Ter tido o privilégio de privar com um grande poeta foi ter podido ver acontecer a sua poesia. Nela continua vivo.
Por Manuela de Freitas
A certa altura da minha adolescência, conheci um colega do meu irmão Carlos, da Faculdade de Direito, com um ar muito sério e respeitável (apesar de só ter vinte e dois anos), que constava ser da Opus Dei. Era o Ruy Belo. Davam grandes passeios pela praia e falavam, falavam, a olhar para o mar, até nele entrarem. E tinham de os ir buscar, enregelados e exaustos, envoltos em cobertores, a beber um cálice de brandy para recuperarem do susto dos outros, porque neles havia só prazer calmo, como um segredo cumprido. Havia conversas até às tantas. Com o culto da alegria como um dever sem tréguas e a cumplicidade numa rebeldia sem limites.
O Rui saiu da Opus Dei e, já formado em Direito, entrou para a Faculdade de Letras. Arranjou uma namorada e, como se o Verão tivesse chegado, o sorriso de criança, de nariz arrebitado, foi-se tornando cada vez mais aberto, mais arriscado, mais livre. E o riso claro da Maria Teresa começou também a fazer parte dos nossos serões nas noites desmedidas de novembro, das castanhas assadas compradas depois da tourada, onde íamos ver o João, irmão do Rui que era forcado [pegador de toiros a pé, nas corridas de toiros à portuguesa]. Crianças feitas para grandes férias, tudo era possível, era só querer. E o ritual dos dias e das noites era importante como uma novidade.
O meu irmão morreu em Janeiro de 1965, com vinte seis anos. Houve passos apressados pela casa que ficaram na Boca Bilingue, à memória do Carlos, o melhor dos amigos e o Rui continuou nos nossos serões com a permanente dívida à alegria porque era preciso era que não doesse muito, já que a morte não é coisa para os homens.
Começou a aparecer cada vez menos, cada vez mais perturbado, prostrado, a comprar o sono em tubos de comprimidos. Teve três filhos da Maria Teresa, sua única viúva, e foi para Madrid onde se apaixonou pela Muriel. Um dia, reencontrámo-nos no meio da rua, falámos muito e à despedida perguntou-me “Eu vinha dali ou ia para ali?”. Passou, depois, por alguns dos meus serões já diferentes onde, uma noite, leu sem parar a Margem da Alegria, que tinha acabado de escrever. Quando em Agosto de 78 chegou a notícia de que o Rui tinha morrido, achei que estava certo e que só podia ser em Agosto, para não ser a custo.
Em tempos de impossível alegria, quando no meu país não acontece nada e tanta gente em vão requer curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia, é bom lembrar Ruy Belo, um dos nossos maiores poetas, e ouvi-lo dizer que vivemos, convivemos, resistimos, que somos mal feitos, pronto, mas que tudo é apenas o que é e que nada se perde por mais que aconteça. É bom encontramos na sua poesia um sítio onde se nega que se morre, uma vida - luminosa luz como ferro em fusão - para que não nos detenhamos nos umbrais das trevas e recordemos, vagueando pelos trilhos dos seus versos, o sinal desse silêncio que não permite desistir.
(Manuela de Freitas in, passapalavra.info, 07 de Junho de 2009)
Ruy Belo, foto em casoseacasosdavida.blogspot.com. |
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