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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quando a Callas ajoelhou perante o público de Lisboa


Texto de

Vítor Pavão dos Santos

Jornal Se7e 

16 Dezembro 1981


«Considerada a maior soprano de todos os tempos, Maria Callas aterrou em Lisboa em Março de 1958 
para cantar a ópera La Traviata no Teatro Nacional de São Carlos. 1958. António Amado dos Santos.»
Foto encontrada em www.sabado.pt - Memórias do Aeroporto de Lisboa


 Coisas boas em jornais



Foi em Março de 1958. Como muitas vezes acontece, a Primavera chegara cedo. 
Como quase sempre acontece também, uma nuvem de aborrecimento envolvia Lisboa.

Quente demais para Março

Os divertimentos não eram muitos. O melhor ainda era ir dançar, na boite do Hotel Tivoli, ao som das músicas italianas então em moda. Pelos cinemas, o filme mais gozado era As lavadeiras de Portugal (Les lavandières du Portugal, 1958), «tourné au Portugal, en Avril», como diziam os anúncios. Nele, um par de agentes de publicidade (Jean-Claude Pascal e Annie Vernon), que queriam lançar uma máquina de lavar, vinham até cá para descobrir uma típica lavadeira, que acabava por ser a espanholíssima Paquita Rico, ex-virgem gitana, bebendo manzanilla e lavando roupa na Nazaré, enquanto Erico Braga puxava as redes e Carlos Ramos cantava o fado. Tudo isto bestialmente colorido.
E foi também nesse mês que apareceu  Sangue Toureiro,  o primeiro filme português às cores, com a Amália, muito mal fotografada, vivendo um amor impossível com Diamantino Viseu, e cantando mais um  hit  do Frederico Valério:  Amor, sou tuaDe notável, no teatro, só a engenhosa encenação com que Francisco Ribeiro deu vida nova, na Trindade, a uma peça de Júlio Dantas, muitos anos proibida pela censura: Um serão nas Laranjeiras.
E havia ainda as manifestações artísticas chics, como Liane Daydé e Michel Renault, «de l'Opéra de Paris», a dançarem no Tivoli. E, claro, decorria a sempre tão exclusiva temporada de ópera de S. Carlos. A quinta-feira à noite, com smoking obrigatório e ao domingo, na matinée mais democrática, o teatro iluminara-se, nesse mês de Março, para revelar a grande criação de Tito Gobbi, em Falstaff, de Verdi, a que se seguira a graça picante de Giulietta Simionato, em L'italiana in Algeri,  de Rossini.
O público era, como sempre, o mesmo. Uns iam para se verem aos outros. Alguns porque, além disso, também gostavam de ver ópera. Mas, uns e outros, todos aguardavam a grande sensação: a estreia, em Lisboa, a 27 de Março, de Maria Callas, em  La Traviata, de Giuseppe Verdi.

«Maria Callas e Alfredo Kraus, no palco de S. Carlos, numa cena do 1º acto da inesquecível La Traviata de 1958»
Foto copiada do jornal Se7e


«Vissi d'arte, vissi d'amore»

Era, por esses anos, Maria Callas uma das mulheres mais célebres do mundo. No entanto, embora o prestígio do seu talento fosse enorme, as primeiras páginas dos jornais preferiam ocupar-se dos seus «escândalos», dos seus «caprichos» de  prima donna, capaz de deixar a meio uma representação, mesmo que houvesse um presidente da República na assistência, como recentemente acontecera em Roma.
Esta onda de sensacionalismo mal deixava então compreender que esses «escândalos» e «caprichos» significavam um desmedido desejo de perfeição, uma intransigência artística que nunca pactuava com a mediocridade. Que, afinal, esses insultos ao público correspondiam a um respeito quase místico por esse mesmo público.
Sabia-se que a sua voz tinha possibilidades excepcionais, embora fosse uma voz difícil. Mas talvez não se soubesse que, devido a essa voz, muitas das obras do grande reportório lírico do século XIX tinham sido ressuscitadas, recuperadas para o público actual.
Sabia-se que fora gorda, como deviam ser as prima donnas, e se tornara depois elegantíssima, dizia-se que com prejuízo da sua voz. Mas sem, no entanto, se explicar claramente que fora assim que ela pudera fazer acreditar, ao moderno público, aquilo que vivia no palco, abordando as grandes personagens do passado como se acabassem de ser criadas, despojando-as de décadas de tradição deformadora.
Sabia-se, enfim, que a Callas arrastava multidões aos teatros, com a sua arte e os seus escândalos, mas raro se esclarecia que ela dava a essas multidões o máximo da sua arte e da sua vida, conquistando-as para o espectáculo da ópera, que encontrara decadente e abandonaria, depois de quase apenas dez anos de uma carreira de fulgor imcomparável, como algo vivo, cheio de novo entusiasmo e vibração.

 «Por Lisboa, passou Maria Callas, deixando um rasto da sua arte» In, Crónica Feminina, nº 73, 14-04-1958.
Fotos de conversamuitaconversa.blogspot.pt


Champanhe francês também para o coro

E um  dia  de  sol  de  fim  de Março,  Maria Callas  chegou  a Lisboa, instalando-se no único hotel chic da cidade, o Aviz Hotel, com uma bagagem numerosa, que incluía secretárias, o seu ainda marido e mentor, o comendador Meneghini, e um cão minúsculo, que nunca a largava.
Para os que farejavam o escândalo, mostrou-se simpática e distante, deixando-se fotografar em abundância, fazendo declarações de circunstância. Para alguns jovens entusiasmados, que a procuravam, era bem diferente: amável, acessível, muito interessada em conhecer o nosso meio musical.
Entretanto, S. Carlos limpara o pó àqueles sempre bafientos cenários que, durante décadas, Alfredo Furiga teve o monopólio de desenhar, decorando-os com certa riqueza para a grande noite.
Ao que constava, La Callas exigira um camarim digno, e a direcção do teatro mandou forrar de seda e decorar com gravuras aquele que passaria a ser o camarim da Prima Donna.
E que à Callas se ficou a dever. E quis também champanhe francês, no ensaio único e nas duas representações, o que deve ter estimulado todo o elenco, desde há muito escolhido, em que o jovem barítono italiano Mário Sereni interpretava o pai Germont, e onde se destacava, em estreia em Lisboa, um ainda mais jovem tenor espanhol, que havia de dar que falar, chamado Alfredo Kraus.
As duas récitas estavam esgotadíssimas. Na noite de quinta-feira, agarrei-me à telefonia e fui ouvindo a transmissão directa, feita pela Emissora Nacional. Como sempre acontecia quando a Callas cantava, as opiniões dividiram-se, Uns deliravam, outros detestavam. Indiferente é que ninguém ficava.

Maria Callas por Cecil Beaton. 1957.
Foto encontrada em mobiletest.moma.org


A maior actriz que já vi!

E chegou finalmente a matinée  de domingo. E eu, perigosamente debruçado de um camarote de 2ª ordem, perto do palco, ouvi impaciente a breve abertura de La Traviata, até o palco revelar a festa inicial. E entre a multidão dos convidados, surgiu Maria Callas, deslizante, fazendo esvoaçar um vestido de tule, cinzento-violeta, onde faiscavam alguns diamantes. Foi logo um deslumbramento. Alta, esguia, muito branca, de olhos electrizantes, com um nariz enorme, equilibrado por uma boca também enorme. Era uma figura magnífica, que se impunha, mal aparecia em cena. Embora a voz vibrasse estranhamente, o que mais me fascinou, e me acompanhou por toda a vida, foi o seu talento de actriz. A maior actriz que vi até hoje. Afirmo isto, sem medo de exagerar.
A interpretação, embora levada a extremos de pormenor, mantinha sempre uma linha, uma noção global. Falsamente alegre, mas fria e distante, ela mostrava-se subitamente impressionada pelo jovem Alfredo, que Alfredo Kraus, com a sua bela figura, a sua juventude de olhos incendiados, a sua voz quente, encarnava com rara perfeição.
O «brinde» foi magnífico, e depois, ao despedir-se dos convidados, a todos tratava de modo diferente: a uns lançava um sorriso vago, por vezes por cima do ombro, para outros, porém, era afável; a uns beijava na cara, a outros estendia a mão, quase sem os olhar. Tudo rápido, mas tudo muito marcado, e tão intensamente teatral e humano que a figura da grande dama do demi-monde, Violetta Valéry, se erguia logo no palco, para não mais se poder esquecer.

Um enorme arrepio final

Os aplausos cortavam constantemente a representação. No segundo acto, com um simples vestido de seda cinzento, só alegrado por um  pequeno ramo de malmequeres, o seu arrebatamento apaixonado transformava-se em indignação feroz, de olhar chispante, na cena com o pai Germont, para depois aceitar a resignação, com uma dignidade quase solene.
No terceiro acto, a aparição de Maria Callas era toda feita de um exagerado luxo premeditado, com um enorme vestido de veludo verde-garrafa, onde brilhavam arabescos de  starss.  Mas a vulgaridade da cortesã, mergulhada de novo no mundo da frivolidade, quebrava-se constantemente, mostrando-se a mulher vulnerável, presa a um juramento, depois humilhada, caída no chão, com o seu olhar a pairar, entre o assustado e o desafiador.
Mas todo este imenso caudal de emoções se concentrava no último acto. Arrastando um largo déshabillé flutuante, rosa-creme, com os longos cabelos vermelhos caídos, o seu rosto exprimia tal angústia, que doía de fixá-lo. Depois do grito dilacerante de É tardi!, ao terminar a leitura falada da carta de Germont, o Addio del passato era cantado num choro abafado, acompanhado de gestos muito lentos, como se o corpo, já sem vida, apenas fosse agitado por um vago vento. E, de súbito, com o anúncio da chegada de Alfredo, era possuída de uma agitação frenética, tentando levantar-se, para logo cair sem forças, observando-se num pequeno espelho de mão, que escondia, e voltava a erguer, interrogando- se, ao mirar-se.
Pela minúcia da representação, mais parecia assistir-se a um encadeado de grandes planos cinematográficos, que terminavam na morte, quando ainda ficava a pairar, no ar, aquela voz de espanto e de arrepio, que sublinhava a maior interpretação da Dama das Camélias per musica, a que alguma vez se terá assistido.

Maria Callas e Alfredo Kraus, La Traviata de Giuseppe Verdi.
"Parigi, o cara". Lisboa. 1958.

A «prima donna» ajoelhada

No final, a sala estava ao rubro. O delírio atingiu o inesperado, por muito que se esperasse. Durante cerca de dez minutos, pelo meio de um clamor que fazia estremecer S. Carlos, Maria Callas agradeceu, acompanhada pelos outros intérpretes e pelo maestro Franco Ghione. O conjunto ía e voltava, mas os gritos e aplausos não cessavam de aumentar. As flores choviam sobre o palco, e ela distribuía-as pelos acompanhantes.
Até que, por fim, apareceu sozinha. Muitas mais flores cairam então, enquanto os espectadores dos camarotes e do balcão corriam, em tumulto, até à plateia, para ficar mais perto dela. Maria Callas parecia atordoada, movimentava-se, esboçava sair, para logo voltar. Como não sabendo mais o que fazer para corresponder a um tão esmagador entusiasmo, ajoelhou-se perante o público, deixou cair os braços, curvou profundamente a cabeça, com a longa cabeleira vermelha sobre o peito, e permaneceu assim, estática, como vencida perante aquela torrente de admiração, durante largos minutos, numa atitude de beleza inesquecível. Mas essa grande exaltação estava longe do fim. Subia em vibração. E foi então que, satisfeita mas perturbada, Maria Callas começou  a apanhar lentamente  as flores que lhe tinham atirado, a beijá-las, uma a uma, e a atirá-Ias ao público, como que devolvendo os aplausos dessa audiência que demonstrava saber corresponder à sua arte com uma energia insuspeitada. 

Capa da edição americana de «La Traviata» da Callas, 
na «San Carlos Opera House», da etiqueta Angel. 
Foto copiada do Jornal Se7e

E  agora «La Traviata» de Lisboa

Passaram-se muitos anos, assisti a outras grandes performances,  a outros delírios, mas aquela tarde em que Maria Callas cantou La Traviata, em S. Carlos, permaneceu, para mim, inultrapassável.
Ouvi depois, vezes sem conta, a única gravação de La Traviata com Maria Callas, existente, feita, para a Cetra, em 1953. Mas nunca consegui recapturar o fascínio daquela tarde de Março de 1958. De facto, sempre se lamentou que Maria Callas não pudesse ter gravado La Traviata quando a sua interpretação atingira a maior altura, depois das célebres encenações que, para ela, fizeram Luchino Visconti, no AlIa Scala, em 1955, ou Franco Zeffirelli, na Ópera de Dallas, em 1958. E isso aconteceu devido ao contrato de exclusividade para esta ópera, feito, em 1953, com a Cetra.
E eis que, no ano passado, chego eu a Nova Iorque, e vejo, em todas as lojas de discos, como grande sensação, uma nova gravação Callas — Traviata,  a chamada La Traviata de Lisboa.  Nada mais, nada menos que uma gravação feita em S. Carlos, em 1958, e que, editada agora comercialmente, se transformou num enorme êxito discográfico, com edições em vários países, incluindo Espanha. Quando chegará até cá?
Voltei então a encontrar, entre aquela tosse típica do público lisboeta, e os gritos inesperados do ponto, a Callas, no seu máximo esplendor, vivendo e morrendo em música Mas há, no entanto, uma pequena parcela apenas do que vivi naquela tarde. Nessa gravação, só há uma coisa que me faz uma raiva danada, é que cortaram praticamente todos os aplausos.

Texto de Vítor Pavão  dos Santos
Jornal Se7e
16 Dezembro 1981



La Traviata em Lisboa em 1958 com Maria Callas (Violeta), ópera na qual participou Maria Cristina de Castro (Amina).

UMA PORTUGUESA NO ELENCO

«Com pouco mais de 20 anos, Cristina de Castro estuda canto com Elena Pellegrini. Estreou-se no S.Carlos em 1955, num dos “pagens” de “Tannhauser”, e no Coliseu dos Recreios canta pela primeira vez em Novembro desse ano, na ópera “Um Sonho de D. João V”, da autoria do Conde da Esperança. Presença constante nestes dois palcos, sobre ela escreveu Joly Braga Santos: “Não só a sua voz é linda e exemplarmente colocada, como revelou um talento histriónico excepcional”. Em 1958 integra o elenco da célebre “Traviata”, com Maria Callas e Alfredo Kraus, fazendo o papel de “Annina”. (Na foto, Cristina de Castro com Callas) Em 1960 participa num concurso internacional de canto, em Liverpool, classificando-se como a melhor cantora estrangeira. Três anos depois inicia a sua colaboração na Companhia Portuguesa de Ópera, do Trindade, cantando a “Rosina” do “Barbeiro de Sevilha”. A sua carreira prossegue até princípio dos anos 70, altura em que se torna professora do Conservatório Nacional. Quem se recorda das temporadas de S.Carlos e do Trindade nos anos 50 e 60, certamente não esquece Cristina de Castro.»
(Fonte: Mário Moreau, "Cantores de Ópera Portugueses", Vol.3) 
Foto e texto encontrados em tv.rtp.pt



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Passo a passo, Pasolini



«A arte é coisa mental, mas tem que se fazer

 com as nossas tripas e com o nosso sangue.»

Pier Paolo Pasolini



Pier Paolo Pasolini. Foto sem data encontrada em historica.com.br

Coisas boas em jornais

1922, 5 de Março — Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha. O pai, Carlo Pasolini, originário de uma antiga família de Ravena cujos bens dissipara, é tenente de infantaria. A mãe, Susanna Colussi, de origem friulana, é professora primária em Casarsa della Deizia.
«Em 1922, ano mergulhado no século, Bolonha respirava um ar de valsa.»  (Pasolini, `L'Usignolo della Chiesa Cattolica', Longanesi, Milão, 1958).
Em Outubro, os trinta mil «camisas negras» de Mussolini marcham sobre Roma.

1925 — Nasce o irmão de Pier Paolo, Guido Alberto, em Belluno. «Nesse tempo, eu ainda me dava bem com o meu pai. Era extraordinariamente caprichoso, isto é, presumivelmente, neurótico, mas bom. Para com a mãe, (...) encontrava-me no estado de alma que seria o de toda a minha vida, o de um amor desesperado.» (`Empirismo Herege', Assírio e Alvim, 1982).
Pier Paolo Pasolini e sua mãe Susanna. Anos 60.
Foto Mario Dondero em en.daringtodo.com
«Toda a minha vida foi influenciada pelas cenas que o meu pai fazia à minha mãe. Ele acusava-a de viver nas nuvens, o que não era verdade. O facto era que ele era fascista, e ela não.» (‘E tu chi eri — Interviews d'enfance, Dacia Maraini, Bompiani, Milão, 1973).
Durante a infância e os primeiros anos da adolescência, Pier Paolo é transplantado de cidade em cidade, devido à carreira militar do pai.

1929 — Pier Paolo escreve os seus primeiros poemas em Sacile, onde termina a escola primária.
«Misteriosamente, um belo dia, a minha mãe mostrou-me um soneto escrito por ela no qual exprimia o seu amor por mim (...) Alguns dias mais tarde, escrevi os meus primeiros versos, os quais falavam de rouxinol' e de `folhagem'.»

1935/40 — Novas deslocações: Cremona, Reggio Emilia. Longa estadia em Bolonha, estudos secundários (Liceu Galvani) e universitários (licenciatura em Letras). Prepara uma tese sobre o poeta Pascoli. Toma consciência do conformismo fascista e participa nos primeiros cineclubes. Começa a desenhar com uma regularidade que nunca o abandonará, até aos últimos retratos da Callas e dos seus amigos romanos.
«Tudo o que eu descobria e amava era posto sob silêncio ou banido sem a menor cerimónia pelos fascistas: Rimbaud, os poetas simbolistas, herméticos, os grandes autores de teatro (...) O meu antifascismo de adolescente era mais cultural do que politico.» (‘As últimas palavras do herege', entrevistas com Jean Duflot, Brasilense, 1983).

1942 — A família refugia-se em Casarsa, enquanto o pai se encontra prisioneiro de guerra no Quénia. E é ao pai que Pasolini dedica o livro de poemas que, a expensas próprias, publica nesse ano: `Poesia e Casarsa' (escrito em dialecto friulano). O livro é recenseado no Corriere de Lugarno, por Gianfranco Contini.


Pier Paolo Pasolini e seu pai, Carlo Alberto, em Florença nos anos 30. Foto de www.presseaporter.com

1943 — Pier Paolo cumpre o serviço militar em Livorno. A 8 de Setembro, dia do Armistício, recusa entregar-se aos alemães e foge para Casarsa.
«Troquei Pisa por Casarsa, em farrapos, com dois sapatos diferentes, depois de ter desobedecido aos oficiais que me haviam dado ordens para entregar as armas aos alemães. Depois de ter percorrido uma centena de quilómetros a pé e de me ter arriscado mais de cem vezes a encontrar-me num comboio com destino à Alemanha... recomecei logo a escrever versos em friulano e Italiano (...). Mas isso não me impediu de ir escrever `Viva a liberdade' nas paredes, e de acabar, pela primeira vez na minha vida, na prisão, experimentando, assim, o que são os homens da Ordem.» (citado em `Pasolini', seminário dirigido por Maria Antonietta Macciochi, Bernard Grasset, Paris, 1980).

1945 — O seu irmão Guido, resistente da brigada 'Osoppo', é ferido, perseguido e executado sumariamente por resistentes jugoslavos. O tema da `morte do jovem' atravessa doridamente toda a obra de Pasolini.
«(...)  ele era o melhor de todos nós. Era tão bom, tão generoso, que quis dar-me a prova disso, sacrificando-se pelo seu irmão mais velho, que talvez amasse demasiado, em quem talvez acreditasse demasiado. (...) Lancei-o no antifascismo mais ardente, com a paixão dos catecúmenos, porque, também eu jovem, descobrira, apenas dois anos antes, que o mundo no qual eu nascera sem nenhuma perspectiva era um mundo ridículo, absurdo... e, então, eu não tinha ainda lido Marx e era liberal, com uma preferência pelo partido de acção. Penso que nenhum comunista poderá condenar a acção do guerrilheiro Guido Pasolini...» (Vie Nuove, 1961).
Envelhecido, o pai regressa a Casarsa. Tor-minada a sua tese de licenciatura, Pasolini lecciona, entre 1945 e 1949, em Valvasone, na região de Casarsa. A  18  de Fevereiro de 1945 funda, com um grupo de jovens universitários friulanos, a Academia de Língua Friulana, que edita cadernos de pesquisa filológica e poética — os 'Stroligut de ca' da l'aga'  (O  Feiticeiro deste lado da água). Era o início da luta contra a homogenização linguística desencadeada pelo fascismo e acirrada pela civilização tecnológica (o consumismo que Pasolini considerará o «novo fascismo»).
Entre 1943 e 1949, escreve os poemas que publicará em 1958 sob o título 'L'usignolo della Chiesa Cattolica' (O rouxinol da Igreja Católica).


Pier Paolo Pasolini - Homem de Letras. Primeira parte de um documentário que pode encontrar no youtube na totalidade. Carregado por europecinema em 03/01/2008.


1947 — Inscreve-se no Partido Comunista Italiano, onde se torna secretário da secção de Casarsa — mas esta militância consignada não durará mais do que um ano.
«(...)  fiz como um certo número de camaradas, não renovei a minha carteira depois da expiração. A orientação cada vez mais estalinista de Togliatti, essa mistura de autoritarismo e de paternalismo sufocante, não me parecia favorável ao desabrochar das grandes esperanças do pós-guerra. (...) Simultaneamente, nestes anos 48-49, eu descobria Gramsci (...) A ressonância da obra de Gramsci em mim foi decisiva (‘As últimas palavras de um herege').
«Marx não tomou em consideração o irracional. Digo Marx para dizer o marxismo.» ('Ulisse', Setembro, 1960.)
Todavia, falará sempre do PCI como «um país limpo dentro do país».

1949 — Pasolini é acusado de ter tido «relações carnais com alguns dos seus alunos». A denúncia parte de um padre a quem Pier Paolo se confessara, que rompe o segredo da confissão. Durante os restantes vinte e seis anos da sua vida ser-lhe-ão movidos mais de trinta processos por homossexualidade. O Partido expulsa-o «por indignidade moral do poeta Pier Paolo Pasolini».
Foge para Roma com a mãe; instalaram-se inicialmente na Piazza Costaguti, no pórtico de Ottavia, e depois nos Borgate, em Ponte Mammolo, perto da prisão de Rebilobia (lugares recorrentes da escrita pasoliniana).
«Estou sem trabalho, reduzido à mendicidade. Muito simplesmente porque sou comunista. Não me espanta a diabólica perfídia democrata-cristã; espanta-me a vossa desumanidade. Tu sabes bem que falar de desvio ideológico é uma imbecilidade. Apesar de vocês, eu permaneço e permanecerei comunista, no mais autêntico sentido do termo. Qualquer outro, no meu lugar, se suicidaria, mas, infelizmente, devo viver pela minha mãe.» (Carta a Francesco Mautino, da Federação Comunista.)
Finalmente, consegue um posto de professor em Cianpino, com 27 mil liras por mês; mais tarde, graças a Giorgio Bassani, começará a trabalhar em argumentos para cinema. A mãe trabalha como mulher-a-dias. O pai reunira-se-lhes entretanto, e mudam-se os três para a Via Fonteiana.

1952 — Publica `Poesia Dialectal do Século XX' (em colaboração com Mario dell'Arco).

1954 — Publica `La Meglio Giuventu' (A Melhor Juventude), recolha das suas poesias friulanas. Publica um diário poético: `Dal Diario'. Trabalha, pela primeira vez, como argumentista, no filme de Mario Soldati 'La Donna del Fiume' (A mulher do rio). «Eu literalmente morria de fome.» (`As últimas palavras de um hereje'.)


Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, perto de Roma durante as filmagens do primeiro filme de Pasolini "Accattone". Foto de 1961, de Marina Cicogna encontrada em www.livincool.com

1955 — Colabora na revista «Officina», que, apesar da sua curta vida, ficará como testemunho importante de alguns intelectuais italianos face ao automatismo e conformismo dominantes. Publica `Ragazzi di Vita', transposição romanesca da sua experiência nas  borgate,  primeiro grande êxito literário, primeiro processo por «obscenidade». Publica um 'Canzonieri Italiano' (Cancioneiro italiano) e uma `Antologia della Poesia Popolare'.

1956 — Colabora no argumento de `As Noites de Cabiria’, de Frederico Fellini. Até 1973, trabalhará em numerosos argumentos (cerca de doze) com Bolognini, Rossi, Fellini, Bertolucci - entre outros.

1957 — Publica 'Le Ceneri di Gramsci' (As Cinzas de Gramsci), que recebe o Prémio de Poesia de Viareggio e o consagra face à crítica.
Morte do pai. «Não queria tratar-se, em nome da sua vida retórica. Não nos dava ouvidos, nem à minha mãe nem a mim, porque nos desprezava. Uma noite voltei a casa apenas a tempo de o ver morrer.»

1958 — Publica «L'Usignolo della Chiesa Cattolica» (O Rouxinol da Igreja Católica), (poemas).

1959 — Publica «Una Vita Violenta» (Uma Vida Violenta), romance que é traduzido em onze países e sucessivamente reeditado em Itália — e também processado.


Pasolini com Anna Magnani e Ettore Garofolo durante a rodagem de "Mamma Roma" (1962). Foto de burusi.wordpress.com

1960 — Publica «Roma 50, Diário»; «Sonetto Primaverille»; «Passione e Ideologia»; «Poesia Popolare Italiana». Realiza a sua primeira longa-metragem, «Accatone», com a qual se inicia também o rosário dos processos cinematográficos...
«A primeira imagem — lembrança que tenho do cinematógrafo é um cartaz. Eu devia ter quatro ou cinco anos: a-imagem de um tigre solto, devorando um homem, do qual o mínimo que posso dizer é que parecia sofrer maravilhosamente (...) Comecei a rodar o meu primeiro filme com quarenta anos, sem mesmo saber que existiam objectivas diferentes, ou o que era exactamente uma panorâmica...
(...) Fui portanto obrigado a inventar uma técnica, que só podia ser a mais simples, a mais elementar possível. Estilisticamente, a simplicidade transmutou-se em severidade, o elementar tornou-se absoluto. (...) A complexidade torna comum, a simplicidade diversifica. («As últimas palavras de um herege»).

1961 — Publica «La Religione del Mio Tempo», compilação dos artigos e poemas publicados em Officina. Publica o «Manifesto per un Nuovo Teatro». Realiza «Mamma Roma».
«`Mamma Roma' é a obra onde, pela primeira vez na vida, eu me repeti. Repeti-me, e cometi esse erro, por ingenuidade. Na vida é preciso ser ingénuo, mas sê-lo no domínio da estética é um erro.» («As últimas palavras de um herege»).

1963 — Realiza «La Ricotta», que será apreendido, e «La Rabbia».


Pier Paolo Pasolini dirigindo Orson Welles em "La Ricotta" (1963). Foto de centotto.com

1964 — Realiza «II Vangelo secondo Matteo» (O Evangelho Segundo São Mateus), que recebe o Grande Prémio da União Internacional da Crítica e o da Organização Católica do Cinema. Publica «Poesie in Forma di  Rosa»,

1965 - Publica «Ali dagli Occhi Azzurri».

1966 — Realiza «Uccellacci e Uccellini» (Passarinhos e Passarões).
«O filme de que mais gosto é «Passarinhos e Passarões». Creio tê-lo feito com o máximo de pureza, com uma pureza toda franciscana! Ele não me rendeu absolutamente nada, aliás. Posso mesmo dizer que perdi dinheiro com ele. E um filme bastante pobre, que não custou grande coisa. Emociona-me muito.» («As últimas palavras de um herege»).

1967 — Realiza «Edipo Rei».

1968 — Realiza «Teorema», que será processado e apreendido.
«Assim que os jovens contestatários abandonam a cultura para optar pela acção e pelo utilitarismo, resignam-se à situação na qual o sistema trabalha para os inserir.» («As últimas palavras de um herege»).

1969— Realiza «Porcile» (Pocilga).

1970 — Realiza «Medeia».


Pasolini com Maria Callas durante as filmagens de "Medeia" (1969). Foto de www.presseaporter.com

1971 — Publica «Trasumanar e Organizzar» (Transumanar e Organizar).
«Quero dizer por isso que a outra face da transumanação (a palavra é de Dante, sob esta forma apocopada) ou da ascese espiritual, é precisamente a organização.»
Inicia o ciclo da «Trilogia da Vida» com o «Decameron», (segundo Boccacio).
«São filmes bastante fáceis e eu fi-los para opor à sociedade de consumo actual um passado bem recente em que o corpo humano e as relações humanas eram ainda reais, ainda que arcaicas, ainda que pré-históricas (...) Mas estes filmes acabaram por ser, eles próprios, ultrapassados tornados velhos pela tolerância da sociedade de consumo. (...) Foi por isso que abjurei a `Trilogia da Vida', que era uma nova fase, digamos, de carácter popular, simples.» (Citado em «Pasolini», seminário, já referido).

1972 — Publica «Empirismo Erético», reflexão semiológica acerca do cinema e da literatura, iluminada por Saussure, Bar-thes, Metz (tradução portuguesa: «Empirismo Herege», Assírio e Alvim, 1982),
Realiza o segundo filme da «Trilogia da Vida», «I Racconti di Canterbury» (Os Contos de Canterbury), de novo processado e apreendido.

1973 — Em Calderon, experimenta a sua concepção do teatro da palavra. Publica «II Mestiere di Scrittore» (A profissão do escritor).  


Rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Foto de www.cinemista.com.br

1974 — Último filme da Trilogia: «II Fiore Delle 1001 Notte» («As Mil e Uma Noites»), que sofre, como se esperava, perseguições várias.
Realiza «Saló o le 120 Giornatte di Sodoma» (Saló ou os 120 dias de Sodoma), que será objecto de processo e apreensão após a morte de Pasolini.
«Não sei muito bem porque fiz este filme. Espero compreender porque o fiz dentro de alguns meses ou anos. O sexo aparece ainda aqui mas em vez de ser utilizado, como na `Trilogia da Vida', como algo de feliz, belo e perdido, é utilizado como qualquer coisa de terrível, tornou-se a metáfora do que Marx chama a comercialização do corpo, a alienação do corpo. O que Hitler fez brutalmente, matando, destruindo os corpos, a sociedade de consumo fê-lo no plano cultural; na realidade, é a mesma coisa. (Citado em «Pasolini», Seminário, op. cit.)
Entre 1970-1975, Pasolini intensifica as suas intervenções em «scritti» dispersos por vários jornais. Estas prosas são publicadas em volume sob o título «Scritti Corsari» (Escritos Corsários ou «Escritos Póstumos», em tradução portuguesa, Moraes).

1975 — 2 de Novembro — Pier Paolo Pasolini aparece de madrugada assassinado numa praia entre Ostia e Fiumicino, contra um fundo de barracas e destroços. Presumível, assassino: um «ragazzo di vita» de nome Pelosi.
«Os cabelos escorrendo sangue, o rosto inchado de nódoas negras e hematomas, a maxila esquerda fracturada, o nariz metido para dentro, as orelhas parcialmente arrancadas, uma ferida horrível entre a nuca e o pescoço que sangrava ainda, os dedos cobertos de nódoas negras e contusões, dez costelas fracturadas, tal como o externo. Também se observava um rasgão largo e profundo nos testículos, o fígado encontrava-se dividido em dois, o coração rebentado.»


Rodagem de Decameron (1971). 1971. Foto de Mario Tursi em pasolinipuntonet.blogspot.pt

1975 — Publicação em Portugal de dois romances (inéditos à data da morte) do tempo de adolescência «Amado Mio» e «Atti Impuri». («Amado Mio» e «Actos Impuros», ed. dupla Difel.)

Sobre «Atti Impuri»: «'Atti Impuri', até pela sua forma abertamente de diário, é uma comovida descida aos infernos de um eu assolado por contradições profundas, para trazer á superfície o verde paraíso dos anos passados no Friuli.» (Carlo Vittorio Cattaneo, «Expresso», 2/7/85).

Sobre «Amado Mio»: «Tudo se passa numa atmosfera alternadamente fresca (os banhos no rio ou no canal, que constituem um dos mais belos lugares recorrentes na prosa de Pasolini) e abafada (o suor sobre os corpos, uma pressentida promiscuidade que remete para o universo adolescente da indiferenciação das sensações) em campos que se estendem a perder de vista, entre tons violáceos e `o fumo acre e fabuloso do lume matinal'.» (António Mega Ferreira, «Jornal de Letras», 2/4/85).

Cronologia estabelecida por Inês Pedrosa no Jornal de Letras de 1 de Outubro 1985.


Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975)
 Foto de www.pasolini.net




segunda-feira, 16 de abril de 2012

Estrelas de Cinema 3


Foto absolutamente fabulosa, que pode ter duas interpretações: Lauren Bacall está a dar o copo a Judy Garland como quem diz "bebe até te fartares", ou está a retirar o copo e talvez a dizer "não bebes mais nada hoje". Repare-se na cara escandalizada que Judy Garland faz e na cara impassível de Lauren Bacall. O homem de pé era Jack L. Warner dono da Warner e o local era em Los Angeles, em uma festa de estréia do filme Assim Nasce Uma Estrela (A Star Is Born, 1954) de George Cukor, foto de Allan Grant, 1954.


Marilyn Monroe na sua casa em Hollywood, foto de Alfred Eisenstaedt, 1953. / Dorothy Dandridge posando para o filme Tarzan em Perigo (Tarzan's Peril, 1951) de Byron Haskin, foto de Ed Clark, 1951.


Bette Davis tomando um banho de sol bem blindado no quintal de sua casa em Beverly Hills, foto de Alfred Eisenstaedt, 1939. / Gene Tierney num intervalo das filmagens do filme Aconteceu em Xangai (The Shanghai Gesture, 1941) de Josef von Sternberg, foto de Peter Stackpole, 1941.


Sophia Loren no quarto de seu apartamento em Roma, foto de Loomis Dean, 1957. / Gina Lollobrigida alimentando a "Bambi" no Canada, foto de Peter Stackpole, 1960.


Maria Callas de lunetas, durante as filmagens na Turquia do filme Medeia (Medea, 1969) de Pier Paolo Pasolini, foto de Pierre Boulat, 1969. / Julie Andrews descansando durante as filmagens de The Broadway of Lerner and Loewe (1962) de Norman Jewison, foto de Leonard Mccombe, 1961.


Carmen Miranda assistindo a uma partida de xadrez em Hollywood, foto de Walter Sanders, 1945.


Sonia Braga, muito depois da Gabriela, com 48 anos, na estréia do filme Romance Perigoso (Out of Sight, 1998) de Steven Soderbergh, foto de Marion Curtis, 1998.



(fotos LIFE Archive)