terça-feira, 27 de março de 2012

O REALIZADOR DO BALOUÇO VERMELHO


por
JOÃO BÉNARD DA COSTA 

1. Segunda-feira, salvo erro, li no PÚBLICO, em letra pequenina, numa coluna pequenina de uma página pequenina, a notícia da morte de Richard Fleischer, que lá para o fim de 2006 (a 8 de Dezembro) ia fazer 90 anos.
     Pouca gente deve ter estremecido como eu estremeci. Não por questões de sensibilidade (e daí...) mas por questões de conhecimento. Este cineasta americano, filho de Max Fleischer, pioneiro máximo da animação (rival directo de Walt Disney nos anos 20 e criador do famoso Popeye marujo) realizou 47 longas-metragens entre 1946 e 1990 (média superior a um filme por ano) mas nunca foi nome muito divulgado fora de reduzidos círculos cinéfilos. Muitos se lembrarão de êxitos tão grandes como 20.000 Leagues Under the Sea (1954 e James Mason como Capitão Nemo) ou Doctor Dolittle (1964) um "must" para natais televisivos. Mas o realizador nunca teve "the name above the title" e, embora activíssimo nas décadas dos autores e da política deles, nem os inventores da teoria, nem os seus seguidores de além-Atlântico, alguma vez o puseram ao lado dos maiores. Não o trataram mal, ou seja, nem "maldito" se lhe pode chamar. Mas raramente lhe elogiaram mais que as boas maneiras, o bom gosto, o muito saber do ofício. "Se nunca foi um autor no sentido nobre do termo, foi muito mais do que um simples artesão" é o elogio fúnebre que tenho mais à mão para servir. E, como em alguns outros casos semelhantes (Andre DeToth, John Farrow, Rowland V. Lee, Richard Quine, para não vos amassar com listas e nomes), não percebo as reservas nem a segunda divisão.


Joan Collins em The Girl in the Red Velvet Swing de Richard Fleischer, 1955. 
Foto encontrada em www.doctormacro.com


     Vou de escantilhão até 50 anos atrás, o que não se pode dizer que seja tempo para amores passageiros. Quando descobri James Dean, de pull-over amarelo a um canto do scope de East of Eden; quando vi Kim Novak, vestida de fada embruxar-se pelo tronco nu de William Holden em Picnic; quando Marilyn arrefeceu a roupa de baixo no congelador do seu frigorífico em Seven Year Itch (e podia ir por aí fora, mas, como me conheço, travo às quatro rodas); eu vi Joan Collins nesse Tivoli que me faz logo suspirar, voar tão alto que chegou à lua, depois de rasgar com o pé em riste um chapéu de sol japonês, último obstáculo entre ela e o êxtase. O filme chamava-se The Girl on the Red Velvet Swing e há-de nascer quem me explique (nestes 50 anos não nasceu) porquê e em quê é menor do que Kazan, Wilder, Logan ou Preminger, os grandes dessas minhas fictícias bodas de ouro. E, no mesmo ano, ali para os lados do Politeama, Vítor Mature, tão injustamente apelidado de canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado violento de assaltos sangrentos, que nunca mais me saiu da imaginação. Fleischer outra vez em Violent Saturday. E, nos dois filmes, era também a glória do scope a afirmar as virtudes cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.
     Se eu quiser lembrar-me de um filme sobre o horror militarista que não seja primário ou dogmático, tenho de ir procurá-lo em Between Heaven and Hell, nos corpos distorcidos de Robert Wagner e de Broderick Crawford. E mais me lembro do thriller magistral que é Compulsion (1959, com Orson Welles); do portentoso desequilíbrio ente o delírio e o escavado do parisiense Crack in the Mirror (Orson, outra vez, e Juliette Gréco, corria o ano de 1960); da viagem pelo corpo humano adentro para evitar um assassinato (Fantastic Voyage, 66) e, ai de mim, que não tenho tempo nem espaço para exaltar como devia The Boston Strangler (68), Ten Rillington Place (71), Soylent Green (73, despedida das telas de Edward G. Robinson), Mandingo (75), etc, etc, etc.
     Alguns me acusam de demasiado parcial e, em tempos, na Cinemateca, houve quase uma tentativa de revolta de massas por eu ter incluído Mandingo entre as obras-primas do cinema e defender que é obra, na gesta sulista, a colocar acima de Gone With the Wind. Mas falem-me em Fleischer e eu vejo, em scope, algumas das mais belas coisas que já vi, com James Mason ou com Ray Milland, com Joan Collins ou com Raquel Welch, com Henry Fonda ou com George C. Scott. E tudo isso eu vi, imenso e scópico, quando li neste jornal que o autor de tudo isso (e de Barabba também) morrera, na sua cama, aos 89 anos.

2. Mas, antes de particularizar, vou mexer na consciência que me andam a pesar quando não devem e a aliviar quando lhe deviam dizer duas verdades.
     Em 1990, tinha Fleischer 73 anos e estava em plena forma, conheci-o nesse bizarro festival do sol da meia-noite que o meu amigo Peter von Bagh organiza todos os anos em Sudankula, na Finlândia, quando o dia nunca acaba e a noite nunca começa. Von Bagh todos os anos convida alguns grandes esquecidos, ou alguns esquecidos grandes. Nesse ano, reuniu Fleischer e Oliveira, George Sidney (outro que tal, que tal como Fleischer) e Jean-Pierre Léaud. Ainda por lá havia o cubano Gutiérrez Álea e, aqui de Portugal, Luís de Pina e eu.
     Poucos falavam as línguas todas, mas em poucos dias éramos um grupo de amigos. Até o cubano e Fleischer. No principio, tínhamos notado o gelo do homem do chocolate à simples referência ao nome de Fleischer, quanto mais à sua presença. Só depois nos lembrámos que, em 1969, Richard Fleischer assinara Che!, com Omar Shariff no papel do herói, o que fora considerado um segundo assassinato de Guevara ("However you haven't lived until you see Jack Palance play Fidel Castro"). Mas até esse glaciar se dissipou no círculo polar e Fleischer e Gutièrrez acabaram bons amigos, bebendo bom vodka.
     Revendo então a rapariga do balouço, Lola Montes da minha estimação ou os planos-sequência e o "split-screen" de The Boston Strangler (Meus Deus e esqueciame eu de falar de Tony Curtis!), perguntei-me porque é que nunca tinha pensado num ciclo Fleischer em Lisboa. Falei com ele (olhos muito azuis, cabelos muito brancos, a simpatia em pessoa) e aceitou logo o convite. Disse-me que estava a escrever memórias e que contava publicá-las em 1993. Seria um bom ano para a retrospectiva. Depois escrevemo-nos (guardo cartas de Fleischer na Cinemateca), as memórias saíram Just Tell Me When to Cry mas, quando começaram as buscas das cópias, eram pálidas e louras as cores que jamais vira tão verdes ou tão encarnadas. Resolvi adiar, até que houvesse material mais condigno. Nunca desisti, mas o tempo foi desistindo por mim. O género de coisas que nunca se faz, mas que eu, em me distraindo, deixo correr até ser tarde de mais. Agora, há melhores cópias. Mas não pode haver um Ciclo Fleischer com Fleischer, porque Fleischer se foi embora para não mais voltar. E não acredito que haja nunca um ciclo Fleischer, porque o único que o podia organizar modéstia à parte, ou não desfazendo, como preferirem está a três meses de ser abatido ao activo, em tempos em que a faca e o queijo se juntaram em boas mãos. Richard Fleischer não é comida para ratos, ainda por cima daquela espécie que, ao contrário da Alfreda de Agustina e de Oliveira, não foi educada a roquefort nem a camembert. Passemos a coisas mais alegres. 


Esta foto rara mostra Joan Collins e Richard Fleischer no local de rodagem do filme "The Girl in The Swing Red Velvet", conversando com Evelyn Nesbitt, cuja história é retratada no filme. 
foto encontrada em joancollinsarchive.blogspot.pt


3. Alegres talvez não seja a melhor palavra. Mas raríssimos exemplos conheço de sensualidade transbordante e erotismo a transpirar por todos os poros como The Girl on the Red Velvet Swing, o filme com que comecei, o filme com que quero acabar.
     Na base um caso verídico. O escândalo Thaw-White quando em 1906 o arqui-milionário Thaw Farley Granger, no filme) matou a tiro o celebérrimo arquitecto Stanford White (o autor da biblioteca de Boston, do Arco de Washington e do Madison Square Garden, Ray Milland no filme). Ambos assistiam a uma representação de Mam'zelle Champagne, no restaurante do terraço do dito Madison Square Garden. No palco cantava-se "I could have a million girls", mas, no restaurante, o assassino clamou bem alto, antes de se entregar à polícia: "Matei este homem porque ele depravou a minha mulher." Harry Thaw, o milionário, estava casado há onze meses com uma ex-corista, então com 20 anos (Joan Collins). O "depravador" tinha 50.
     Escrevi "depravador" entre aspas mas não as devia ter usado. O que se passa desde que, por acaso, o arquitecto repara na anónima corista (e só repara à segunda vez) é uma depravação consciente de um sedutor a uma rapariga facilmente seduzível. Stanford White era especialista em festas privadas, numa garconnière escondida nas traseiras de uma loja de brinquedos. Joan Collins entra lá para brincar, prova caviar que nunca tinha provado ("It's better with champagne one glass, just one") mas quando lá volta já não é para brincar, nem só para uma taça de champanhe. Depois, avança para o quarto do arquitecto, que tem o céu por tecto e um balouço vermelho pendurado nele. "Curiosity kill the caviar girl." Ninguém deve balouçar tanto. Não devia haver veludos tão encarnados, nem tais atracções pelas alturas. Quando White entra no quarto, já ninguém pode sair dali. "Midsummer nights dreams"? Pelo menos, como ele diz, "you are much too pretty" e, pelo menos nós vemos, as mãos dela eram mãos como as de nenhuma outra mulher. E os dentes dela, ou o dente dela, o dente de Joan Collins, a da série Dynasty, mas sobretudo a rapariga do balouço vermelho, a rainha do pecado de Hawks ou a sofisticada allumeuse de McCarey.
     A história não acaba bem, já sabemos. Mas o que há de só visto é a sensualidade de Joan Collins a abrir-se e a fechar-se, quando o homem que não queria casar com ela pretende fazer-lhe de pai e a manda para um colégio sem homens. Ressurge então o milionário efeminado que vinha lá do princípio. Água mole.. E casam-se. Só que a noiva conta ao noivo, na noite antenupcial, as noites do arquitecto e as noites do balouço. E o marido é homem de vinganças terríveis. Tão terríveis como exigir que, de cada vez que a mulher se refira ao ex-amante, o trate por "the beast". Tão longe tão longe não vai ela, mas ficam num compromisso. De cada vez que os olhos azuis de Ray Milland, os tais olhos depravadores, voltarem a passar por perto, ela dirá "B" para o designar. Tantas vezes o tem que dizer, que um dia Farley Granger acaba a tiro com a segunda letra do alfabeto.
     O sedutor acabou morto. O marido semi-enganado na prisão. Ela a rapariga do balouço vermelho a repetir em teatros baratos o seu número favorito: balouçar-se sobre plateias ululantes, transformando em eterno retorno aquela noite no quarto de que jamais se conseguiu desprender.
     No mesmo ano, em França, Max Ophuls filmou outro balouço eterno. Coincidências a mais? Ou filmes e realizadores que são como sismógrafos? Saudades de Richard Fleischer, esse que me deu a ver a carne estremecente de Joan Collins e as almas doutras mulheres.

JOÃO BÉNARD DA COSTA ESCRITOR
(A CASA ENCANTADA, crónica semanal  publicada no jornal Público em 2 de Abril de 2006)


Richard Fleischer, Joan Collins, Ray Milland  on the set of The Girl in the Red Velvet Swing (1955).
Foto encontrada em filmnoirphotos.blogspot.pt





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