sexta-feira, 5 de outubro de 2012

5 de Outubro de 1910

A Revista à portuguesa, a liberdade no palco
por
Vítor Pavão dos Santos
Jornal Se7e 04-10-1978

Coisas boas em jornais

Nascimento Fernandes e Carlos Leal, os compadres de «Agulha em Palheiro», observam os padrecas expulsos, na Praça dos Restauradores.



«O 5 de Outubro de 1910 também para a revista foi uma grande data, pois restituiu-lhe a liberdade de criticar tudo e todos, livrando-a, por largos anos, da sua mais feroz e constante inimiga: a censura.
E porque o teatro de revista contava então com artistas e autores de grande talento, essa liberdade foi aproveitada para criar uma série de espectáculos memoráveis, que fizeram da década de 10 talvez a mais brilhante de toda a já longa história da revista à portuguesa.


Nascimento Fernandes, o actor de revista mais popular da década de 10, e André Brun, autor de revistas e comédias de grande sucesso, em desenhos de Amarelhe.



«Apoteoses à «portuguesa»

Passada a apertada ditadura de João Franco, que terminou em sangue em 1908, com o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, durante o reinado breve de Manuel II conheceu-se um abrandamento da censura. Contudo, apesar de então se registarem alguns êxitos de estalo, o lápis azul ainda riscava que se fartava, banindo os acontecimentos políticos mas fechando os olhos à pornografia, estado de coisas que os críticos do tempo não se atemorizavam nunca de denunciar nos seus jornais.
Na noite em que havia de rebentar a revolução republicana funcionavam em Lisboa seis teatros e doze animatógrafos, além, claro está, do Coliseu dos Recreios, onde The Nicoleto's, fantasistas sobre aeroplano, causavam sensação.
Quanto a revistas, no Music-Hall, das 8 à meia-noite, entre variedades várias, o espectador podia saborear De olho alerta, com o aplaudido quadro «Na tasca dos Tesos», enquanto no Teatro Salão Fantástico se representava. É Fantástico. Portanto, apenas duas revistas e das mais modestas.
Depois, estalou a revolução, houve tiros em barda, ferveu a bordoada, a família real pôs-se ao fresco e eis Portugal transformado, a par da França e da Suíça, em mais uma República da Europa. Passada pois a primeira agitação, os teatros começaram a ir abrindo. Logo no dia 11 de Outubro reapareceu É Fantástico, toda orgulhosa de ser a única revista em cena, e anunciando uma nova apoteose: «A República Portuguesa».
A 12, foi a vez do velho Teatro das Variedades reabrir as suas portas, oferecendo uma nova e exaltante apoteose, em que a «Portuguesa» era cantada por toda a companhia.
Por último, a 13, o Teatro Etoile, que ficava ali à Estrela, juntou também à revista Duras de roer a já indispensável apoteose à República.
Entretanto, as revistas de maior sucesso das últimas temporadas, ABC, Sol e sombra, País do vinho, eram repostas com nova desenvoltura e libertas de antigos cortes. Não aparecia, no entanto obra nova de interesse.
Mais duas revistas, estreadas em Dezembro, Roupa lavada, no Teatro Alegria, e Antes e depois, no Fantástico, pouco se aproveitaram da liberdade readquirida. E assim terminou 1910, tendo como único grande sucesso a opereta O fado, toda convencional e passada no século XIX, entre marialvas e severas.


A apimentada Júlia Mendes, que morreu logo em 1911 e deixou nome que ainda perdura.


As sindicâncias indiscretas

O ano de 1911 começou mal para a revista. A 2 de Fevereiro morreu, com apenas 26 anos, Júlia Mendes, um dos grandes nomes dessa época, famosa pela genica das suas rábulas e o sentimento dos seus fadinhos, lenda boémia que perdurou até aos nossos dias.
Finalmente, a 4 de Fevereiro, o famoso empresário e autor Luís Galhardo meteu ombros a apresentar no Avenida, a primeira revista em que se criticavam decididamente os novos tempos. Rotulada de revista política, Nem mais nem menos prometia fazer sensação.
Mas o público, sempre imprevisível, é que não gostou nada, recebendo o espectáculo, na estreia, com uma monumental pateada e atirando saquinhos de pimenta para o palco. Ao fim de 12 dias a peça, saía de cena, sem ter conseguido agradar a ninguém. Era uma linguagem nova que se tornava necessário encontrar. Entretanto, a gente dos teatros andava em grande agitação, pois, à mistura com as questões políticas, sociais e económicas, surgira mais a chamada «questão teatral», a que os jornais davam grande destaque.
É que a jovem República também se interessava em debater o Teatro, procurando dar-lhe uma nova dignidade. Por isso, uma portaria nomeara uma comissão de inquérito à arte teatral, a tão falada «sindicândia», que muitos tinham por insultuosa. Em face de tal medida, Júlio Dantas, republicano e comissário do Governo junto do agora chamado Teatro Nacional de Almeida Garrett (ex-D. Maria II) estava demissionário, assim como o inspector do Conservatório, outro dramaturgo de fama, mas este convicto monárquico: Eduardo Schwalbach.
Talvez para desafrontar Schwalbach, o público acorria a rir com uma das suas comédias mais célebres: A bisbilhoteira, reposta no República (ex-D. Amélia e futuro S. Luiz), com Adelina Abranches e Chaby Pinheiro. Quando chegou o Carnaval, foi A bisbilhoteira, como era de regra reforçada com uma pequena revista, de apenas uma hora e um quarto: Num rufo.
Servida por um elenco de nomes grandes, com os compadres feitos por Chaby, no «Homem do Bombo», e Adelina, numa recriação do seu travesti na famosa peça O Garoto de Lisboa, o êxito ultrapassou largamente o Entrudo. Só para ouvir Ângela Pinto cantar, em francês, em dueto com Alexandre de Azevedo, a «Valsa dos apaches», não havia teatreiro que lá não fosse várias vezes. A revista começou a aprender a falar.


Nascimento Fernandes no policia, Carlos Leal no compère, Lucinda do Carmo na bandeira monárquica e Delfina Vitor na bandeira republicana, no célebre número das Bandeiras de «Agulha em Palheiro», (1911).


A «agulha em palheiro»

Mas o primeiro sucesso a valer da revista em liberdade estreou-se, ainda em Fevereiro, no Apolo (ex-Príncipe Real), chamavá-se Agulha em palheiro e ficou em cena a temporada toda, fartando-se depois de ser reposta.
Os seus autores, Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e Lino Ferreira, tinham já um nome cuja fama não ia parar de crescer, a música era de Filipe Duarte e Carlos Caldéron, maestros dos bons, e os figurinos, nada mais nada menos que da autoria de José Malhoa, Alberto Sousa, Valença e Emérico Nunes. Tudo de primeira ordem. Também o elenco reunia quanto havia de melhor no género: jovem, Carlos Leal, compère por excelência durante mais de 40 anos, era o Zé Quintolas. Nascimento Fernandes, o cómico de talento fulgurante, que havia de dominar, quase sem competição, a década de 10, dividia-se entre o Galapito e o indispensável polícia 123. Lucinda do Carmo, actriz versátil, que saltava dos dramas de Ibsen para a revista apimentada, apesar de já andar pelos 50 anos, era ainda uma grande vedeta e emprestava a sua lendária mordacidade à figura da «Sindicância», essa novidade da vida portuguesa que a todos assustava e tudo devassava.
Liberta e irreverente, a revista encontrara enfim o modo de dissecar, à gargalhada, o panorama nacional e as suas novas perspectivas. Um dos quadros mais ousados era, pela certa, o que ironizava a expulsão das ordens religiosas, metendo a ridículos os padrecas, que cantavam compungidos: «Adeus belas frescatas / com freitas e beatas». Depois de tantos anos de silêncio imposto a tudo o que tivesse cheiro de sacristia, uma tal liberdade era uma festa. E havia, como era de esperar, um número às greves que rebentavam sem parar, pondo em cena «costureiras, floristas, sopeiras, telefonistas e parteiras, a reclamarem furibundas, ante a plateia deliciada, e a cantarem em coro: «Seja uma por todas e todas por uma / na greve ao patrão».


Chaby Pinheiro, o homem do bombo, e Adelina Abranches, o garoto de Lisboa, compadres de «Num Rulo».


Também as disputas em mudar ou não a bandeira nacional, assunto que mobilizara a opinião pública, mereciam um quadro que alcançou foros de escândalo. Enquanto Lucinda, na deposta bandeira azul e branca, se cobria de ricas sedas, entenderam os figurinistas que a jovem cantora Delfina Vítor, que representava a triunfante bandeira verde e encarnada, se deveria vestir de tecido popular e grosseiro. Mas a actriz é que não esteve pelos ajustes. Sentindo-se amesquinhada, rasgou o fato em pleno ensaio e gritou: «Não visto esta bodega!»
O caso constou, e tanto bastou para que se armasse uma pateada valente na estreia, sendo a actriz vaiada aos gritos de «Fora, talassa!», o que, para o tempo, seria como hoje corrê-la como fascista. Debulhada em lágrimas, a pobre Delfina mal conseguia explicar que, ao fim e ao cabo, o que ela queria era vir vestida com sedas, como as vedetas, e não havia política nenhuma no caso. Enfim! O caso pitoresco passou, Delfina agradou e a revista, uma vez encontrada a sua nova maneira de falar, foi acumulando êxitos, como Có-có-ró-có (1912), O 31 (1913), Novo mundo (1916), e tantos mais, contanto para escrevê-la com Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos (a imbatível parceria), o grande André Brun, Luís Galhardo, Lino Ferreira e uma mão-cheia de outros. E actores como Nascimento Fernandes, Estêvão Amarante, Carlos Leal, Amélia Pereira e Joaquim Costa, não paravam de somar sucessos.
A liberdade era usada para criticar tudo e todos, e não havia politico que lhe escapasse. E sempre de cabeça erguida e com gargalhada sonante, lá seguiu a revista o seu caminho.»

Vítor Pavão dos Santos
Jornal Se7e 4-10-78
Fotos copiadas do Jornal Se7e



quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A Fábrica STEPHENS da Marinha Grande


O último dia
Fotos LUIZ CARVALHO
EXPRESSO, 13 de Junho de 1992


 Coisas boas em jornais



A Stephens fechou e houve quem chorasse por ela.
«A Marinha já não o que era»


ISABEL Constâncio desligou a máquina que há 24 anos — completos naquela derradeira manhã — a acompanhava no seu dedicado trabalho de operária vidreira da Fábrica Stephens. «Não sei como vou poder ficar em casa a ouvir as sirenes de outras fábricas». As lágrimas caem-lhe pelo rosto, como se esta mulher — de aparência tão forte — representasse o papel de heroína de um filme a preto e branco da fase neo-realista italiana.


O último dia da Fábrica Escola Irmãos Stephens começou como qualquer um dos outros milhares de dias que preencheram os mais de duzentos anos da história da Marinha Grande. Cada operário ocupou o seu posto como se fosse cumprir uma missão superior. O fiscal da linha de fabrico continuava a rejeitar, com um X desenhado a tinta vermelha, as peças imperfeitas; o olhar de cada trabalhador seguia, atento, cada uma delas a desfilar rumo ao armazém. 


No final do dia, todos deixaram a fábrica arrumada, pronta para reabrir no dia seguinte, não obstante cada um deles compreender, com precisão, a inutilidade dos seus últimos gestos, o patético da rotina, a impossibilidade de qualquer esperança. O enorme espaço vazio transformou-se numa espécie de catedral — um monumento ao dia findo e aos milhares de dias que o precederam, até ao tempo em que esta e outras fábricas fizeram nascer a cidade, sem preverem tão injusta recompensa. Envolta já no lusco-fusco da tarde, ela parece, agora, eterna, perene, quase tão mágica como o cristal que fabricava.


ANTÓNIO Loureiro guarda num saco o que lhe resta das recordações daquele mundo que o transformou num especialista do cristal: uma cassete de música avulsa, um totoloto falhado, um comunicado sindical e por fim, quando já atravessava o portão de ferro forjado, a sua ficha de operário dedicado, que um colega lhe passou para as mãos. Em poucas palavras a ficha descreve a sua história e a de muitos outros que, sendo outros, são os mesmos. No primeiro dia de Setembro do ano de 1960, foi admitido. 


Recebia 12 escudos, diariamente. No verso, onde tinham registo as sanções disciplinares, a folha é orgulhosamente branca. António Loureiro é irrepreensível e não foi seguramente por sua culpa que a Fábrica fechou. Olha, uma última vez, para trás. A chaminé ainda fumega, mas já sem o fôlego dos dias felizes. Os fornos começaram a arrefecer há já alguns dias, mas uma morte, nem por ser programada, é menos triste. Nem sequer de eutanásia se trata, que nem todos os que dependiam daquela vida consentiram no seu fim. António caminhou para o largo fronteiro e juntou-se aos seus 200 colegas que, reunidos, se preparavam para prestar uma derradeira homenagem ao «ex-libris» da Vila.





DISCURSOS, flores, lágrimas, e meia dúzia de punhos já erguidos com timidez, quando o orador, sindicalista, ainda grita: «A luta continua.»
Uma operária exclama: «Fomos enganados! Mataram a nossa alma! Esta Marinha Grande já não é o que era». Tem razão — que é feita da vila operária, das tradições da greve geral de 1934? Como pode haver «vanguarda» se as novas fábricas de moldes funcionam com computadores e meia dúzia de operários?


Não foi só a Stephens que morreu, com ela foi-se a alma de muita gente. Ali se formaram gerações daqueles operários que vinham nos livros: com espírito de classe, solidários, firmes como o aço e transparentes como o vidro que fabricavam. Agora restam-lhes as palavras escaldantes que contrastam com o arrefecimento dos fomos que alimentaram a Fábrica e o espírito de luta de quem lá trabalhava. 


Também a luta arrefeceu, dando lugar à resignação. Podem dizer, como disseram, que o encerramento da Stephens é anti cultural, que é uma perda histórica, que é contra os trabalhadores e o povo da Marinha, mas sabem, de antemão, que é impossível voltar atrás. Todos os tempos deixam saudades, mesmo os piores, aqueles de uma jorna de 12 escudos — e todo o presente cria revolta. Pelo passado e pelo presente se gritam, em tom de futuro, as palavras mágicas de quem nada mais pode dizer — «A Luta Continua! A Luta Continua! A Luta Continua!» Uma operária destaca-se do grupo e, de câmara fotográfica em riste, tira o último retrato.
Os tempos mudaram...

EXPRESSO, Sábado, 13 de Junho de 1992



Fotos Luiz Carvalho, copiadas do jornal Expresso




A Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande

Foto da gravura encontrada em marcasdasciencias.fc.ul.pt

(...) Após a morte de Guilherme Sephens a fábrica passou a ser administrada pelo seu irmão, João Diogo, que, apesar de algumas dificuldades, nomeadamente durante as invasões francesas, manteve um extraordinário desenvolvimento e progresso. Em 1826, João Diogo faleceu deixou em testamento a Fábrica à “Nação Portuguesa”. Demoraria cerca de dois anos até que o governo decidisse que, não tendo capacidade para administrar a Fábrica, iria abrir concurso para a sua exploração. Entre 1827 e 1919 a Fábrica conheceu vários arrendatários e tempos de prosperidade, realizando grandes projectos que desenvolveram tecnologicamente a Fábrica, produzindo vidro de grande qualidade, e períodos de grandes dificuldades, chegando mesmo a encerrar e os trabalhadores terem de procurar emprego na construção de estradas ou limpezas do pinhal.
Em 1919 o Governo decide iniciar a sua exploração através de Comissões Administrativas. Destaca-se o período (1928-1966) em que a administração esteve a cargo do Engenheiro Acácio Calazans Duarte. Além do grande desenvolvimento tecnológico que deu à Fábrica, passou a ser obrigatório a formação dos aprendizes dos sectores de decoração, pelo menos em desenho e a frequência da escola nocturna da Fábrica, pelos menores analfabetos que ali trabalhavam. 
 A partir de 1954 um novo regulamento reformula a Fábrica, transformando-a num centro de desenvolvimento da indústria vidreira. Passou a designar-se Fábrica Escola Irmãos Stephens. Fabricava cristalaria de qualidade, desenvolveu a vertente artística do vidro, tendo contado com algumas parcerias, entre elas, com a Escola Nacional de Belas Artes. Em 1957 passou a ser superintendida pelo Instituto Nacional de Investigação e em 1977 passaria a Empresa Pública, conhecendo várias administrações até ao seu encerramento em 1992. Em 1993 foi adquirida pelo dinamarquês Jorgen Mortensen e reactivada. Actualmente já não de encontra em laboração.
(In, iejclubedopatrimonio.blogspot.pt - 29 de Janeiro de 2011Ler tudo aqui





terça-feira, 2 de outubro de 2012

Marlon Brando - O Primeiro Filme


(Dedicado ao Nuno)


Marlon Brando, com o guião do filme, durante as filmagens de O Desesperado (The Men, 1950) de Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando conversando com Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.


O primeiro filme de Marlon Brando foi, O Desesperado (The Men),  de 1950 e foi também o primeiro filme em que teve o principal papel e foi quase sempre assim. Foi dirigido por Fred Zinnemann, um dos mais respeitados cineastas do cinema americano.


Marlon Brando, em ensaios de O Desesperado (The Men, 1950) de Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.


«O filme, com argumento de Carl Foreman e música de Dimitri Tiomkin, tem como tema uma das várias cicatrizes deixada pela 2ª Guerra Mundial, episódio caro à sociedade americana. Dessa vez, os efeitos colaterais causados pelo conflito rebatem no drama de soldados paraplégicos, entre eles o rebelde e revoltado tenente Ken Wilcheck (Brando), que não se conforma com sua nova situação.
Internado no Clube de Campo, o recanto dos Veteranos Paralíticos da América, como ironiza um dos pacientes, ele tem a assistência do experiente e realista Dr. Eugene Brock (Everett Sloane). Deprimido, tenta retomar sua vida normal de civil junto com a namorada Ellen (Teresa Wright). Mas as dificuldades do dia a dia e os olhares de auto-piedade de desconhecidos, faz com que, amargurado e inseguro, volte ao hospital.

Marlon Brando, praticando com a cadeira de rodas perante o riso de verdadeiros paraplégicos. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Directo, realista e extremamente contundente, esse drama regista nos mínimos detalhes o talento do grande director Fred Zinnemann, um profissional que tinha grande habilidade tanto em extrair actuações memoráveis de seus actores, como em humanizar temas espinhosos, como o adultério, o alcoolismo, a perda da fé e, neste caso, a tragédia dos heróis de guerra.
Fred Zinnemann, austríaco de nascimento, utiliza de forma extremamente inteligente e sensível os dramas subentendidos retirados da 2ª Guerra mundial para traçar enredos pungentes, cheio de conflitos existenciais. A guerra, (apenas um adereço decorativo), mas não menos fundamental, surge como pano de fundo essencial para conflitos perturbadores. No caso de O Desesperado (The Men), não há como não perceber a velada crítica do argumentista Carl Foreman (um dos melhores) ao governo do seu país, que parece tratar de forma secundária o problema social desses heróis “paralisados”, mas também ao cinismo que perpassa às pessoas que nos cercam quando deparam com uma realidade que foge das suas preocupações burguesas.

Fred Zinnemann, Teresa Wright e Marlon Brando, durante as filmagens de O Desesperado (The Men, 1950) de Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

A cena em que um veterano da 1º Guerra Mundial trata Ken e o amigo Leo (Richard Erdman) como marginalizados, meros mendigos de guerra é de uma virulência pungente. Também é extremamente angustiante ver Brando quase os 90 minutos do filme sentado numa cadeira de rodas. Mas confiante da sua actuação  o jovem actor esbanja talento a reboque de uma personagem tão rica de nuances dramáticas.
Claro que O Desesperado (The Men), está longe de ser uma de suas melhores performances no cinema, mas trata-se de uma estreia emblemática, de peso, retumbante. E, evidentemente, já exibindo aos olhos encantados do mundo, a eterna beleza que o consagraria.»
(Texto de luciointhesky.wordpress.com)


Marlon Brando. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando a falar com a avó, Elizabeth Myers (que devia viver perto do local de filmagens), que diz dele "é teimoso como uma mula, mas sincero". Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando, em ensaios de O Desesperado (The Men, 1950) de Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando, durante as filmagens de O Desesperado (The Men, 1950) de Fred Zinnemann. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando na casa da avó, Elizabeth Myers. Van Nuys, Los Angeles. 1949. Edward Clark.

Marlon Brando (1924-2004)



(Fotos de Edward Clark e LIFE Archive)



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Chaplin e as mulheres

Coisas boas em jornais



Charlie Chaplin, Oona O'Neil e os filhos em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.


«CHAPLIN terá sido, como poucos, um dos raros artistas sobre quem, à altura da sua morte, tudo estava dito, e as notícias e comentários que no dia seguinte à noite de Natal invadiram os meios de comunicação, não puderam, por isso, evitar de repetir velhos lugares-comuns, citações de intelectuais e de homens de Estado, frases superlativas e encómios avulsos. Não podemos censurar-lhes, pois, a falta de originalidade acerca deste homem glorificado em vida, que atravessou um século, que influenciou multidões, que povoou a memória infantil de vários continentes, porque ele era um daqueles seres privilegiados que o destino quis que tivesse encontrado no caminho uma arte que havia nascido com ele. Encontro sem o qual ele não teria talvez passado de um modesto artista de variedades em "tournées" esgotantes entre a América e a Inglaterra ou mesmo - quem sabe? - teria acabado vítima sem celebridade de um processo de escândalo por violação de menores. A verdade é que se toda a gente conhece de cor os seus filmes e se as suas posições humanistas durante a guerra lhe valeram dissabores e aplausos públicos cujo eco se mantém, pouca gente se lembra já dalgumas peripécias que envolveram a vida amorosa e mesmo conjugal deste homem que foi íntimo de Churchill, de Einstein, de Nehru, recebido com honrarias em todas as cortes da Europa, depois de ter sido votado ao ostracismo por uma América puritana, onde Hayes e McCarthy ditavam a lei.»



Charlie Chaplin e sua família. Da esquerda para a direita: Victoria, Josephine e sua amiga Elyane, Chaplin e a esposa Oona e os actores Marlon Brando e Sophia Loren com Annette ao colo, durante as filmagens de "A Condessa de Hong Kong", nos Pinewood Studios em Londres. Reino Unido, 1966. Foto Alfred Eisenstaedt e LIFE Archive.

Um Casanova sentimental


O casamento com Oona O'Neill em Junho de 1943 — não sem algumas contrariedades, pois a filha de Eugene O'Neill, então com 18 anos, menos 38 do que Chaplin, teve que se opor à desaprovação paterna — e a imagem de felicidade conjugal do controvertido patriarca e milionário vivendo na Suíça rodeado de filhos e netos, iria fazer esquecer, nos últimos 30 anos da sua vida, a outra imagem do sátiro impenitente, cujos três casamentos precipitados, tão breves como turbulentos, e não menos processos e inconfidências de amantes despeitadas, fizeram durante anos o gáudio da Imprensa que alimentava a curiosidade malsã de um público volúvel que em pouco tempo passava da mais violenta invectiva à mais histérica das admirações. Era legendária a sua atracção por jovens menores - todos os seus casamentos, excepto o com Paulette Godard, se fizeram com meninas entre os 16 e os 18 anos - "virgens inocentes e indefesas" para a opinião puritana, perversas e fatais Lolitas diria Nabokov; que lhes gabou os encantos como nenhum outro. 


Charlie Chaplin e Paulette Goddard no filme Tempos Modernos (Modern Times, 1936). Li em algum lado que Chaplin sustentou Paulette Goddard até à sua morte. Foto encontrada em theroaring20s.deviantart.com


O casamento com Oona parece vir assim selar uma vida em que este Casanova sentimental foi vítima tanto dos seus imoderados ardores pelo belo sexo como dos rigores da justiça, tanto da sua imprudência como da hipocrisia de algumas falsas inocências que, à sua sombra, quiseram fazer fortuna e carreira. Mas se repararmos que o casamento com a filha de O'Neil é exactamente contemporâneo do seu projecto de "Mr. Verdoux", a verdadeira face de Charlot, como sempre, aparece indissociável da sua máscara e teremos que ver no filme que ele fez sobre Landru — talvez a sua obra mais genial.— a confissão da sua irremediável misoginia e, nesse casamento "feliz", uma prudente concessão aos seus instintos. Ou, pelo contrário, Verdoux seria o exorcismo definitivo com que ele entrava, magnífico, na maturidade de cineasta, levado a descobrir o que Renoir soube sempre melhor do que ninguém: que não há nada mais teatral do que a sinceridade. 


Verdoux casa com Oona O'Neil


Mildred Harris, 1ª mulher de Chaplin.
Foto encontrada em wikipedia.com
A história dos seus três casamentos antes de Oona O'Neil, é tão acidentada como os seus  divórcios, e não menos turbulenta que as suas aventuras extra-conjugais. Em 1918, então com 38 anos e já célebre e festejado em toda a América, Chaplin casa pela primeira vez: com Mildred Harris, cuja idade oscila, segundo os biógrafos, entre os 15 e os 16 anos. Um filho, que morreria três dias depois, um divórcio dois anos mais tarde, a primeira campanha pública contra Chaplin que é acusado pela esposa de "crueldade mental" e obrigado a uma indemnização de 100 000 dólares, depois de ter fugido com o negativo do seu último filme "O garoto de Charlot", que os advogados de Mildred Harris lhe ameaçavam confiscar. É a primeira vez, no entanto, que surge entre Chaplin e a mulher o conflito aberto — ciúme, inveja, sentido do negócio? — entre a carreira e a vida conjugal, historia que se irá repetir, vezes sem conta, sempre que as mulheres com quem viveu ou casou tentavam fazer (ou continuar) a sua carreira fora do seu controlo. No caso de Paulette Godard, por exemplo, quando decidiu intimamente que a iria utilizar em "Tempos Modernos", Chaplin começa por comprar a Hal Roach o contrato que o ligava à futura esposa. E na época em que Edna Purviance era a sua actriz preferida — mais  precisamente no princípio dos anos 20 – Chaplin resolveu encomendar a Sternberg um filme que, até hoje, salvo uns raros eleitos na época, nunca ninguém viu nem provavelmente verá. As razões obscuras e a história secreta deste filme que é dos mais misteriosos da história do cinema, dão-nos uma pequena ideia do personagem controverso que era Charlie Chaplin.



O romance com Pola Negri


Pola Negri e Charlie Chaplin. Foto 
de mothgirlwings.tumblr.com
O seu romance com Pola Negri entre 1922 — data da sua chegada á América – e 1923 – altura em que a actriz declara publicamente a sua ruptura com Chaplin – foi outro dos casos sentimentais que encheram as colunas da Imprensa americana durante mais de um ano e não deixa de ser curioso compararmos as: versões que ambos dão do seu romance: Chaplin, que lhe dedica duas páginas secas e altivas na sua autobiografia, e Pola Negri que com ele: ocupa um Capitulo nas suas "Memórias de uma estrela". Apesar de reconhecer aqui e ali, ao longo das 25 páginas em que esmiuça a sua vida com Chaplin, algumas qualidades, "gentileza", "graça", "simpatia", "generosidade" e de confessar que ele era um "delicioso companheiro de viagem", Pola Negri não esconde o seu despeito pela forma como Chaplin fugia como uma enguia do compromisso público do casamento que parece obcecá-la tanto e de que Chaplin parece fugir - e com boas razões - como o diabo da cruz; e reserva-se evidentemente a última palavra na sua ruptura com ele, fazendo questão de deixar claro que foi ela quem o pôs na rua depois de lhe ter aturado a vaidade mesquinha, a inveja e a presunção. 



O escândalo de Lita Grey


Charlie Chaplin e Lita Grey. Foto de www.listal.com
O divórcio de Lita Grey em 1927 seria, porém, o caso mais despudorado e revoltante e o que custou a Chaplin mais dissabores e mais dólares, o que mais prejudicou a sua carreira, o escândalo que mais desencontradas paixões levantou em toda a América. Lita Grey, com quem ele casara dois anos antes secretamente numa pequena cidade do México, e de quem viria a ter dois filhos, iria persegui-lo em tribunal, instada pela cupidez da mãe, depois de tornar públicas as mais sórdidas alegações de divórcio. Ávida de dinheiro e de celebridade, Lita Grey não hesitou em vender ao "New York Times" as suas confissões, que dias depois eram vendidas a público num folheto de 25 cêntimos o exemplar. Contra a clamorosa prova de puritanismo fascista, que foi o processo, se levantaram várias vozes de intelectuais e artistas de todo o mundo, mas o mais veemente protesto veio de Louis Aragon que num famoso Manifesto, intitula "Hand's off Love" ("Tirem as mãos do Amor") lamentavelmente pouco conhecido, defendia a figura de Charlot e o génio de Chaplin, fazendo daquele processo bandeira contra a hipocrisia sexual pequeno-burguesa, contra os juízes e o capitalismo americano. E o início desse extenso Manifesto, que teve logo a adesão de todos os grandes e pequenos nomes do surrealismo (Breton, Arp, Desnos, Éluard, Max Ernst, Lenis, Masson, Péret, Prévert, Queneau, Man Ray, Sadoul, Tangúy e muitos outros) e cuja violência verbal, no seu estilo de contra-ataque tão caro aos surrealistas, só tem igual na violência torpe das acusações de Lita Grey de que a opinião pública americana mais conservadora e puritana se fizera imediatamente eco e defensora.

António-Pedro Vasconcelos, texto e titulos, em Expresso 30-12-1977


Charlie Chaplin e sua filha Josephine em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.




«Tirem as mãos do amor»



Os surrealistas em defesa de Charlot


CHAMOU-SE "Hands off Love" ("Tirem as mãos do amor") o violento Manifesto com que Louis Aragon - logo apoiado pelas grandes e médias estrelas do Surrealismo - saltou em defesa de Charlie Chaplin, aquando do seu escandaloso divórcio com Lita Grey, em 1927, atacando ao mesmo tempo todo o reaccionarismo que se concentrou em defesa dos chamados "bons costumes". Devido à sua extensão, não podemos transcrever na íntegra (e valeria a pena, dado que o documento é hoje pouco conhecido), mas eis alguns fragmentos exemplificativos do estilo verrinoso desse autêntico panfleto.

(...) JÁ é monstruoso pensar-se que se existe um segredo profissional para os médicos, segredo que não é mais afinal que salvaguarda de um falso pudor e que, no entanto, expõe seus detentores a repressões implacáveis, em contrapartida não existe um segredo profissional para as mulheres casadas. E, no entanto, o estado de mulher casada é uma profissão como qualquer outra, a partir do dia em que ela reivindica como devida a sua ração alimentar e sexual. Um homem que a lei obriga a viver com uma só mulher não tem outra alternativa se não partilhar com ela os seus próprios hábitos e as suas próprias inclinações, colocar-se à sua mercê. Se ela depois o expõe à maldade pública, como é que a mesma lei que deu à esposa os mais arbitrários direitos não se vira contra ela com todo o rigor que merece um abuso de confiança de tal modo revoltante, uma difamação tão evidentemente ligada aos mais sórdidos interesses? E além do mais como se pode entender que os costuma sejam matéria de legislação? Que absurdo! Mas para circunscrever o discurso aos "escrúpulos" assaz episódicos da "virtuosa" e "inexperiente" senhora Chaplin, é necessário dizer que é cómico considerar "anormal, contra a natureza, perverso, degenerado e indecente" o hábito do "fellatio" ("todos os casais o praticam", diz muito bem Chaplin). Se se pudesse abrir, de um modo razoável, uma livre discussão sobre os costumes, seria normal, são, decente, virar contra ela, a denúncia que esta esposa faz, convencida de se ter "humanamente" recusado a práticas tão difundidas e perfeitamente puras e sustentáveis. Mas como é que uma tal estupidez não cessa de fazer apelo ao amor, como no caso desta rapariga que aos 16 anos e dois meses se casa "conscientemente" com um homem rico e vigiado pela opinião pública, e ousa fazê-lo hoje com os seus dois rebentos, nascidos da orelha evidentemente, uma vez que sustenta que "o acusado nunca teve com ela relações conjugais como é hábito entre os cônjuges", estas crianças que agita como actos de acusação; em apoio das suas próprias exigências íntimas? Os sublinhados são nossos, e a linguagem revoltante que sublinhamos, vamos buscá-la emprestada pela acusadora e seus advogados que procuram, antes de tudo o mais, contrapor a um homem vivo os mais repugnantes lugares-comuns dos sentimentos cretinos, a imagem da mãezinha que chama "papá'' ao seu amante legal".

Depois de desmontar uma a uma as cinco acusações dos advogados de Lita Grey, e de aproveitar para afirmar que "a conduta deste homem faz o processo do matrimónio, da codificação imbecil do amor", Aragon conclui no bom estilo surrealista da época:

"Pensamos naquele admirável momento de "Charlot e o Conde", quando durante uma festa Charlot vê passar uma bela mulher, fascinante quanto possível, e num abrir e fechar de olhos abandona a própria vivenda, para a seguir de casa em casa, depois pelo terraço, sem que ela se dê conta. Às ordens do amor, sempre esteve às ordens do amor, eis o que proclamam em uníssono a sua vida e todos os seus filmes. Do amor imprevisto, que é, antes de tudo o mais, um grande, um irresistível apelo. Então é preciso abandonar tudo, e por exemplo, no mínimo, um lar. O mundo com os seus bens legais, a dona de casa e os fedelhos, protegidos pela policia, a caixa de depósitos: é de tudo isto que se evade sem hesitar, seja o homem rico de Los Angeles;. seja o pobre dos subúrbios, desde "Charlot empregado de banco" até à "Corrida do Ouro". Tudo o que tem na mesa, moralmente, é apenas aquele dólar de sedução que qualquer um lhe faz perder, e que no café do "Emigrante" cai continuamente ao chão das calças rotas, aquele dólar que se calhar não passa de uma aparência, fácil de se torcer com uma dentada, simples moeda falsa; que será recusado mas que permite que por um instante se convide para a mesa a mulher semelhante a uma vampe de fogo, a mulher "maravilhosa", e cujas linhas serão para sempre céu. (...)"

Expresso 
30-12-1977



Charlie Chaplin descansando durante as filmagens de Limeligh em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.