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terça-feira, 12 de março de 2013

Silvana Mangano - A Vénus dos arrozais



Silva Mangano em Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949) de Giuseppe De Santis.
Foto de theredlist.fr


Coisas boas em jornais


A Vénus dos arrozais que a Censura proibiu
Texto de Vítor Pavão dos Santos 
Jornal Se7e
21-02-80



"Tudo hoje quer cinema italiano
P'ra ver de perto as pernas da Mangano
Dantes a Rita é que era o chamariz
Hoje a Silvana é que dá que falar
E então nas ruas andam velhos
Andam novos, andam ginjas
Anda tudo a perguntar
Mas onde é que está o gato?
Sei lá! Sei lá!
Mas onde e que está o gato?
Sei lá! Sei  lá!"

Era assim que a revista, comentadora infalível da vida portuguesa, pela voz da grande Hermínia Silva, assinalava, em 1953, em Lisboa antiga, a loucura que então provocava o cinema Italiano e as suas vedetas. Tudo começara, quando, em 1951, Silvana Mangano surgira desafiadora, no écran do Tivoli, camisola colada ao peito farto, calções molhados e pernas nuas, mergulhadas, até ao joelho, nos arrozais, em Arroz Amargo (Riso amaro, 48), desencadeando o desejo do «bom» Raf Vallone e do «cínico» Vittorio Gassmann, tão próxima, tão verdadeira, logo conquistando o espectador lisboeta, derrubando as imagens technicoloridas das pin ups sofisticadas, como Rita Hayworth ou Betty Grable. Mas não seria por muito tempo que o público poderia gozar da beleza de Silvana, já que a vigilante censura salazarista, também visivelmente perturbada, mandou retirar o filme de exibição, 14 dias após a estreia, alegando, entre outras idiotices, abundância de «mulheres em roupagens sumárias». E lá se foi a Silvana mondadeira (...). O escândalo do filme não era facto inédito, pois nos Estados Unidos também a legion of decency condenara Bitter Rice. Só que lá, o caso até serviu de publicidade ao filme, que rendeu a considerável soma de seis milhões de dólares. Mas por cá, tudo era bem diferente — tirava-se a fita de circulação e não se davam mais satisfações. 

Silvana Mangano e Dino De Laurentiis com as filhas em Monte Carlo. 1966. Carlo Bavagnoli.


Porém, o que a censura não podia impedir era que a imagem avassaladora da belíssima Silvana ganhasse o prestigio do fruto proibido. E o público, que esperava ansioso noticias dela, lá a conseguiu ver, em 1952, moldada pela combinação preta, indispensável acessório das vamps neo-realistas, em O Lobo da Calábria (Il lupo della Sila, 49), disputada mortalmente por Amadeo Nazzari e Jacques Sernas. E não ficou desiludido. Porém, o sucesso louco, que fez Lisboa andar com a cabeça à roda e esgotar semanas e semanas o Império, foi Anna (Anna, 51), onde La Mangano, com aquele seu ar indiferente e um tanto enjoado, ora era desvelada freira-enfermeira, ora, de quando em quando, recordava o seu passado de provocante cantora de cabaret fumarento, mais uma vez dividida entre o «bom» fazendeiro Raf Vallone e o «cínico» barman Vittorio Gassmann. Dolente, em estudadas poses coleantes, Silvana cantava, com a voz emprestada por uma qualquer cantora ignorada, uma melodia melancólica, T'ho voluto bene, e um remexido balão, o célebre Balão da Ana, cantigas que causaram um furor tremendo, e a telefonia tocava a toda a hora, sendo até gravadas pela Amália, a primeira com versos em português, do jovem poeta David Mourão-Ferreira. Nesse ano de 1953, Hermínia estava, portanto, absolutamente certa, a Silvana é que dava que falar, a tal ponto que, num inquérito da revista Plateia, 82 por cento dos seus leitores declararam ser ela a sua preferida.

Silvana Mangano e sua filha em Voivodina, Jugoslávia, durante as filmagens 
de Tempestade (La Tempesta, 1958) de Alberto Lattuada. 1958. Gjon Mili.


A serena «signora» de Laurentiis

Mas esta loucura não acontecia só por cá, mas um pouco por toda a parte. Filha de pai italiano e mãe inglesa, Silvana Mangano estudara dança, fora manequim e tentara o cinema, até que, em 1948, conhecera o produtor Dino de Laurentiis, com quem logo casara, o qual, cuidadosamente, preparara o seu lançamento. E o produto mostrara-se de tão boa qualidade que o dificílimo mercado americano se mostrava muito receptivo, a ponto do New York Times afirmar entusiasmado, ser miss Mangano uma mistura de Anna Magnani, com menos 15 anos, Ingrid Bergman, com temperamento latino, e Rita Hayworth, com 12 quilos a mais.
Perante esta aceitação internacional, Silvana apareceu, em 1954, em duas grandes produções italo-americanas. Um era Mambo, tentativa pouco conseguida de explorar o filão de  Anna, onde se entregava a danças ardentes, com o  ballet  negro de Katherine Dunham, casava com Michael Rennie, um conde hemofílico, e era mais uma vez tentada por Vittorio Gassmann, o seu «cínico» privativo. O outro, Ulisses (Ulisse), onde se desdobrava num duplo papel, a paciente e tecedeira Penélope e a feiticeira Circe, enredando, nos seus encantos, Kirk Douglas, o herói homérico desta supercolorida odisseia de cartão e purpurina.

Silvana Mangano, durante as filmagens de Tempestade (La Tempesta, 
1958) de Alberto Lattuada. Voilodina, Jugoslavia. 1958. Gjon Mili.


Entretanto, a extrema sensibilidade com que Silvana viveu uma amargurada prostituta, num dos sketchs de Oiro de Nápoles (L'ro di Napoli, 54), dirigida pelo seu grande amigo Vittorio de Sica, valeu-lhe ser distinguida com o  Nastro d'argento, para a melhor actriz italiana do ano, prémio que novamente conquistou, em 1964, pela criação da figura da condessa Edda Ciano, a célebre filha de Mussolini, em Il processo di Verona, um filme, nessa época, proibido em Portugal, e que ainda por cá não correu. Embora estas distinções tenham dissipado o preconceito generalizado de que as mulheres que se impõem pela beleza têm, por força, que ser más actrizes, a signora Di Laurentiis, olhando pelos filhos, no conforto da sua villa  romana, mostrava-se pouco interessada em se assumir superstar, limitando muito as suas aparições, ainda por cima geralmente breves, apesar da sua presença, sempre belíssima, ser, com frequência, a melhor coisa de algumas superproduções do seu marido, como A revolta dos cossacos (La tempesté,  58), d'aprés Pushkin, também se revelando uma excelente comediante, em  Crime (Crimen, 60), ao lado dos experimentados cómicos Alberto Sordi, Nino Manfredi e o sempre presente e excelente Vittorio Gassmann.

Silvana Mangano durante as filmagens de Cinco Mulheres Marcadas 
(Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


A presença de prestígio seguro

Em 1966, comemorando quase vinte anos de feliz casamento, De Laurentiis ofereceu á mulher um presente caríssimo, que consistiu num filme, em sketchs, todo centrado em Silvana, que interpretava cinco personagens muito diversas, dirigida por cinco dos mais importantes realizadores Italianos: Luchino Visconti, Mauro Bolognini, Pier Paolo Pasolini, Franco Rossi e Vittorio De Sica. Como geralmente acontece com encomendas deste tipo, A magia da mulher (Le streghe) foi uma tremenda decepção, em que apenas o episódio de Pasolini, La terra vista dalla luna, com Totó e Ninetto Davoli, se destacava, pela sua colorida invenção surrealizante.

No entanto, a partir de então, Silvana Mangano alcançaria um enorme prestigio, passando a ser indispensável ás obras de dois grandes realizadores, já desaparecidos, Pasolini e Visconti, que finalmente saberiam compreender e usar plenamente a sua beleza, o seu talento, e, mais do que tudo, a sua estranha presença. Dirigida por Pasoloni, ela seria uma Jocasta, primitiva e misteriosa, em Edipo Re (67), um filme multo belo, incompreensivelmente ainda inédito em Portugal; uma reprimida mãe de família, da alta burguesia, que, tocada pelo anjo desencadeador (Terence Stamp), desabrocha numa maravilhosa ninfomaníaca, em Teorema (68); e, numa breve aparição, a Virgem Maria, no esplendor da visão final de Giotto, em Decamerone (71)


Jeanne Moreau e Silvana Mangano brincando durante as filmagens de Cinco Mulheres 
Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Dirigida por Visconti, vestida com suprema elegância por Piero Tosi, marcaria três figuras inesquecíveis de mulher distante e requintada: a mãe, anos 10, do jovem Tadzio, em Morte em Veneza (Morte a Venezia, 70); Cosima Lizt, a enigmática companheira de Richard Wagner, em  Luís da Baviera (Ludwig II, 72); a snob riquíssima e inquieta mantedora do gigolo Helmut Berger, em Violência e paixão (Gruppo  dl  famiglia in un interno, 74), a sua última aparição no cinema, até  à data. Semi-retirada desde há seis anos, apesar de apenas em Abril próximo completar 50 anos, semi-separada de Dino De Laurentiis, actualmente um dos mais poderosos produtores do cinema americano, a trajectória de Silvana Mangano, de mondadeira, explosiva força da natureza dos arrozais neo-realistas, a delicadíssima e serena aristocrata, movendo-se entre rendas e suspiros, é uma das mais fascinantes de quantas o cinema tem para nos oferecer.

Vítor Pavão  dos Santos
Texto e Titulos
Jornal Se7e
21-02-80

Vera Miles, Barbara Bel Geddes, Carla Gravina, Silvana Mangano e Jeanne Moreau em Cinco 
Mulheres Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.


Silvana Mangano (1930-1989). Jugoslávia. 1958. Gjon Mili.


(Fotos LIFE Archive, excepto a primeira)


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Passo a passo, Pasolini



«A arte é coisa mental, mas tem que se fazer

 com as nossas tripas e com o nosso sangue.»

Pier Paolo Pasolini



Pier Paolo Pasolini. Foto sem data encontrada em historica.com.br

Coisas boas em jornais

1922, 5 de Março — Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha. O pai, Carlo Pasolini, originário de uma antiga família de Ravena cujos bens dissipara, é tenente de infantaria. A mãe, Susanna Colussi, de origem friulana, é professora primária em Casarsa della Deizia.
«Em 1922, ano mergulhado no século, Bolonha respirava um ar de valsa.»  (Pasolini, `L'Usignolo della Chiesa Cattolica', Longanesi, Milão, 1958).
Em Outubro, os trinta mil «camisas negras» de Mussolini marcham sobre Roma.

1925 — Nasce o irmão de Pier Paolo, Guido Alberto, em Belluno. «Nesse tempo, eu ainda me dava bem com o meu pai. Era extraordinariamente caprichoso, isto é, presumivelmente, neurótico, mas bom. Para com a mãe, (...) encontrava-me no estado de alma que seria o de toda a minha vida, o de um amor desesperado.» (`Empirismo Herege', Assírio e Alvim, 1982).
Pier Paolo Pasolini e sua mãe Susanna. Anos 60.
Foto Mario Dondero em en.daringtodo.com
«Toda a minha vida foi influenciada pelas cenas que o meu pai fazia à minha mãe. Ele acusava-a de viver nas nuvens, o que não era verdade. O facto era que ele era fascista, e ela não.» (‘E tu chi eri — Interviews d'enfance, Dacia Maraini, Bompiani, Milão, 1973).
Durante a infância e os primeiros anos da adolescência, Pier Paolo é transplantado de cidade em cidade, devido à carreira militar do pai.

1929 — Pier Paolo escreve os seus primeiros poemas em Sacile, onde termina a escola primária.
«Misteriosamente, um belo dia, a minha mãe mostrou-me um soneto escrito por ela no qual exprimia o seu amor por mim (...) Alguns dias mais tarde, escrevi os meus primeiros versos, os quais falavam de rouxinol' e de `folhagem'.»

1935/40 — Novas deslocações: Cremona, Reggio Emilia. Longa estadia em Bolonha, estudos secundários (Liceu Galvani) e universitários (licenciatura em Letras). Prepara uma tese sobre o poeta Pascoli. Toma consciência do conformismo fascista e participa nos primeiros cineclubes. Começa a desenhar com uma regularidade que nunca o abandonará, até aos últimos retratos da Callas e dos seus amigos romanos.
«Tudo o que eu descobria e amava era posto sob silêncio ou banido sem a menor cerimónia pelos fascistas: Rimbaud, os poetas simbolistas, herméticos, os grandes autores de teatro (...) O meu antifascismo de adolescente era mais cultural do que politico.» (‘As últimas palavras do herege', entrevistas com Jean Duflot, Brasilense, 1983).

1942 — A família refugia-se em Casarsa, enquanto o pai se encontra prisioneiro de guerra no Quénia. E é ao pai que Pasolini dedica o livro de poemas que, a expensas próprias, publica nesse ano: `Poesia e Casarsa' (escrito em dialecto friulano). O livro é recenseado no Corriere de Lugarno, por Gianfranco Contini.


Pier Paolo Pasolini e seu pai, Carlo Alberto, em Florença nos anos 30. Foto de www.presseaporter.com

1943 — Pier Paolo cumpre o serviço militar em Livorno. A 8 de Setembro, dia do Armistício, recusa entregar-se aos alemães e foge para Casarsa.
«Troquei Pisa por Casarsa, em farrapos, com dois sapatos diferentes, depois de ter desobedecido aos oficiais que me haviam dado ordens para entregar as armas aos alemães. Depois de ter percorrido uma centena de quilómetros a pé e de me ter arriscado mais de cem vezes a encontrar-me num comboio com destino à Alemanha... recomecei logo a escrever versos em friulano e Italiano (...). Mas isso não me impediu de ir escrever `Viva a liberdade' nas paredes, e de acabar, pela primeira vez na minha vida, na prisão, experimentando, assim, o que são os homens da Ordem.» (citado em `Pasolini', seminário dirigido por Maria Antonietta Macciochi, Bernard Grasset, Paris, 1980).

1945 — O seu irmão Guido, resistente da brigada 'Osoppo', é ferido, perseguido e executado sumariamente por resistentes jugoslavos. O tema da `morte do jovem' atravessa doridamente toda a obra de Pasolini.
«(...)  ele era o melhor de todos nós. Era tão bom, tão generoso, que quis dar-me a prova disso, sacrificando-se pelo seu irmão mais velho, que talvez amasse demasiado, em quem talvez acreditasse demasiado. (...) Lancei-o no antifascismo mais ardente, com a paixão dos catecúmenos, porque, também eu jovem, descobrira, apenas dois anos antes, que o mundo no qual eu nascera sem nenhuma perspectiva era um mundo ridículo, absurdo... e, então, eu não tinha ainda lido Marx e era liberal, com uma preferência pelo partido de acção. Penso que nenhum comunista poderá condenar a acção do guerrilheiro Guido Pasolini...» (Vie Nuove, 1961).
Envelhecido, o pai regressa a Casarsa. Tor-minada a sua tese de licenciatura, Pasolini lecciona, entre 1945 e 1949, em Valvasone, na região de Casarsa. A  18  de Fevereiro de 1945 funda, com um grupo de jovens universitários friulanos, a Academia de Língua Friulana, que edita cadernos de pesquisa filológica e poética — os 'Stroligut de ca' da l'aga'  (O  Feiticeiro deste lado da água). Era o início da luta contra a homogenização linguística desencadeada pelo fascismo e acirrada pela civilização tecnológica (o consumismo que Pasolini considerará o «novo fascismo»).
Entre 1943 e 1949, escreve os poemas que publicará em 1958 sob o título 'L'usignolo della Chiesa Cattolica' (O rouxinol da Igreja Católica).


Pier Paolo Pasolini - Homem de Letras. Primeira parte de um documentário que pode encontrar no youtube na totalidade. Carregado por europecinema em 03/01/2008.


1947 — Inscreve-se no Partido Comunista Italiano, onde se torna secretário da secção de Casarsa — mas esta militância consignada não durará mais do que um ano.
«(...)  fiz como um certo número de camaradas, não renovei a minha carteira depois da expiração. A orientação cada vez mais estalinista de Togliatti, essa mistura de autoritarismo e de paternalismo sufocante, não me parecia favorável ao desabrochar das grandes esperanças do pós-guerra. (...) Simultaneamente, nestes anos 48-49, eu descobria Gramsci (...) A ressonância da obra de Gramsci em mim foi decisiva (‘As últimas palavras de um herege').
«Marx não tomou em consideração o irracional. Digo Marx para dizer o marxismo.» ('Ulisse', Setembro, 1960.)
Todavia, falará sempre do PCI como «um país limpo dentro do país».

1949 — Pasolini é acusado de ter tido «relações carnais com alguns dos seus alunos». A denúncia parte de um padre a quem Pier Paolo se confessara, que rompe o segredo da confissão. Durante os restantes vinte e seis anos da sua vida ser-lhe-ão movidos mais de trinta processos por homossexualidade. O Partido expulsa-o «por indignidade moral do poeta Pier Paolo Pasolini».
Foge para Roma com a mãe; instalaram-se inicialmente na Piazza Costaguti, no pórtico de Ottavia, e depois nos Borgate, em Ponte Mammolo, perto da prisão de Rebilobia (lugares recorrentes da escrita pasoliniana).
«Estou sem trabalho, reduzido à mendicidade. Muito simplesmente porque sou comunista. Não me espanta a diabólica perfídia democrata-cristã; espanta-me a vossa desumanidade. Tu sabes bem que falar de desvio ideológico é uma imbecilidade. Apesar de vocês, eu permaneço e permanecerei comunista, no mais autêntico sentido do termo. Qualquer outro, no meu lugar, se suicidaria, mas, infelizmente, devo viver pela minha mãe.» (Carta a Francesco Mautino, da Federação Comunista.)
Finalmente, consegue um posto de professor em Cianpino, com 27 mil liras por mês; mais tarde, graças a Giorgio Bassani, começará a trabalhar em argumentos para cinema. A mãe trabalha como mulher-a-dias. O pai reunira-se-lhes entretanto, e mudam-se os três para a Via Fonteiana.

1952 — Publica `Poesia Dialectal do Século XX' (em colaboração com Mario dell'Arco).

1954 — Publica `La Meglio Giuventu' (A Melhor Juventude), recolha das suas poesias friulanas. Publica um diário poético: `Dal Diario'. Trabalha, pela primeira vez, como argumentista, no filme de Mario Soldati 'La Donna del Fiume' (A mulher do rio). «Eu literalmente morria de fome.» (`As últimas palavras de um hereje'.)


Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, perto de Roma durante as filmagens do primeiro filme de Pasolini "Accattone". Foto de 1961, de Marina Cicogna encontrada em www.livincool.com

1955 — Colabora na revista «Officina», que, apesar da sua curta vida, ficará como testemunho importante de alguns intelectuais italianos face ao automatismo e conformismo dominantes. Publica `Ragazzi di Vita', transposição romanesca da sua experiência nas  borgate,  primeiro grande êxito literário, primeiro processo por «obscenidade». Publica um 'Canzonieri Italiano' (Cancioneiro italiano) e uma `Antologia della Poesia Popolare'.

1956 — Colabora no argumento de `As Noites de Cabiria’, de Frederico Fellini. Até 1973, trabalhará em numerosos argumentos (cerca de doze) com Bolognini, Rossi, Fellini, Bertolucci - entre outros.

1957 — Publica 'Le Ceneri di Gramsci' (As Cinzas de Gramsci), que recebe o Prémio de Poesia de Viareggio e o consagra face à crítica.
Morte do pai. «Não queria tratar-se, em nome da sua vida retórica. Não nos dava ouvidos, nem à minha mãe nem a mim, porque nos desprezava. Uma noite voltei a casa apenas a tempo de o ver morrer.»

1958 — Publica «L'Usignolo della Chiesa Cattolica» (O Rouxinol da Igreja Católica), (poemas).

1959 — Publica «Una Vita Violenta» (Uma Vida Violenta), romance que é traduzido em onze países e sucessivamente reeditado em Itália — e também processado.


Pasolini com Anna Magnani e Ettore Garofolo durante a rodagem de "Mamma Roma" (1962). Foto de burusi.wordpress.com

1960 — Publica «Roma 50, Diário»; «Sonetto Primaverille»; «Passione e Ideologia»; «Poesia Popolare Italiana». Realiza a sua primeira longa-metragem, «Accatone», com a qual se inicia também o rosário dos processos cinematográficos...
«A primeira imagem — lembrança que tenho do cinematógrafo é um cartaz. Eu devia ter quatro ou cinco anos: a-imagem de um tigre solto, devorando um homem, do qual o mínimo que posso dizer é que parecia sofrer maravilhosamente (...) Comecei a rodar o meu primeiro filme com quarenta anos, sem mesmo saber que existiam objectivas diferentes, ou o que era exactamente uma panorâmica...
(...) Fui portanto obrigado a inventar uma técnica, que só podia ser a mais simples, a mais elementar possível. Estilisticamente, a simplicidade transmutou-se em severidade, o elementar tornou-se absoluto. (...) A complexidade torna comum, a simplicidade diversifica. («As últimas palavras de um herege»).

1961 — Publica «La Religione del Mio Tempo», compilação dos artigos e poemas publicados em Officina. Publica o «Manifesto per un Nuovo Teatro». Realiza «Mamma Roma».
«`Mamma Roma' é a obra onde, pela primeira vez na vida, eu me repeti. Repeti-me, e cometi esse erro, por ingenuidade. Na vida é preciso ser ingénuo, mas sê-lo no domínio da estética é um erro.» («As últimas palavras de um herege»).

1963 — Realiza «La Ricotta», que será apreendido, e «La Rabbia».


Pier Paolo Pasolini dirigindo Orson Welles em "La Ricotta" (1963). Foto de centotto.com

1964 — Realiza «II Vangelo secondo Matteo» (O Evangelho Segundo São Mateus), que recebe o Grande Prémio da União Internacional da Crítica e o da Organização Católica do Cinema. Publica «Poesie in Forma di  Rosa»,

1965 - Publica «Ali dagli Occhi Azzurri».

1966 — Realiza «Uccellacci e Uccellini» (Passarinhos e Passarões).
«O filme de que mais gosto é «Passarinhos e Passarões». Creio tê-lo feito com o máximo de pureza, com uma pureza toda franciscana! Ele não me rendeu absolutamente nada, aliás. Posso mesmo dizer que perdi dinheiro com ele. E um filme bastante pobre, que não custou grande coisa. Emociona-me muito.» («As últimas palavras de um herege»).

1967 — Realiza «Edipo Rei».

1968 — Realiza «Teorema», que será processado e apreendido.
«Assim que os jovens contestatários abandonam a cultura para optar pela acção e pelo utilitarismo, resignam-se à situação na qual o sistema trabalha para os inserir.» («As últimas palavras de um herege»).

1969— Realiza «Porcile» (Pocilga).

1970 — Realiza «Medeia».


Pasolini com Maria Callas durante as filmagens de "Medeia" (1969). Foto de www.presseaporter.com

1971 — Publica «Trasumanar e Organizzar» (Transumanar e Organizar).
«Quero dizer por isso que a outra face da transumanação (a palavra é de Dante, sob esta forma apocopada) ou da ascese espiritual, é precisamente a organização.»
Inicia o ciclo da «Trilogia da Vida» com o «Decameron», (segundo Boccacio).
«São filmes bastante fáceis e eu fi-los para opor à sociedade de consumo actual um passado bem recente em que o corpo humano e as relações humanas eram ainda reais, ainda que arcaicas, ainda que pré-históricas (...) Mas estes filmes acabaram por ser, eles próprios, ultrapassados tornados velhos pela tolerância da sociedade de consumo. (...) Foi por isso que abjurei a `Trilogia da Vida', que era uma nova fase, digamos, de carácter popular, simples.» (Citado em «Pasolini», seminário, já referido).

1972 — Publica «Empirismo Erético», reflexão semiológica acerca do cinema e da literatura, iluminada por Saussure, Bar-thes, Metz (tradução portuguesa: «Empirismo Herege», Assírio e Alvim, 1982),
Realiza o segundo filme da «Trilogia da Vida», «I Racconti di Canterbury» (Os Contos de Canterbury), de novo processado e apreendido.

1973 — Em Calderon, experimenta a sua concepção do teatro da palavra. Publica «II Mestiere di Scrittore» (A profissão do escritor).  


Rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Foto de www.cinemista.com.br

1974 — Último filme da Trilogia: «II Fiore Delle 1001 Notte» («As Mil e Uma Noites»), que sofre, como se esperava, perseguições várias.
Realiza «Saló o le 120 Giornatte di Sodoma» (Saló ou os 120 dias de Sodoma), que será objecto de processo e apreensão após a morte de Pasolini.
«Não sei muito bem porque fiz este filme. Espero compreender porque o fiz dentro de alguns meses ou anos. O sexo aparece ainda aqui mas em vez de ser utilizado, como na `Trilogia da Vida', como algo de feliz, belo e perdido, é utilizado como qualquer coisa de terrível, tornou-se a metáfora do que Marx chama a comercialização do corpo, a alienação do corpo. O que Hitler fez brutalmente, matando, destruindo os corpos, a sociedade de consumo fê-lo no plano cultural; na realidade, é a mesma coisa. (Citado em «Pasolini», Seminário, op. cit.)
Entre 1970-1975, Pasolini intensifica as suas intervenções em «scritti» dispersos por vários jornais. Estas prosas são publicadas em volume sob o título «Scritti Corsari» (Escritos Corsários ou «Escritos Póstumos», em tradução portuguesa, Moraes).

1975 — 2 de Novembro — Pier Paolo Pasolini aparece de madrugada assassinado numa praia entre Ostia e Fiumicino, contra um fundo de barracas e destroços. Presumível, assassino: um «ragazzo di vita» de nome Pelosi.
«Os cabelos escorrendo sangue, o rosto inchado de nódoas negras e hematomas, a maxila esquerda fracturada, o nariz metido para dentro, as orelhas parcialmente arrancadas, uma ferida horrível entre a nuca e o pescoço que sangrava ainda, os dedos cobertos de nódoas negras e contusões, dez costelas fracturadas, tal como o externo. Também se observava um rasgão largo e profundo nos testículos, o fígado encontrava-se dividido em dois, o coração rebentado.»


Rodagem de Decameron (1971). 1971. Foto de Mario Tursi em pasolinipuntonet.blogspot.pt

1975 — Publicação em Portugal de dois romances (inéditos à data da morte) do tempo de adolescência «Amado Mio» e «Atti Impuri». («Amado Mio» e «Actos Impuros», ed. dupla Difel.)

Sobre «Atti Impuri»: «'Atti Impuri', até pela sua forma abertamente de diário, é uma comovida descida aos infernos de um eu assolado por contradições profundas, para trazer á superfície o verde paraíso dos anos passados no Friuli.» (Carlo Vittorio Cattaneo, «Expresso», 2/7/85).

Sobre «Amado Mio»: «Tudo se passa numa atmosfera alternadamente fresca (os banhos no rio ou no canal, que constituem um dos mais belos lugares recorrentes na prosa de Pasolini) e abafada (o suor sobre os corpos, uma pressentida promiscuidade que remete para o universo adolescente da indiferenciação das sensações) em campos que se estendem a perder de vista, entre tons violáceos e `o fumo acre e fabuloso do lume matinal'.» (António Mega Ferreira, «Jornal de Letras», 2/4/85).

Cronologia estabelecida por Inês Pedrosa no Jornal de Letras de 1 de Outubro 1985.


Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975)
 Foto de www.pasolini.net




terça-feira, 18 de setembro de 2012

O Cinema Europa "abriu" em 1966 com o III Festival de Cinema de Lisboa


ORGANIZAÇÃO DA CASA DA IMPRENSA E DA

CORPORAÇÃO DOS ESPECTÁCULOS - 28 MARÇO 1966


Esta foto deve ter sido feita pouco antes da inauguração do Cinema Europa em Março de 1966. Já tinha visto esta foto dos Estúdios Novais na Galeria de Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian e tinha sentido curiosidade pelo cartaz que aparece na foto e que diz: III Festival de Cinema de Lisboa. Nunca tinha ouvido ou lido nada sobre esse festival que já ia no terceiro mas, coloquei de lado para mais tarde voltar a ele. 


 Noticias e Calendário do Festival no dia da inauguração do Europa.


Chegou a hora. O cartaz tem uma data, o que possibilitou procurar noticias  e verificar que era um dos festivais da Casa da Imprensa que fazia regularmente mostras de cinema, festivais e outras realizações. Também se pode ver na foto que, ainda havia obras nas ruas e no próprio edifício. Deviam ser as obras finais, por causa do aspecto das lojas do cinema e também (creio), porque já estavam a calcetar as ruas e isso faz-me crer que a foto é de Fevereiro ou Março de 1966. Outra curiosidade da foto é que foi inaugurada sem a "estátua" da fachada, que se tornaria anos depois o símbolo do Europa.


 Noticias e criticas nos dias 29, 30 e 31 de Março 1966.


O Europa já estava naquele local desde 1931, mais coisa menos coisa mas, o edifício antigo foi deitado abaixo (não sei quando) e construído o da foto, presumo que em 1964/66 e marcada a sua inauguração com pompa e circunstancia com um festival de Cinema, coisa para dar brados nos jornais, como se pode ver pelas reportagens diárias do Diário de Lisboa. O dono ou donos do Europa em Março 1966, era uma empresa chamada Sociedade Administradora de Cinemas, que era proprietária de outros cinemas, entre eles o Cinearte e já tinham experiência nestes eventos e sobretudo boas ligações com os distribuidores de filmes e não só. 



 Noticias e criticas nos dias 1, 2 e 3 de Abril 1966.



O Festival de Cinema de Lisboa desse ano foi uma iniciativa conjunta da Casa da Imprensa e da Corporação dos Espectáculos (seria o antigo sindicato do regime?) e durou dez dias. Ao mesmo tempo também se dava no Europa o I Festival de Animação (com  Vasco Granja na organização), com uma exposição de Animação no foyer e ainda uma Retrospectiva da obra de Jean Renoir. Como diz o Diário de Lisboa no dia seguinte: "por isso o ambiente era de festa e a sala encheu-se de um publico jovem e entusiasta; de um publico «snob», também, daquele publico «snob» que possiblita a cultura autentica: de um publico interessado e curioso.». À frente da organização do festival estava Luis de Pina, com quem eu trabalharia anos mais tarde quando entrei para a Cinemateca. 
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  Noticias e criticas nos dias 4, 5 e 6 de Abril 1966.


 O Festival deve ter tido umas ante-estreias de filmes que estavam à espera do visto da censura. Por exemplo, o filme que abriu o Festival em 28 de Março de 1966; Muriel (1963) de Alain Resnais, só estreou para o publico em Junho de 69. A Fundação Gulbenkian como era hábito dela, também entrou com dinheiro porque dedicou seis sessões para os estudantes do Ensino Superior. Creio que falta só fazer uma referencia aos recortes que povoam este post (devo ter batido o recorde). Ainda cheguei a pensar em colocar só alguns mas, depois decidi-me por colocar todos. Geralmente no dia seguinte, há uma critica ao filme exibido assinada por alguém chamado M. de A., outras por F.A.P. (seria Fernando Assis Pcheco?) e algumas curiosidades que rodearam o Festival.


Rescaldo do Festival de Cinema no dia 7 de Abril 1966.


Anuncio do dia 7, referindo a exibição durante três dias do filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964) de Pier Paolo Paolini, que já tinha estreado antes no Monumental.

O filme de Pasolini era para fazer a ligação (esquisita), para o tipo de cinema que o Europa iria apresentar regularmente; filmes "populares", que dessem dinheiro. O escolhido foi O 3º Dia (The Third Day, 1965) de Jack Smight, que tinha já estreado algures em Setembro de 1965. Repare-se no anuncio que diz seleccionado para inaugurar o Cinema Europa. Fica-se sem saber qual o filme que inaugurou o Europa, para mim foi o Muriel de Alain Resnais. O anuncio da direita era do dia de abertura do festival e era uma espécie de anuncio-noticia, fazendo propaganda do que ia ser a programação do Europa; estreias e reposições a preços acessíveis.






quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Requiem Para Pier Paolo Pasolini


de Eugénio de Andrade



Eu pouco sei de ti mas este crime
Pier Paolo Pasolini. 1968.
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Píer Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.


Requiem Para Pier Paolo Pasolini, de Eugénio de Andrade, in Pretextos para Dizer, 
1978, Voz de Mário Viegas. Carregado no Youtube por pfv67 em 08/11/2009 


(foto LIFE Archive)