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sábado, 2 de junho de 2012

Os Bairros de Lusalite


Interior duma casa, no Bairro da Boavista, 1940.

Algumas das fotos são do Bairro da Boavista em 1940, que foi inaugurado quatro meses depois do nosso, em 13 Junho de 1939. Estão aqui porque das duas primeiras não consegui arranjar iguais, mas do Bairro da Quinta da Calçada; são fotos do interior de uma casa, do dispensário e a terceira e quarta é para verem como era quase tudo igualzinho ao nosso bairro. 
Lembro-me ainda muito bem daquele tipo de armário e do guarda-pratos, que eram iguais na Quinta da Calçada e que no caso da minha mãe, duraram muitos anos; das cadeiras e das mesas não me recordo mas deviam ser iguais. Isto era a chamada sala de jantar, à direita entre o guarda-pratos ficavam os quartos e do local onde foi tirada a foto ficava a cozinha e quarto de banho. Repare-se no pormenor da lâmpada que era de 25w (era a única luz na casa), as outras divisões não tinham luz (só depois do 25 de Abril tivemos iluminação completa) e esta tinha de ser apagada às 10 horas da noite sob pena de multa. 

Dispensário e consultório médico no Bairro da Boavista,  1940. Domingos Alvão.

Foto do interior do dispensário médico que ficava no Infantário, que era o edifício à esquerda da Igreja e também igual ao da Quinta da Calçada. A minha mãe trabalhou durante uns tempos no infantário e contava-me algumas coisas de lá, aliás, manteve contacto com algumas das senhoras que lá trabalhavam; a Dona Mariazinha, a Dona Elisa, a Dona Irene. Eu, não fiquei com nenhuma recordação do infantário, tirando brincar aos médicos e enfermeiras nas traseiras. No caso da Quinta da Calçada, havia em frente ao Centro Social (mais tarde sede do Juventude União Clube) uma casa que era utilizada como maternidade e que foi onde eu nasci. A Ti Virgínia e a mãe do Armindo (Bába), disseram-me várias vezes que tinham ajudado a transportar a minha mãe e a mim numa padiola até minha casa.

Bairro da Quinta da Calçada; Centro Social, Igreja, Infantário, 1940. 

Bairro da Boavista; Centro Social, Igreja, Infantário, 1940. Domingos Alvão.

Bairro da Boavista, Inaugurado a 13 Junho de 1939, vista geral, 1940. Domingos Alvão.

O Centro Social era o local onde havia uma espécie de ATL da altura, onde as miúdas (principalmente) iam depois de saírem da escola. A minha irmã Isaura recorda-se: "No meu bairro havia uma escola para rapazes e outra para raparigas; Um Centro Social onde tínhamos actividades (ATL), depois das aulas onde aprendíamos a fazer renda, croché, tricô, a bordar, etc. A monitora era a assistente social Dona Elisa. Durante o tempo que andei na escola as aulas eram só de manhã, almoçávamos na escola e depois íamos para o Centro Social, onde ficávamos (as que queriam) até mais ou menos às cinco da tarde a fazer trabalhos manuais ou a ensaiar qualquer peça de teatro para apresentarmos. naquele tempo não sabíamos o que nos faltava porque não tínhamos conhecimento do que existia"


A Igreja já se sabe para o que serve, (quem quer que lhe faça bom proveito) tanto a católica como as outras. Não tenho grandes recordações da Igreja, embora a tenha frequentado algumas vezes (até me obrigaram a fazer a primeira comunhão), a certa altura deixei de lá ir (ia só à missa do galo, por causa das miúdas), lembro-me do sacristão, coitado; o que a gente gozava com ele. Tenho uma vaga memória de umas procissões que havia lá no bairro (acabaram quando era muito miúdo  e anos depois, das tardes e das noites de batota encostados às paredes da igreja; bingo, montinho, pedida, valia tudo menos tirar olhos.

O Infantário era destas três unidades a mais útil às mães e pais que tinham de trabalhar e não tinham quem olhasse pelos filhos. As Mães deixavam os seus bebés, “de borla”; e existia um posto médico, que se chamava na altura dispensário e creio que não tinha médico mas sim enfermeira ou alguém com conhecimentos médicos; existiam também várias “assistentes sociais” para auxílio material e moral aos mais necessitados. Tudo isto (Igreja, Centro Social, Infantário) ligado com o Fiscal do bairro e a esquadra da policia. Mais tarde, construíram-se mais dois bairros de lusalite: o Bairro das Furnas nos anos 40 e o Bairro Padre Cruz nos anos 60, como podem ver pelas fotos o tipo de lusalite era diferente.

O Bairro das Furnas
Inaugurado a 28 Maio de 1946

 Construção do Bairro das Furnas. 1945. Eduardo Portugal.

A Rua das Nogueiras no Bairro das Furnas. 1961. Artur Goulart.

O Bairro Padre Cruz
Inaugurado em 1962 ?

 A Rua do Rio Alviela no Bairro Padre Cruz. 1962. Artur Inácio Bastos.

Inauguração da Carreira de Autocarros entre a Praça dos 
Restauradores e o Bairro Padre Cruz, 1963. Armando Serôdio.


Curiosidades

Excerto de relatório do presidente da Câmara de Lisboa em 1940. Refere-se à construção do Bairro da Boavista, igual ao da Quinta da Calçada com alguns melhoramentos e a edifícios na Quinta da Calçada, que só foram acabados em 1940, caso das escolas e igreja. Clique para poder ler. 

Excerto de relatório de um serviço da CML em 1940.

Excerto de relatório do comandante da policia municipal de Lisboa em 1940 . Tem a curiosidade de o chefe da policia chamar ao Bairro das Minhocas; Bairro da Bélgica ou Bairro do Bélgica. Talvez tivesse os dois nomes e o nome Bélgica, talvez fosse por causa do cinema Bélgica que já existia desde 1928.

Excerto de relatório dos serviços de finanças da CML. Refere-se às rendas da altura. 



Palavras de um deputado em 1940

Seja-me permitido citar o Bairro da Quinta da Calçada, para onde, por iniciativa do Governo e da Câmara Municipal de Lisboa, foram transferidos os antigos moradores do «Bairro da Lata». (Bairro das Minhocas)
Toda aquela gente – que se dizia indomável e revolucionária, a ponto de nem a polícia ousar penetrar nos seus domínios – aparece hoje, a menos de um ano de convívio com a assistência social, como a melhor gente do mundo. À parte um ou outro caso mais rebelde, ninguém que visite o Bairro da Quinta da Calçada dirá estar em frente de uma «raça» estranha que ainda há pouco era considerada extremamente perigosa para a paz social.
Esta obra de regeneração completa de tantas centenas de famílias criminosamente votadas até há pouco ao mais absoluto desprezo e abandono é fruto da dedicação da Obra das Mães pela Educação Nacional, da Junta Central da Legião Portuguesa, que mantém um pequeno subsídio mensal em favor do Bairro e confiou a uma comissão da sua confiança o encargo de dirigir a assistência social, e do apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Sr. Ministro das Obras Públicas e Comunicações.
Mais uma vez se provou, pela experiência de poucos meses, que o povo português é fundamentalmente bom e generoso e só se torna mau quando, desprezado e abandonado, o tratam como se para ele não houvesse o direito à vida e à alegria de viver.
É por isso que, consciente desta realidade, subi a esta tribuna para trazer o meu incondicional apoio ao decreto-lei n.º 30:135 e o meu preito de homenagem ao Sr. Ministro da Educação Nacional pelo largo alcance da medida de que tomou a iniciativa com a publicação do referido decreto.


ABEL VARZIM da CUNHA e SILVA,  Deputado à ASSEMBLEIA NACIONAL
SESSÃO N.º 70 da Assembleia Nacional, Em 8 de Fevereiro de 1940



(As fotos são do Arquivo Fotográfico da CML, os excertos de
 relatório foram copiados de publicações da Hemeroteca da CML)




segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Já vivi nesse país e não gostei

por
Isabel do Carmo

Publicado no Público de 28-11-2011

 Bairro da Quinta da Calçada, 1976. 
Foto francisco grave. 



O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele desígnio de falar “verdade”, que consiste na banalização do mal, para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as contas são difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à porta e eles afi nal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina de lavar alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos que… Não interessa.
   Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os “remediados” só compravam fruta para as crianças e os pomares estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as crianças mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se ia ao talho comprar um bife que se pedia “mais tenrinho” para os mais pequenos, onde convinha que o peixe não cheirasse “a fénico”. Não, não era a “alimentação mediterrânica”, nos meios industriais e no interior isolado, era a sobrevivência.
   Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que vão fazer agora os desempregados de “longa” duração, ou seja, ao fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham na rua nos “balões” (“Olha, hoje houve um ‘balão’ na Cuf, coitados!”). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos Patiño e de outros, para ver “como é que elas iam vestidas”.
   Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante o parto e após o parto. Mas havia a “obra das Mães” e fazia-se anualmente “o berço” nos liceus femininos onde se colocavam camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o mais premiado e os outros eram entregues a famílias pobres bem-comportadas (o que incluía, é óbvio, casamento pela Igreja).

Fila em Lisboa para a obtenção de senhas de racionamento (Verão de 1943). 
Foto Arquivo Fotográfico da CML. 


   Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico, vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo os aparelhos de fi sioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os pedidos dos administrativos (“Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para o meu fi lho”). As pessoas iam à “Caixa”, que dependia do regime de trabalho (ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em grandes massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas de cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E generalizadamente o vinho era barato e uma “boa zurrapa”.
   E todos por todo o lado pediam “um jeitinho”, “um empenhozinho”, “um padrinho”, “depois dou-lhe qualquer coisinha”, “olhe que no Natal não me esqueço de si” e procuravam “conhecer lá alguém”.
   Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras (e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham a quarta classe. Também na província não havia livrarias  (abençoadas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema. Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas. E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha; senhora (Maria); dona; senhora dona e… supremo desígnio – Madame.
   Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por “mangas-de-alpaca” porque usavam duas meias mangas com elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.
   Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa
bem com a outra. A pobreza generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África, seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China, seja na Birmânia, seja em Portugal.


(Artigo de Isabel do Carmo, Médica, Endocrinologista no jornal Público 28-11-2011)

Bairro das Minhocas ou do Bélgica, ao Rego em Lisboa em 1938. 
Foto do Arquivo Fotográfico da CML.