segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Eça de Queiroz e a falta de água em Lisboa


EÇA, A ÁGUA, A TESOURA,
A MOSCA E A ELECTRICIDADE

In, Diário de Lisboa, suplemento A Mosca de 26-12-1970



Coisas boas em jornais


«Certo dia faltou água em Lisboa e Eça de Queirós escreveu uma carta ao dr. Carlos Pinto Coelho, então director da Companhia das Águas de Lisboa, propondo que lhe fosse permitido retribuir o corte que lhe fora feito em termos que «A Mosca» não pode deixar de aplaudir. Transcrevemos a carta de Eça (gentilmente cedida pelo dr. António Bacelar Carrelhas) porque julgamos as medidas propostas pelo grande escritor aplicáveis aos Ex.mos directores das Companhias reunidas de Gás e Electricidade sempre que falta corrente numa área de Lisboa como tem acontecido ultimamente.»


IL.mo e Ex.mo Senhor Carlos Pinto Coelho, digno director da Companhia das Águas e digno membro do Partido Legitimista:
Dois factos igualmente graves e igualmente importantes, para mim me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as ultimas vitórias das forças Carlistas sobre as tropas Republicanas em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cosinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os Carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que de comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas à justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o meu contador, Ex.mo Senhor, que eu o interponha nas relações de sensibilidade de V. Ex.ª com o Mundo externo; e que essas lágrimas benditas de industrial e de politico caiam na minha banheira.
E, pago este tributo aos nossos afectos falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos contratos. Em virtude do meu escrito, devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim, temos nós - um para o outro - um certo número de direitos e encargos. Eu obriguei-me para com V. Ex.ª a pagar o desvio de uma encanação, o aluguer dum contador e o preço da água que consumisse.
V. Ex.ª pela sua parte obrigou-se para comigo a fornecer a água do meu consumo.
V. Ex.ª fornecia, eu pagava. Faltamos, evidentemente à fé deste contrato: eu se não pagar, V. Ex.ª se não fornecer.
Se eu não pagar, faz isto: corta-me a encanação. Quando V. Ex.ª não fornece o que hei-de eu fazer, Ex.mo Senhor? É evidente que para o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V. Ex.ª.
Oh! E hei-de cortar-lha!...
Eu não peço indemnizações pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água.
Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos...
Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável, perante o direito e a justiça distribuída: - Quero cortar uma coisa a V. Ex.ª.
Rogo-lhe, Ex.mo Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas nem tergiversações qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu posso cortar a V. Ex.ª.

Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª com muita consideração e com umas tesouras

a) EÇA DE QUEIROZ





Recorte do Diário de Lisboa e Eça de Queiroz (1871). 
Foto de H.S. Mendelssohn, encontrada em iurisdictio-lexmalacitana.blogspot.pt



"Políticos e fraldas devem ser trocados 
de tempos em tempos pelo mesmo motivo"
(Eça de Queiroz)





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