, como eu. Também quero lembrar certa manhã em que indo com minha irmã para o colégio, vi o sorridente Bernardino Machado debruçar-se do seu carro, sorrir, e jogar para nós uma rosa que caiu a nossos pés. Minha irmã que era, e sempre foi, terrivelmente monarquista, calcou a rosa, e virou costas. Eu apanhei do chão as pétalas e guardei-as num livro de poesias de Gomes Leal; que levava debaixo do braço.

Ver e Amar, de 1930. O primeiro filme de Chianca de Garcia.
Foto de www.amordeperdicao.pt

EXP. — O que lia nesse tempo?
C.G. — Lia tudo. Até os anarquistas, Kropotkine e Bakunine. Mas o que eles pregavam sempre me pareceu uma utopia. Meu sentido lisboeta levava-me com mais facilidades para a leitura e releitura das "Farpas", do Eça, das pasquinadas do Fialho. Também me empolgava o jeito espectacular da prosa do Oliveira Martins. Ainda hoje gostaria de reler a fuga do Príncipe Regente, e da Rainha Louca, para o Brasil, quando da invasão francesa. Enfim os grandes desesperos.

EXP. — O que procurava, então?
C.G. — Encontrar alguém que me ensinasse o que era, afinal, o ser humano.

EXP. — E encontrou?
C.G. — Anos mais tarde. Foi quando, creio que o José Gomes Ferreira, colocou nas minhas mãos o primeiro volume, em edição francesa, das obras de Dostoiewski. Dostoiewski foi para mim a revelação. Desvendou-me nossos anjos e nossos demónios. Li tudo que dele saiu então na França. Nunca mais quis voltar a lê-lo. Eu não nascera para personagem "dostoiewskiano". Era apenas um pequeno burguês ambicioso e que não queria ficar desconhecido.

O Trevo de Quatro Folhas de 1936. Filme de Chianca de Garcia, de que não existe qualquer cópia: cena com Beatriz Costa e Procópio Ferreira. Foto Estúdios Novais e Fundação Gulbenkian.

EXP. — Que carreira pretendia, seguir nessa época?
C.G. - Não consegui sequer chegar a matricular-me em Direito, como todos os meus companheiros. Com diplomas, eles tinham lugares marcados na sociedade. Eu, sem diploma, procurava o meu destino. Aprendi a gostar de um verbo. O verbo fazer. Sim, tinha de fazer coisas para ser alguém, para não ser um anónimo, um João Ninguém. Sim, fazer coisas, inventar, criar, mas o quê?  
Parava, às vezes distante das portas do teatro, lia os cartazes, e pensava: aí está uma coisa que eu gostaria de fazer, comédias. Os personagens, bons ou maus, tinham de sair da minha cabeça...

Crítico teatral: uma vez bastou

A Rosa do Adro de 1938. Realizado no mesmo ano de Aldeia da Roupa Branca. Foto de jcabral.info e Chianca de Garcia visto por Amarelhe. 1939. Copiado de O Jornal da Educação,1983.

EXP. — E veio então o teatro?
C.G. — Não tão fácil. Mas a vida dá sempre um jeitinho. Fora do meu grupo habitual, no Martinho, tinha há muito um grande e generoso amigo, o jornalista Artur Inês, que sempre me deixava escrever crónicas nos inúmeros jornais que então fundava. Era um grande e popular jornalista, o Artur Inês. E gostava de mim. Foi quando ia iniciar a publicação de um novo jornal, creio que "O Rossio", que consegui que me escolhesse para crítico teatral. "O quê, tu crítico teatral? Porquê?". "E porque não posso?" — respondi. "Até hoje eu assisto a todas as peças, mas lá do alto das torrinhas, que é barato. Agora como critico, irei de graça e assisto às peças nas primeiras filas. É isso que eu quero!" Ele riu. O teatro, na Imprensa, não era levado muito a sério e fui ver a minha primeira peça como crítico.

EXP. — E foi crítico durante muito tempo?
C.G. — Nada disso. Só fiz uma única crítica, no jornal do Artur Inês. Fui assistir a uma comédia elegante entre damas e adultérios na alta sociedade. Ridiculizei a peça e o seu autor. No dia seguinte, ia entrando no Martinho cheio de prosopopeia, quando fui cercado por três ou quatro companheiros do autor que caíram sobre mim às bengaladas. O autor, além de monárquico, era integralista, e isso foi a minha sorte pois meus amigos republicanos que faziam da Brasileira, do Rossio, o seu quartel-general, mal souberam do caso correram para iniciar uma caçada aos adeptos de D. Duarte. O assunto saiu nos jornais. Nossos nomes foram falados, discutidos. Passei a ser conhecido. Mas prudentemente, o Artur Inês tirou-me a carteira de crítico teatral.
Passei a ser comentarista de futebol. Deveria ter então 19 anos de idade. Mas não desistiria do teatro. Pelo contrário. Poucos anos depois subia à cena, no Politeama, como já contei, a peça "Filha de Lázaro", de que era co-autor comigo o também jornalista Norberto Lopes, esse de facto doutor em Direito.

O nascimento da «Aldeia da Roupa Branca»

 Cartaz, cena do filme Aldeia da Roupa Branca e entrevista com Chianca de Garcia em 1939, aquando da estreia do filme no Tivoli. 
Fotos encontradas em cine-portugues.blogspot.pt

EXP. — E como é que você passou do teatro para o cinema?
C. G. — Eu queria tentar tudo. Desejava ser, se pudesse, um homem dos sete ofícios. Agora estava disposto a conhecer os segredos do cinema, pois já conhecera a experiência do palco. Não era doutor em nada, mas queria formar-me em espectáculos.

EXP. — Qual era, nessa época, o melhor cinema de Lisboa?
C.G. — Sem dúvida nenhuma, o Tivoli. Então pensei: "E se eu pudesse bater o Tivoli?" Como?
Bem, eu vim a saber que o teatro República, ou seria vendido, ou passava a sala exibidora de filmes, mesmo de segunda classe. Eu conhecia vagamente o seu administrador, o advogado Ricardo Jorge, filho do escritor e professor Ricardo Jorge, que foi médico de Camilo Castelo Branco quando velho e quase cego. E eu disse-lhe: "Consta-me que vai transformar o teatro em cinema, é verdade?" E ele disse-me: "Não sei. Pensamos nisso. Mas a verdade é que eu não percebo nada de cinema". Era a minha chance, e tive que mentir: "Não? Mas eu sei tudo. Chame-me para o seu lado, e nós podemos fazer do República o mais importante cinema de Lisboa". A conversa prolongou-se durante horas. A ideia foi lançada. E ninguém queria acreditar. Mas a verdade é que um ano depois, sob o nome de São Luís, nascia o mais importante cinema da capital portuguesa. Foi assim que eu passei a ser um homem da indústria cinematográfica. Mas tive que aprender tudo. Principalmente a ter o faro necessário para saber exigir e escolher grandes filmes. Passei a ser uma personalidade na Rua do Tesouro Velho. Tive que lutar com os homens da Metro e da Paramount. E vencê-los.


Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil, com Procópio Ferreira no protagonista.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

EXP. — E como surgiu o seu interesse pelo cinema português?
C.G. — O som e a palavra tinham chegado ao cinema. Eu, é claro, fui dos primeiros a querer cinema na nossa língua, mas feito em Portugal. O Leitão de Barros, o António Lopes Ribeiro, o Brum do Canto, também. Mas falar era fácil. O difícil era convencer um homem inteligente e culto que, conhecendo a Lisboa dos banqueiros e dos magnates, conseguisse convencê-los a serem úteis ao cinema nacional. Ora, esse homem estava ao meu lado. Era Ricardo Jorge. E foi com tacto e diplomacia que ele conseguiu esse milagre que foi a construção da Tóbis Portuguesa. Primeiros filmes. Indecisões. Até que um dia eu lhe disse: "Eu creio que o público está cansado de ver a toda a hora a cara da Greta Garbo e da Norma Shearer. No fundo, o que se deseja é ver e ouvir no cinema o alegre riso de um rosto feminino e lusitano.".
Mas foi preciso que eu inventasse ali mesmo uma história bem quotidiana dos costumes lisboetas, com lavadeiras, carroças de hortaliças, esperteza saloia, burricos, morangos de Sintra, coisas assim, para que nos campos do Lumiar surgisse o filme "Aldeia da Roupa Branca".


Fotos de actores do filme Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

«Só duas semanas»

EXP. — Como se explica que, logo após o sucesso da "Aldeia da Roupa Branca", viesse  para o Brasil?
C.G. — Nós, em Portugal, não éramos felizes. Hitler queria tomar conta do mundo. Na Espanha, Franco, batia-se contra os republicanos de Madrid. Foi quando o então grande empresário José Loureiro me convidou para ir com ele ao Brasil. São duas semanas só, disse eu ao querido amigo Frederico de Lima Mayer, com quem estava trabalhando no Tivoli, depois de ter saído do São Luís, com Ricardo Jorge. "Mas só duas semanas, é?" "Só, garanto". E ele: "Então vá". Pois é, já lá vão quarenta anos, ou quase. Frederico de Lima Mayer não é mais deste mundo. Nem Ricardo Jorge. Ramada Curto, que escreveu os diálogos da "Aldeia", desapareceu há muito. Enfim, vivos, bem vivos, bem conhecidos e famosos, só o José Gomes Ferreira e a nossa Beatriz. E ainda alguns amigos, como o Augusto Fraga que acompanhou todas as fases das filmagens.


Dezoito anos separam estas duas  fotos:  em cima Chianca com o actor brasileiro Fregolente (1952); em baixo, falando de teatro com os seus alunos (1970). Copiado do Expresso 1977.

EXP — Fale-nos destes seus quarenta anos brasileiros. O país correspondeu à sua expectativa?
C. G. — Sim. O que me surpreendeu desde a primeira impressão foi a sua grandeza, as suas possibilidades. O Brasil ensinou-me a ver e a compreender em grande. O Brasil é, em si mesmo, um grande espectáculo. E eu, como creio que já lhe disse, sempre tive a paixão dos grandes espectáculos. Durante anos pensei em recriar, no teatro, toda a violência do Velho Testamento. Mas no Brasil, entre outras oportunidades, tive a de contar a verídica história da velha cidade do Salvador; na Bahia, num desfile monumental comemorativo dos quatro séculos da sua fundação...

EXP. — Sim, mas antes há os famosos espectáculos do Casino da Urca, aqui no Rio.
C. G. — Certo. Durante cinco anos idealizei e dirigi, com alto luxo, espectáculos por certo mais ricos dos que eram apresentados na Broadway, em Nova Iorque. Mas quando o Governo proibiu o jogo no Brasil, levei para a Praça Tiradentes, os mesmos espectáculos que até aí tinham sido vistos apenas pelas elites. E junto do público da classe média, e francamente popular, o êxito foi até muito superior.


Cartazes dos filmes Pureza de 1940 e 24 Horas de Sonho de 1941, os dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Cartazes encontrados em www.bcc.org.br

Da fase heróica à profissional

EXP. — Procure dar-nos um resumo de suas actividades artísticas nestes 40 anos de Brasil.
C. G. — Posso dividir em duas fases. A primeira é a histórica. Grandiosidade. Nela reúno os espectáculos da Bahia, mas a inauguração de Brasília, e a encenação, no Maracanãzinho, de uma evocação do antigo Rio de Janeiro, espectáculo em que o palco ocupava metade do tamanho daquele conhecido estádio. Nunca voltou a fazer-se nada igual. São três momentos que marcaram para sempre a minha vida. Ou o meu estilo. Como tentar prová-lo, não sei. Mas na edição das obras completas do escritor e académico Josué Montello, lá está no capítulo "Teatro: — Alegoria das Três Capitais, espectáculo encenado no alto do palácio do Congresso, em Brasília, de colaboração com Chianca de Garcia". Por sua vez, na Bahia, 13 anos antes, creio também o escritor e académico Pedro Calmon, foi autor de um folheto onde explicava o desenvolvimento que eu dera ao desfile, que era da graça e glória da Bahia. E ainda a propósito dessa comemoração, quero lembrar o nome do grande Assis Chateaubriand, que em artigo divulgado por todos os 50 jornais de que era então dono e senhor, no Brasil, escreve: "Chianca apresentou a coisa mais bonita que os portugueses fizeram desde o descobrimento do Brasil…”



 Fotos do último filme Chianca de Garcia, 24 Horas de Sonho de 1941.
Fotos encontradas em www.meucinemabrasileiro.com

EXP. — Também não era para menos, Chianca. A cidade de São Salvador (Bahia) Inteira ficou fascinada com o desfile dos seus dois mil participantes. Mas, e a outra, a segunda fase?
C. G. — Essa é meramente profissional. Mais activa. Teatro musicado ligeiro, cinema, televisão nos seus primórdios, viagens através dos estados com peças alegres, de humor, e mulheres bonitas, sem esquecer a fase jornalística, que por sinal ainda perdura, na "Revista de Teatro".

EXP. — Os jornais andam anunciando a sua ida a Lisboa, iniciativa do empresário Vasco Morgado, creio.
C.G. — Ele de facto, numa das suas visitas à SBAT — Sociedade Brasileira de Autores Teatrais — em plena assembleia de sócios, disse que estava ali para me convidar a ir a Lisboa, onde, no seu teatro, seria apresentado aos espectadores como o filho pródigo do cinema português. Foi muito aplaudido. E eu, naturalmente fiquei emocionado. Em carta, mais tarde, Morgado sugeriu que eu fosse a Lisboa neste Natal de 1977. Expliquei-lhe que estava sendo convidado, para, de novo, na Bahia, ajudar a criar, em Porto Seguro, um pólo cultural e turístico que ficasse como marco do descobrimento do Brasil, tendo eu sugerido a reconstituição da chegada das naus, que seria completado com a encenação teatral da carta de Pero Vaz de Caminha. Por isso, respondi-lhe que não poderia ir Lisboa antes de Abril de 1978.
Desculpem os meus amigos de Lisboa, mas eu tinha de dar preferência ao pedido dos baianos. Fiquei no Brasil. Mas se ele quiser, em 1978, irei a Lisboa representar, com o maior prazer, o meu pequeno papel bíblico de filho pródigo. Neste caso, só espero que o meu coração resista, à reconstituição de alguns dos momentos mais caros da minha juventude.

Entrevista de José Alberto Braga
Títulos e texto em Expresso, 30 Dezembro 1977


Chianca de Garcia (1898 - 1983)
Foto encontrada na net


José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia


«... Eduardo Chianca de Garcia, como já disse, partiu para o Brasil e só nos anos sessenta, suponho, voltou a Portugal desfeito em palavras das suas crónicas publicadas semanalmente no «Diário de Lisboa» sob o título de Cartas do Brasil. Nem calculam o pasmo das gentes novas lisboetas que de repente viam surgir, num dos melhores jornais de Lisboa, um escritor desconhecido mas tão pujante, com imaginação de mestre e uma linguagem preciosa propositadamente portuga-brasuca, sem no entanto perder a raiz bem portuguesa de lei que aprendera nos livros de Camilo, Garrett, Herculano, etc., que a avó, Dona Amélia Carvalho Chianca, guardava em três baús e lhos dava a ler em miúdo, às escondidas, conforme o Eduardo nos conta no seu relato de memórias inventadas, insertas também, mais tarde, no «Diário de Lisboa»: «Os Verdes Anos da República de 1910». O talento literário de Chianca (cujo apelido materno jurávamos então provir de um príncipe genovês) sempre nos pareceu de evidência total.»
(José Gomes Ferreira, citado no jornal se7e em 01-11-1983)




José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia. Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar 
era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira.




Beatriz Costa sobre Chianca de Garcia

.... Chianca mantém no «Diário de Lisboa» uma página semanal, Cartas do Brasil, que já fez escola... Nessas cartas ele fala de tudo e de todos com amor, verve e inteligência, a ponto de certos termos cariocas já se terem popularizado em Portugal. Gosta tanto do Brasil como eu gosto de um e de outro... Sou amiga desse homem desde que entrei para o teatro. Hoje somos parentes honorários, por minha vontade e seu consentimento. Já o pedi em casamento, mas ele desatou a rir e não tomou a sério. Este poço de inteligência faria a felicidade de uma rainha, que em geral é sempre uma mulher mal amada...» 
Beatriz Costa, em 1975, no seu livro «Sem Papas na Língua». In, se7e 01-11-1983




 Chianca de Garcia: o cinema-espectáculo (excerto)
por Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


«Chianca de Garcia pertenceu a uma geração que, caldeada no modernismo, na cinefilia e na ambição de uma sociedade nova, revelava também uma clara aristocracia de gosto, de inteligência e sentido cívico, obviamente participativa mas colocada numa meia distância amável entre o intelectual e o popular. 
Sabia também defender-se, ao defender as suas preferências em termos estritamente cinematográficos, do melodrama convencional e da tentação folclórica. Basta ver como são postos em causa, na «Canção de Lisboa», o fado, o bairrismo pequeno-burguês e a hipocrisia social ou como na «Aldeia da Roupa Branca», se esconde, por detrás do aparente folclorismo saloio, o conflito do velho e do novo que, segundo Chianca me disse no Rio, confirmando uma tese por mim aventada, procurava seguir a ideia traçada em «A Linha Geral», de Eisenstein: a camioneta deste filme assemelha-se em tudo ao tractor do filme russo, na sua capacidade de resolver o conflito superando a situação antiga.»
Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


O Trevo de 4 Folhas (excerto de 4 minutos). Noticia em O Jornal. 12-12-1986.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

The Thing ou A Coisa



Christian Nyby (1913-1983)

«American director of occasional films» é o que os menos lacónicos dizem dele. Mas um desses «occasional films» foi The Thing, versão de 51. Feito para Hawks, ou no lugar de Hawks? Tudo leva a crer que no lugar de Hawks e para Hawks. O próprio realizador não contradiz essa versão, embora tivesse sido naturalmente discreto. E recordo-me de ter visto Young Fury, de 65 (com Rory Calhoun, Virginia Mayo, Lon Chaney Jr., John Agar, Richard Arlen, quando todos «estes» já eram «decrépitos» e de o ter achado um «thriller» bem curioso. Do resto não sei. Quem é Nyby?
(João Bénard da Costa na entrada do dicionário do Catálogo do Ciclo de Cinema de Ficção Cientifica. 1985.)


Preparação da cena do fogo: James Arness (The Thing) em A Ameaça (Thing 
from Another World, 1951) de Christian Nyby. 1951. Allan Grant, LIFE Archive.


The Thing from Another World (A Ameaça, em Portugal) é um filme de 1951 de ficção científica, dirigido por Christian Nyby e produzido por Howard Hawks (dizem que também deu um mãozinha na realização). Baseado em um conto de John W. Campbell Jr., escritor de ficção científica. O conto, de nome Who Goes There! (Quem está aí?), foi publicado em agosto de 1938, na revista Astounding Stories. A Ameaça, conta-nos a história dum grupo de cientistas e militares que estão a fazer um estudo numa base no Alasca, quando se deparam com algo insólito: uma nave extra-terrestre. Após ser retirada do gelo e o seu habitante (aparentemente) morto ser levado para a base, eles decidem estudar o ser. Até que descobrem que não está morto. Tenta-se contacto amigável com o ser, agora descongelado e andando livremente pela base, mas ele se revela hostil e anti-social ao extremo, interessado nos seres humanos apenas como seu alimento. Ferido algumas vezes, logo revela sua capacidade de regeneração e reprodução.


Preparação da cena do fogo: James Arness (The Thing) em A Ameaça (Thing 
from Another World, 1951) de Christian Nyby. 1951. Allan Grant, LIFE Archive.


O produtor Howard Hawks e o realizador Christian Nyby, apresentam um filme de ficção científica com um bom argumento e uma excelente direcção de actores. O "Alien", está muito bem conseguido, sendo uma presença assustadora. The Thing From Another World tornou-se um clássico e um verdadeiro marco da ficção científica dos anos 50. Lançado na época da Guerra Fria, da caça às bruxas e pós-bomba atómica, o filme repercute o medo do comunismo e mostra os cientistas negativamente, como pessoas preocupadas apenas com o conhecimento, sem se importarem com consequências. No final, uma frase em sinal de advertência ao público: Watch the skies (Vigiem os céus!). 


Preparação da cena do fogo: James Arness (The Thing) em A Ameaça (Thing 
from Another World, 1951) de Christian Nyby. 1951. Allan Grant, LIFE Archive.


Em 1982, John Carpenter realizou um remake, The Thing (Veio de Outro Mundo), que na altura da estreia foi um grande fracasso de bilheteira, mas que, com o passar dos ano, tornou-se um filme admirado e um verdadeiro objecto de culto. O "The Thing" de Nyby/Hawks, é diferente do "The Thing" de John Carpenter. No primeiro, o medo é gerado, sobretudo, na ausência da imagem do "Alien". No remake de Carpenter, o "Alien" é encarado/mostrado pela câmara e só se torna perigoso quando se instala no organismo dos cientistas, colocando uns contra os outros. A imagem do inimigo vai-se confundindo progressivamente com a imagem do homem, mesmo do melhor dos homens. (Fontes: wikipedia.org, www.travessa.com.br e cinedrio.blogspot.pt)


James Arness (The Thing) em chamas no filme A Ameaça (Thing from Another 
World, 1951) de Christian Nyby. 1951. Foto de branduponthebrain.tumblr.com



A cena do fogo em The Thing from Another World, 1951 de Christian Nyby.



Who Goes There!

Tudo começa com uma simples pergunta: Quem está aí? Esta pequena novela de ficção científica de John W. Campbell, Jr., tornou-se a inspiração para o filme The Thing From Another World, de Christian Nyby e Howard Hawks (1951), que se tornou um enorme sucesso. Em 1982, John Carpenter fez um remake, The Thing. Não foi um sucesso e não fez muito dinheiro, mas o filme ainda hoje é conhecido como um dos melhores filmes de terror de sempre.



Original vs Remake, "mostra" as diferenças e semelhanças entre o velho e o novo. E o filme é A Ameaça (1951) e Veio do Outro Mundo (1982). É Nyby/Hawks vs Carpenter. The Thing vs The Thing. Textos e edição de Jasper ten Hoor (TheSpringwoodSlasher), in youtube. Uma brincadeira encontrada no youtube.


Cartazes do dois "The Thing", encontrados na net.