quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Arquitectura 'Cinematográfica'

 Texto de
Pedro Ferreira Mendes
Revista 
ARQUITECTURA & CONSTRUÇÃO
Abril 2008.


Desenho de Cassiano Branco, sem data e sem titulo. Encontrado em www.ufp.pt

Homem de personalidade vincada, Cassiano Branco construiu um percurso à margem do poder político sem nunca dele se auto-excluir. Modernista por convicção, veio a enredar-se num barroquismo oficial, fosse por ironia, como sugerem alguns autores, ou simplesmente por espírito ecléctico.


Cassiano Branco (1897-1970)
Apesar de a sua produção incidir em prédios de rendimento em Lisboa para uma classe média emergente na déca¬da de 30, Cassiano Branco é reconhecido por projectos de natureza bem distinta, como o Portugal dos Pequenitos em Coimbra, os cinemas Éden e Império na capital, ou o Coliseu do Porto. Segundo paradoxo: estes três últimos formalmente não lhe pertencem, uma vez que por desentendimentos vários, com donos das obras ou responsáveis das autarquias, os tenha abandonado nas suas fases finais, sem que recebessem a sua assinatura.
Quando passam 38 anos sobre a sua morte, Cassiano Viriato Branco tem reservado um lugar na História como um dos mais importantes arquitectos da década de 30 em Lisboa. Homem de personalidade vincada e exímio desenhador, construiu um percurso à margem do poder político. Modernista por convicção, enredou-se, especialmente a partir do final dos anos 30, num barroquismo oficial, fosse por ironia, como sugerem alguns autores, ou simplesmente pelo espírito ecléctico que sempre o caracterizou. Outra imagem possível é a de um dândi amante das artes, fumador inveterado, de figura imponente e feitio difícil, criador de uma arquitectura ‘cinematográfica’ que fez escola, ao ponto de hoje ser difícil distinguir os edifícios que foram por ele desenhados dos que são cópias.
Filho de um pequeno industrial, Cassiano Branco nasceu em Agosto de 1897 na freguesia lisboeta de São José. Aos 16 anos, depois de reprovar pela segunda vez na cadeira de Desenho e Figura de Ornato, foi suspenso por indisciplina e acabou por abandonar a Escola de Belas Artes. Até ingressar no Curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes de Lisboa (EBAL), frequentou o Ensino Técnico-Industrial e ajudou o pai na gestão de uma fábrica de perfumes.



«A proposta de Cassiano Branco para a Costa da Caparica, embora incompleta e apaixonada (...). Trata-se de um caso de amor entre um arquitecto e um sítio. (...)
«O "postal" com a proposta utópica para a Costa da Caparica, que seguramente não é um postal, prefigura uma Cidade de Lazer, particularmente apetrechada com equipamentos desportivos, lúdicos e culturais, que também, seguramente, não são Portugal dos anos 30. (...).
«Cassiano Branco, na sua proposta de transformação da Costa da Caparica, pressupõe grandes investimentos na área do lazer e dos tempos livres, bem como a oferta de espaços urbanos exemplarmente qualificados e profundamente inovadores. Evidentemente, nenhuma destas preocupações correspondia nem às capacidades, nem às exigências dos anos 30.
«Trata-se evidentemente de um sonho, de um manifesto daquilo com que o homem, o arquitecto, poderá contribuir para o progresso, a dignificação e o enriquecimento da sociedade de que faz parte.»
Manuel Fernandes de Sá, Francisco Barata Fernandes. In: Cassiano Branco: uma obra para o futuro. Lisboa: CML, 1991, p. 92, 96 (Texto e foto encontrados em prosimetron.blogspot.pt)


Desenho da proposta de Cassiano Branco para a Baixa Pombalina em Lisboa, in: Arquitectura portuguesa e cerâmica e Edificação (reunidas), Nº 32, 1937 e Desenho de Cassiano Branco: 1930, Cidade do Cinema Português, Cascais.


Sobre o seu temperamento, Hestnes Ferreira e Fernando Silva escreveram: “Como todos os jovens da sua geração, viveu anos férteis em acontecimentos políticos que nele alicerçaram convicções democráticas de tradição familiar, revelando desde cedo uma personalidade forte e nada disposta a compromissos.” José-Augusto França descreveu-o como um “individualista ferrenho”, enquanto Troufa Real, que o visitou no seu ateliê “de ambiente artesanal”, testemunhou que, quase nunca recorrendo a colaboradores, “desenhava os seus projectos até ao mais ínfimo pormenor, de uma forma ritualizada, com lápis wolfe que afiava a canivete e colocava disciplinadamente sobre o estirador como um exército”.



Arquitecto Cassiano Branco, 1933. Edifício, Rua Nova São Mamede, 17, Lisboa. Arquitecto Cassiano Branco, 1934. Victória Hotel, Avenida da Liberdade, 168/70. Lisboa.


Sobre a sua obra, Ana Tostões, no livro “Arquitectura Portuguesa do século XX”, considerou-o “talvez a personalidade mais poderosa e inventiva do modernismo”, enquanto Paulo Tormenta Pinto, numa monografia recentemente lançada pela Caleidoscópio, observou que “a sua isenção em relação ao Estado veio a legitimar-se como a mais interessante face deste arquitecto, que funcionou num limite interpretativo algo instável entre o Estado e a sociedade em geral”.
A ligação de Cassiano Branco aos poderes públicos resumiu-se praticamente ao ‘embelezamento’ de obras de engenharia, como as barragens de Santa Catarina (no Vale do Sado) ou de Belver. De resto, sobraram algumas tentativas, sempre goradas, de produzir para o Estado, como demonstra a sua repetida participação (1937 e 1955) no Concurso para o Monumento ao Infante de Sagres, ou a sua proposta para uma ponte sobre o rio Tejo, de 1958, que partiria da zona da Lapa. Antes, no período mais fértil da sua produção, tentou por duas vezes o lugar de professor da cadeira de Desenho Arquitectónico, Construção e Salubridade das Edificações na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), perdendo o lugar para Cristino da Silva, em 1933, e para Luís Alexandre Cunha, dois anos depois.



Arquitecto Cassiano Branco - De cima para baixo: alçado do Cine-Teatro Éden antes da intervenção de Cassiano Branco; 1929, primeira proposta do arquitecto; 1930, segunda proposta; fachada e interiores do Éden.


Arquitecto Cassiano Branco - Cine-Teatro Éden, anos 90 e desenho de Cassiano Branco; arranha-céus para a Avenida da Liberdade em Lisboa. Fotos copiados do catálogo da exposição Cassiano Branco, uma obra para o futuro.


Nessa década de 30, Cassiano Branco tornara-se o arquitecto mais cobiçado por uma classe média emergente. “Os encargos de Cassiano eram formulados por pessoas de um perfil específico, ou seja, alguém que queria algo ‘moderno’, de baixo custo e de enorme efeito, e que suscitasse um desejo sedutor de urbanidade, que era conseguido pela inteligente consciência da capacidade dos materiais”, como notou Tormenta Pinto. Um “certo sentimento de ilusão na sociedade” que o afastou sempre do caminho de outros ilustres arquitectos seus contemporâneos, como Pardal Monteiro ou Cristino da Silva.



Arquitecto Cassiano Branco - 1933. Moradia, Avenida António José de Almeida, Lisboa e Arquitecto Cassiano Branco - 1933. Rua Xavier Cordeiro, 19/21, Lisboa.


Nesses anos, Cassiano Branco dedicou-se a criar, em eixos como a Av. António José de Almeida, Av. Pedro Álvares Cabral, Rua do Arco de São Mamede ou Rua Castilho, uma arquitectura serial, simples mas com notável efeito plástico, manipulando com mestria jogos de claros escuros, através de subtracções da forma ou avanços e recuos dos planos dos alçados. Tornava-se “no arquitecto da Lisboa não monumental, da Lisboa de todos os dias dos anos 30”, como escreveu Paulo Varela Gomes. Ao mesmo tempo, empenhava-se em marcar fortemente a cidade com uma imagem de progresso, desenvolvendo projectos que se tornaram ícones, como o programa de remodelação do Cinema Éden (que acabou assinado pelo engenheiro Carlos Dias, mas que estudiosos da obra de Cassiano Branco, como Hestnes Ferreira, não hesitam em lhe atribuir a autoria), ou o Victória Hotel, considerado uma das grandes obras da arquitectura portuguesa, pela forma magistral de como utilizou os valores volumétricos do código modernista. Classificado como Imóvel de Interesse Público em 1984, ali funciona hoje o centro de trabalho do Partido Comunista Português. 




Arquitecto Cassiano Branco - 1937. Prédio, Avenida Defensores de Chaves, 27, Lisboa.

Já destruídos, o quiosque-esplanada do Café Paladium, de 1933 (uma estrutura em ferro forrada a vidro, de onde se gozava uma vista privilegiada sobre o coração da cidade) e o Café Cristal, de 1940 (com desmesurados espelhos) foram outros signos modernistas de uma Lisboa virada ao ócio, que tinha em Cassiano Branco um dos seus principais instigadores e na Avenida da Liberdade o palco principal.
Este assumir de uma vontade expressa de cosmopolitismo, combinado com o seu apurado sentido cinematográfico, levara-o, em 1930, a gizar um ousado plano para a Costa de Caparica, que hoje, à distância de 78 anos, sugere uma saudável loucura hollywoodesca.



Arquitecto Cassiano Branco - 1936. Rua Palmira, 33A/35, 
Lisboa 1948. Avenida Fontes Pereira de Melo, 22. Lisboa. 


Após ter projectado (em 1939) o Coliseu do Porto, cuja autoria ficou envolta em polémica, como no Éden, o trabalho de Cassiano Branco perdia fulgor. Ainda assim, no meio de projectos de gosto duvidoso, como o Grande Hotel do Luso, a Junta Nacional da Vinha e do Vinho ou um arranha-céus para a Avenida da Liberdade (chumbado pela autarquia lisboeta), viria a assinar outras propostas, também de menor depuração formal mas de maior interesse arquitectónico, como os blocos de apartamentos para a Rua Rodrigues Sampaio e Av. António Augusto Aguiar. Nos prédios para a Fontes Pereira de Melo (com cobertura cónica), Praça de Londres (60 metros de altura, com chaminé gigantesca e esfera armilar) e Av. de Roma (com uma figura escultórica no topo), reforçou a ruptura com o modernismo, seguindo uma via mais tradicionalista e de personificação do imóvel.



Arquitecto Cassiano Branco - 1936. Projecto do Coliseu do Porto. 
Desenho encontrado em www.educare.pt


Arquitecto Cassiano Branco - 1945/46. Estudos para o Cinema Império. Lisboa


Doze dias detido na PIDE


Como Pedro Vieira de Almeida e José Manuel Fernandes acentuaram, numa análise à obra de Cassiano na "História da Arte em Portugal", foi surpreendente a versatilidade do arquitecto “para desenvolver em simultâneo obras de linguagem moderna e outras de estilo tradicional português”, de que é exemplo extremo o Portugal dos Pequenitos em Coimbra (parque temático para crianças recheado de símbolos patrióticos). Em 1958, por motivações estritamente políticas (sempre criticou ‘à boca aberta’ a pequenez mental da vida nacional), ou também por estar magoado com o Estado Novo por nunca lhe ver reconhecida a obra (acabara de ‘chumbar’ o seu projecto para a ponte sobre o rio Tejo), envolveu-se na campanha presidencial de Humberto Delgado, acabando por estar 12 dias detido nos calabouços da PIDE. 



Arquitecto Cassiano Branco - Década de 30. Prédio de apartamentos, Rua Rodrigues Sampaio, 17 Lisboa e Arquitecto Cassiano Branco - 1938. Grande Hotel do Luso.


Até 1965 viria a desenvolver poucos projectos, num tempo que decididamente já não era o seu. Cassiano Branco morreria com dificuldades financeiras (chegou mesmo a ter de alienar a sua biblioteca) a 24 de Abril de 1970, antes de poder assistir à queda do Estado Novo, que nunca o considerou.
Tratou a História de o consagrar como um dos mais respeitados nomes da arquitectura do século XX em Portugal, apesar de muitos dos seus edifícios continuarem a desaparecer, desabrigados da mais do que justificada e urgente classificação de Imóvel de Interesse Público. No ano passado, foi a vez do camartelo se abater sobre uma das quatro moradias, a n.º 14, que Cassiano Branco desenhou para a Avenida António José de Almeida, em 1933, perdendo-se para sempre a possibilidade de se ler, em dezenas de metros, a diversidade conceptual que o arquitecto expressava e a lógica sequencial da sua linguagem.


Arquitecto Cassiano Branco - 1951. Prédio, Praça de Londres, Lisboa.


CASSIANO BRANCO: DADOS BIOGRÁFICOS

1897 – Nasce em Lisboa, no mês de Agosto
1912 – Inscreve-se na Escola de Belas Artes, ali se cruzando com Pardal Monteiro, Cristino da Silva, Cottineli Telmo, Car­los Ramos, Jorge Segurado, Paulino Montez, entre outros
1914 – Abandona a Escola de Belas Artes, depois de reprova­do pela segunda vez na cadeira de Desenho de Figura, e começa a frequentar o Ensino Técnico-Industrial
1917 – Casa-se com Maria Elisa Soares Branco
1920 – Matricula-se no Curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes de Lisboa (EBAL)


Arquitecto Cassiano Branco - Coliseu do Porto. 
Foto sem data encontrada em myout.net

1925 – Viaja pela primeira vez à capital francesa, por ocasião da Exposição de Artes Decorativa de Paris
1926 – Termina o curso de arquitectura, a que se seguirão dois anos de tirocínio com o arquitecto José da Purificação Coelho
1928 – Elabora o seu primeiro projecto como arquitecto, o Stand Rios de Oliveira, na Avenida da Liberdade, em Lisboa
1929 – Recebe uma encomenda da Câmara Municipal de Lisboa para ampliação do Cine-Teatro Éden, em Lisboa, para a qual fará três propostas. O projecto final será assinado pelo engenheiro Carlos Dias e entregue em 1933 à autarquia lisboeta
1930 – Apresenta um Plano de Urbanização da Costa de Ca­parica, que inclui hotel de luxo com 1500 quartos, ampla piscina de cimento assente na praia, teatro ao ar livre para crianças, cinema, casino e campos desportivos



Arquitecto Cassiano Branco - 1937/61. Portugal dos Pequenitos. Coimbra. 
Foto do espólio de Cassiano Branco encontrada em www.ufp.pt

1933 – Concorre, com Cristino da Silva, Carlos Ramos e Pau­lino Montez, entre outros, ao lugar de professor da cadeira de Desenho Arquitectónico, Construção e Salubridade das Edificações na EBAL. A candidatura é ganha por Cristino da Silva.
1938 – Volta a concorrer a professor da EBAL para leccionar a mesma cadeira, sendo desta vez excluído a favor de Luís Alexandre da Cunha.
1958 – Apoia a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República, chegando a ser detido pela PIDE 12 dias, entre 4 e 16 de Junho
1970 – Morre a 24 de Abril, em Lisboa, com 72 anos

Texto de Pedro Ferreira Mendes
Revista ARQUITECTURA & CONSTRUÇÃO 

Abril 2008, 
Fotografia Fernando Guerra
Produção fotográfica Sérgio Guerra

Arquitecto Cassiano Branco - 1937/61. Portugal dos Pequenitos, 
Coimbra. Casa Transmontana. Foto encontrada em www.ufp.pt




Fotos copiadas da revista Arquitectura & Construção de Abril 2008. (excepto as assinaladas)




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