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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Xico Buark

por
Clarice Lispector

No fim dos anos sessenta já escritora consagrada, admirada e respeitada, Clarice Lispector foi convidada a fazer entrevistas. Entre maio de 1968 e outubro de 1969, publicou regularmente na revista Manchete, na seção "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector". Entrevistou famosos do universo cultural (pintores, escultores, romancistas, músicos, atores...).


«Esta grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antônio’s. Gostei como quando brincava com palavras de crianças. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e lê vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso.

Ele não é de modo algum um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e sempre jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de Holanda seria da raça montanhesa dos garotos.

Marcamos encontro às quatro horas porque às cinco Chico tinha uma lição de música com Vilma Graça. Há um ano está estudando teoria musical e agora começará com o piano. Estávamos os dois na minha casa e a conversa transcorreu sem desentendimentos, com uma paz de quem enfim volta da rua.»

 Clarice Lispector e Chico Buarque.
Fotos encontradas em ieccmemorias.wordpress.com e tinho-blogtinho.blogspot.pt


Clarice Lispector: Você viveu ainda tão pouco que talvez seja prematuro perguntar-lhe se você teve algum momento decisivo na vida e qual foi?

Chico Buarque de Hollanda: Eu sou ruim para responder. Na verdade tive muitos momentos decisivos, mas creio que ainda sou moço demais para saber se eram de fato decisivos esses momentos. No final de contas não sei se eles contaram ou não.

CL: Tenho a impressão que você nasceu com a estrela na testa: tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Estou certa se para você não é muito laborioso criar?

CBH: E não é. Porque às vezes estou procurando criar alguma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso – e nada. Em geral eu canso e desisto. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo. E como é seu trabalho?

CL: Vem às vezes em nebulosa sem que eu possa caracterizá-lo de algum modo. Também como você, passo dias ou até anos, meu Deus, esperando. E, quando chega, já vem em forma de inspiração. Eu só trabalho em forma de inspiração.

CBH: Até aí eu entendo, Clarice. Mas a mim, quando a música ou a letra vem, parece muito mais fácil de concretizar porque é uma coisa pequena. Tenho impressão de que se me desse idéia de construir uma sinfonia ou um romance, a coisa ia se despedaçar antes de estar completa.

CL: Mas Chico, aí é que entra o sofrimento do artista: despedaça-se tudo e a gente pensa que a inspiração que passou nunca mais há de vir.

CBH: Se você tem uma idéia para um romance, você sempre pode reduzi-lo a um conto?

CL: Não é bem assim, mas, se eu falar mais, a entrevistada fica sendo eu. Você, apesar de rapaz que veio de uma grande cidade e de uma família erudita, dá a impressão que se deslumbrou, deslumbrando os outros com sua fala particular. O que quero dizer é que você, ao ter crescido e adquirido maior maturidade, deslumbrou-se com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão. Que é que você acha: já se habituou ao sucesso.

CBH: Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo. Só que por os pés no chão no sentido prático me atrapalha um pouco. Tenho, por exemplo, uma pessoa que me explica um contrato e não consigo prestar atenção em certas coisas. O sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem nada para mim. A gente tem a vaidade da gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento com que a gente procura buscar e achar. Hoje, por exemplo, acordei com um sentimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.

CL: Eu também me sinto perdida depois que acabo um trabalho mais sério.

CBH: Tenho uma inveja: meu trabalho de música está exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho o direito de ficar pensando numa idéia muito tempo.

CL: Talvez você ainda mude. Como é que Villa-Lobos criava? Seria interessante para você saber.

CBH: Sei alguma coisa. Por exemplo, uma frase dele que Tom Jobim me contou: diz que Villa-Lobos estava um dia trabalhando na casa dele e havia uma balbúrdia danada em volta. Então o tom perguntou: como é, maestro, isso não atrapalha? Ele respondeu: o ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro. É isso que invejo nele. Gostaria muito de não ter prazo para entrega das músicas, e não fazer sucesso: você gostaria, por exemplo, de sair para a rua e começar a dar autógrafo no meio da rua mesmo?

CL: Detestaria, Chico. Eu não tenho, nem de longe, o sucesso que você tem, mas mesmo o pequeno que eu tenho às vezes me perturba o ouvido interno.

CBH: Então estamos quites

CL: Todas as mães com filhas em idade de casar consentiriam que casassem com você. De onde vem esse ar de bom rapaz? Acho, pessoalmente, que vem da bondade misturada com bom-humor, melancolia e honestidade. Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo, ou está de olhos abertos para os charlatões?

CBH: Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso.

CL: O que é que você sentiu quando o maestro Karabtchevsky dirigiu “A Banda” no Teatro Municipal?

CBH: Claro que gostei, mas o que me interessa mesmo é criar. A intenção de Karabtchevsky foi das melhores, inclusive corajosa. Eu quero ver ainda a coisa se repetir com outros compositores populares.


CL: Você foi precoce em outras manifestações da vida? Fale sem modéstia.

CBH: Não, tudo que fiz como garoto é de algum modo ligado com o que eu faço hoje, isto é, versinhos.

CL: Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você não se sentir vigiado, esperarei na copa até você me chamar.


Chico Buarque no ensaio da peça "Roda Viva" em 1968 
e Chico Buarque na Passeata dos Cem Mil (1968).
 Fotos encontradas em topicos.estadao.com.br 
e www.jornalismoeducativo.com.br


Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele me chamar e ambos lemos sorrindo:

Como Clarice pedisse
Um versinho que eu não disse
Me dei mal
Ficou lá dentro esperando
Mas deixou seu olho olhando
Com cara de Juízo Final.

CL: A banda lembra música de nossos avós cantarem: tem um ar saudoso e gostoso de se abrir um livro grosso e encontrar dentro uma flor seca guardada exatamente para durar. De onde você tirou essa modinha tão brasileira? Qual a fonte de inspiração?

CBH: Não sei não, é uma coisa difícil de conscientizar. Lembro da banda mesmo não tendo vivido no interior, mas atrás da minha casa tinha um terreno baldio onde às vezes havia circo, parque de diversões, essas coisas.

CL: Vi você na primeira passeata pela liberdade dos estudantes. Que é que você pensa dos estudantes do mundo e do Brasil em particular?

CBH: No mundo é para mim difícil falar, mas aqui no Brasil eu sinto em todos os setores um apodrecimento e a impossibilidade de substituição senão por mentalidade completamente jovens e ainda inatingidas por essa podridão. Aqui no Brasil só vejo esta liderança. Um rapaz do “New York Times” entrevistou-me e perguntou: está bem, vocês não querem censura nem repressão nem os métodos arcaicos de educação: mas se vocês ganharem, quem vai substituir as autoridades? Por incrível que pareça, o mundo político está envolvido por essa decadência e acomodação. E você? Eu também te vi na passeata.

CL: Fui pelos mesmos motivos que você. Mudando de assunto, Chico, você já experimentou sentir-se em solidão? Ou sua vida tem sido sempre esse brilho tão justificado? Chico, um conselho para você: fique de vez em quando sozinho, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa.

CBH: Também acho e sempre que posso faço a minha retirada.

CL: Na música chamada clássica, apesar dela englobar compositores aos quais o classicismo não poderia ser aplicado, nessa música o que você prefere?

CBH: Aí não é questão de preferência, é costume para mim. Tenho sempre à mão um Beethoven.

CL: Sua família preferia que você seguisse a vocação de outros talentos seus que em aparência, pelo menos, são mais asseguradores de um futuro estável?

CBH: No começo sim. Logo que entrei para a arquitetura, quando comecei a trocar a régua “T” pelo violão, a coisa parecia vagabundagem. Agora (sorri) acho que já se conformaram.

CL: Você está compondo agora alguma coisa e com letra sua mesma? Sua letra é linda.

CBH: Estou na fase de procura. Ontem acabei um trabalho que era só de música, que exigia prazo. Para uma canção nova, eu estou sempre disponível.

CL: No domínio da música popular, quem seria por sua vez o seu ídolo?

CBH: Muitos, e é por isso que é difícil citar.

CL: Seu pai é um grande pai. Quem mais na sua família eu chamaria de grande, se conhecesse?

CBH: Minha mãe, apesar de ter um metro e cinqüenta e poucos de altura. Eu li muito e papai sempre me estimulava nesse sentido.

CL: Qual é a coisa mais importante do mundo?

CBH: Trabalho e amor.

CL: Qual é a coisa mais importante para você, como indivíduo?

CBH: A liberdade para trabalhar e amar.

CL: O que é o amor?

CBH: Não sei definir, e você?

CL: Nem eu.

Clarice Lispector. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, pp.99-104.
Entrevista encontrada em cafemargoso.blogspot.pt

Em 1968, contracultura, música e artes em alta, revoluções acontecendo no mundo todo, e uma luta contra a ditadura, mesmo sabendo do final, gostaria de estar lá. Carlos Scliar, Oscar Niemeyer, Clarisse Lispector, Glauber Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento, na passeata contra a ditadura em 1968. texto e foto de click-click-pose.blogspot.pt




quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr Fernandes (1923-2012)

Millôr Fernandes fez de tudo: foi jornalista, escritor, dramaturgo, tradutor, cartoonista. Mas era, antes de mais, um humorista, que marcou a Cultura brasileira do último século. Morreu de falência multiorgânica, nesta terça-feira, no Rio de Janeiro, após quatro meses de internamento. Millôr tinha 88 anos. 
(In, www.publico.pt)


Cartoons de Millôr Fernandes




Jus sperneandi

(Uma crónica de 1998 do humorista, cartoonista e outros istas 
brasileiro Millôr Fernandes. Encontrada em home.dbio.uevora.pt)

Um juiz de qualquer lugar do país, e nosso país é grande, pode proibir o que bem entender em qualquer parte do país, e não tem que dar explicações a ninguém. Como Deus. Não adianta chiar. Agora um juiz lá dos pampas, estado que, por sinal, acabou de realizar bela eleição — resolveu que ninguém pode mais fumar nos céus do Brasil, e mesmo em céus fora do Brasil. Voou — em supersónico, subsônico, avião particular, de passageiro, de carga, asa delta, cai na Lei lntragável. Se as otoridades descobrirem um cigarro queimando acima da cabeça dos cá de baixo, cadeia pra todo mundo, multa pra companhia, decapitação pro comandante.

Tudo começou com a proibição de fumar em cinema — razoável porque o ambiente é fechado e há perigo de incêndio. Tentaram proibir nos restaurantes — não colou. Então estabeleceram-se setores fumantes-não fumantes, como na Sala Oval, do Clinton. Depois de proibirem o fumo nos motéis — dá brochura — os legisladores subiram aos aviões, primeiro proibindo por zona, depois ordenando proibição total em "pequenos" trajetos. E agora sua Altíssima Reverendissima não sei lá de onde proibiu todo mundo de fumar em qualquer lugar e de qualquer maneira quando estiver com os dois pés acima do solo. A explicação é que os fumantes ativos — heterotabagistas — estão provocando tosses, doenças e mortes entre os passivos — homotabagistas.

Promulgada a lei, logo aparecem falsos médicos — com magníficos diplomas — falsas tabacologistas com caras de não fui fumada e não gostei — cheios de estatísticas: está provado que 35% das pessoas que voam a Paris morrem de sufocação linguística, 3% por cento dos que frequentam a ponte-aérea morrem de ópera seca, 2% das mulheres que viajam mais de uma vez por ano em aviões internacionais têm filhos anormais, ou normais mas bichas — se é que pode. Em suma, quem viaja de avião não precisa mais ter medo de tempestade, falha no motor, piloto bêbado ou peças compradas sem licitação — tem que ter medo do fumante que está ao seu lado ou mesmo pitando agachadinho lá atrásó no último banco. Quer dizer, num país desgovernado, existe um juizado só pra proteger cidadãos fumantes passivos de cidadãos tarados ativos. Por que o meritíssimo não faz uma lei tornando ilegal o seqüestro, no qual todas as vitimas são passivas? Já existe? Ah! Porque não prende imediatamente o Naya, o Roriz e o vice do ltamar? Ou pelo menos o Maluf, que agora está sem poder e já é meio de esquerda?

Querem estatística? Faço uma à minuta, sem consultar ninguém. Quem voa no Brasil não chega a l % da população (será que 1.500.000 pessoas voam no Brasil?). A média de vôo de cada pessoa, mesmo contando pontes-aéreas, não passa de 24 horas por ano. Assim, mesmo que o cidadão tenha a infelicidade de viajar metade do tempo ao lado de um tabagista da pesada, e que este tabagista fume metade do tempo, o passivo será submetido apenas a 6 horas de fumo passivo por ano. Ou meia hora por mês. Ou um minuto por dia.

Um cara que vai morrer por causa disso não merece viver.

Repito sempre: não fumo. Sou apenas visceralmente antifascista.

E não estou brincando. Reajam enquanto é tempo.


Algumas frases de Millôr Fernandes

"De todas as taras sexuais, a pior de todas é a abstinência"
(Millôr Fernandes)

"Não, o Brasil não é o único país corrupto do mundo. Mas a nossa corrupção é a mais gratificante".
(Millôr Fernandes)

"Você pode evitar descendentes. Mas não há nenhuma pílula para evitar certos antepassados"
(Millôr Fernandes)

"O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade."
(Millôr Fernandes)

"Se todos os homens recebessem exatamente o que merecem, ia sobrar muito dinheiro no mundo."
(Millôr Fernandes)

"O século XX nos deu o cinema, o telefone, o automóvel, o avião, a penicilina, a asa-delta, o computador, tanta coisa maravilhosa. Mas a maior invenção de todos os tempos é do século XXI, o Google. A cultura prêt-a-porter".
(Millôr Fernandes)


(textos e cartoons encontrados á solta na net)