João Bénard da Costa entrevistado por alunos do Liceu Camões
Isabel Q. Silva: Houve algum momento marcante na sua infância que gostaria de realçar?
Doutor João Bénard da Costa: Gostaria de realçar um momento que foi para mim bastante difícil e que depois, mais tarde, vim a descobrir que teria consequências curiosas. Foi quando eu tinha seis anos, em quarenta e um. Estávamos em plena guerra e durante esse ano a Alemanha estava a ganhar a guerra em toda a parte da Europa. Tinha ocupado a Europa inteira, à excepção de Inglaterra, que era o único país que continuava a resistir. Os Estados Unidos ainda não tinham entrado na guerra e, tendo a Alemanha já ocupado toda a Europa ocidental, havia muitos boatos e rumores dizendo-se que a Alemanha preparava um ataque à península ibéria, portanto Espanha e Portugal, até porque isso permitiria tapar a entrada do mediterrâneo aos ingleses e ocupar Gibraltar, que nessa altura era um importante posto defensivo. Digamos portanto que era uma hipótese plausível, verosímil e que existiu. Hoje sabe-se historicamente que essa operação existiu e que até teve um nome, foi-lhe dado um nome de código. Foi uma hipótese pensada muito a sério pelo estado-maior Alemão e que acabou por não se concretizar porque Hitler decidiu atacar primeiro a Rússia. Estava sempre com medo: tinha feito um pacto com a Rússia e estava sempre com medo que a Rússia violasse essa aliança e portanto ele era atacado pelas costas e em vez de ser atacado resolveu atacar, o que nos salvou e para ele foi a perdição porque partir no ataque à Rússia começou a correr muito bem para ele ao principio mas depois passou a correr mal, pois a guerra mudou de rumo.
Mas havia esse rumor de que podia estar eminente um ataque a Portugal. E nessa altura circulavam muitas historias do que se tinha passado noutros países, de quando se atacava uma cidade e da fuga das populações civis das cidades. Claro que a cidade era um sítio mais perigoso para se estar e normalmente as famílias, etc. tentavam fugir das cidades, dos bombardeamentos, de tudo isso, para ir para o campo, para sítios onde estariam mais defendidos. E havia muitas cenas e descrições de todas as dificuldades dessas fugas sobretudo quando havia crianças e portanto galgar quilómetros e quilómetros com crianças não era fácil. E então o meu pai tomou essa hipótese a sério e pensou que se uma coisa destas acontece – tinha 4 filhos nessa altura: duas irmãs minhas mais velhas, que já tinham 10 e 8 anos, e uma irmã mais nova, que tinha 4 anos – e portanto pensou que nós dois, que éramos mais novos, podíamos ser “abrigados” e falou com o irmão dele, que era médico e vivia no Algarve, trabalhava em Portimão.
O Algarve nessa altura era um sítio muito tranquilo, não havia ainda turismo e não havia hipóteses remotas de, no caso de uma invasão, fossem atacar o Algarve. E ele perguntou ao irmão dele se nós podíamos ir lá até ver onde paravam as modas. Isso, claro, foi uma história que não foi falada à minha frente, não andavam a contar esses pormenores à minha frente mas eu fui ouvindo. Embora fosse um miúdo, fui ouvindo aqui e ali bocados de frases e lembro-me de ter tido a noção de que não ia, como estavam a dizer, passar umas férias – isso era para aí em Maio já estava na infantil e tinha de interromper as aulas para ir para umas férias na praia da Rocha - mas que alguma coisa mais grave se passava e lembro-me da ideia de que poderia nunca mais voltar a ver os meus pais. Mas não podia falar muito nisso porque, quando eu falava nisso, dizia alguma coisa, eles riam-se, tentavam disfarçar, diziam: “Não, vocês vão lá passar uns dias! Vai ser tão bom, ir para a praia, brincar. Aquilo é tão bom e depois nós lá nos encontramos.”
Mas eu senti essa tensão toda e senti que era um momento muito especial porque já sabia da Guerra: com aquela idade mas já teria ouvido talvez alguma história desse género. Aquilo assustou-me imenso e fui para lá, não havia mais crianças, era só eu e a minha irmã. Coitados, eles foram amorosos, mas era a primeira vez que estávamos separados dos pais e durante um período que foi 2 meses ou coisa assim, um período relativamente longo e eu lembro-me que sofri imenso com essa ausência, com o sair de casa, com o estar longe. Mal sabia escrever, ainda estava a começar aprender, e nessa altura os telefones praticamente não funcionavam, nada era como hoje: não era telefonar todos os dias. Hoje era facílimo, do Algarve para aqui, para já não falar dos telemóveis. Mas nessa altura um telefonema de Portimão para Lisboa era uma coisa que demorava, tinha de se pedir com meia hora ou uma hora de avanço, custava caríssimo e praticamente não se fazia, salvo se acontecesse alguma coisa muito grave. Eu escrevia uns postais, uns gatafunhos, e tinha a impressão que eles nem sequer metiam aquilo no correio, mas depois as cartas também demoravam a chegar e a minha mãe não respondia. Um dia recebo um postal da minha mãe a dizer “então não me escreves” e dera de repente a pensar ”estou cortado de comunicações completamente”. Aquilo foi-se ampliando e foi uma coisa para ter pesadelos horríveis e uma noção de um sentimento muito grande. Claro que depois houve o ataque à Rússia, o perigo passou nesse sentido e depois voltei. Foram para aí dois meses que estive lá, não mais que isso. Mas dois meses aos seis anos parecem uma eternidade.
Passou-se anos e anos que não voltei ao Algarve e, ia até muito bem disposto, na altura o Algarve começou a estar na moda. Eu e a minha mulher tínhamos arranjado um hotel simpático, portanto umas boas férias e é engraçado pois, quando eu cheguei ao Algarve, senti de repente qualquer coisa como uma aflição, uma angustia, uma coisa que não sabia explicar – era o cheiro, a luz, tudo aquilo despertaram recordações. Mas eu dizia “porque é que me estou a sentir assim” e de dia para dia aquilo agravava-se. Era uma coisa que… “só quero sair daqui”. Estava optimamente instalado e eu não percebia. Já me tinha esquecido completamente desta história, não percebia esse tipo de reacção. Até que de repente pensei – “há qualquer coisa que se passou aqui” e pensei nessa historia e de facto cada vez que voltei ao Algarve, e voltei muitas vezes, correu sempre muito mal, foi sempre um sitio onde me senti muito mal, e nessa altura eu jurei nunca mais voltar ao Algarve. E atribuo isso a eu ter – às vezes as crianças depois esquecem-se – mas a ter sofrido muito ali, a tudo aquilo que se passou se ter enraizado no meu subconsciente, de uma maneira tão forte que, quando em adulto fui confrontado com aquilo, era como se todos esses fantasmas viessem outra vez ao meu encontro. Foi bastante traumático. Esse episódio marcou bastante e marcou para o resto da vida, ainda hoje eu tenho essa relação difícil com o Algarve. E toda a gente pensava que eu não estava a perceber bem. Para uma criança de seis anos, o que é a guerra? e não andava a ler jornais para saber. Mas ia ouvindo as conversas dos adultos – as mortes da guerra, de pessoas que chegavam refugiados.
Dizem sempre que as crianças não percebem ou não ligam, mas percebem sempre, muito mais que os adultos acreditam ou pensam. Por isso é que eu sempre reagi quando as pessoas dizem “podes falar disso que aquele não percebe nada” ou “não está a perceber nada”. É criança e as crianças percebem sempre bastante mais – têm antenas até para detectar o humor e disposições. Por exemplo, zangas dos pais e a criança sofre imenso com isso e às vezes os pais não ligam nenhuma e a zanga até nem teve importância, não foi por motivos graves, mas qualquer coisa que aconteça a criança fica… é o mundo que está a desabar. E, nessa altura, quando eu era criança, não supunham, no meio em que eu vivia, a ideia de pensar numa separação dos meus pais ou qualquer coisa desse género, que hoje é muito corrente, acontece à maior parte das crianças e – a maior parte não direi, mas a muitas. E pensa-se sempre que as crianças recuperam isso e eu penso sempre que isso marca uma criança para o resto da vida sobretudo se essa separação foi traumatizante ou houve grandes dramas em torno desse separação e é sempre um momento terrível para as crianças. Não quer dizer que às vezes não haja outra solução e que as pessoas tenham de ficar uma com a outra, mas quando há filhos é sempre um problema muito grande e dizer que as crianças não são afectadas com isso – vêem a mãe, vêem o pai, continua tudo a correr muito bem – é falso, porque não continua. A criança precisa daquelas presenças e quando uma delas falha ou quando há uma rotura, a criança sente sempre e depois a criança habitua-se a não falar, a recalcar isso, a dizer pouco, a perceber que é um terreno difícil, a ter de tomar partido emocionalmente – ou pelo pai ou pela mãe, fica com um, fica com outro. São sempre situações muito terríveis e as crianças sofrem muito nessas alturas. Agora, como é evidente, tudo isto são coisas que depois as pessoas recuperam. São coisas já que dependem muito da predisposição de cada um. E depois a psicanálise estuda muito isso, buscar os traumas de infância, é possível, às vezes, um médico responder e bem porque é que há crianças que se diz “ ela ficou assim porque com um ano a obrigaram a dar um beijo ao cadáver da avó” e outros que estiveram, por exemplo, em campos de concentração, que passaram situações horrorosas e aparentemente são pessoas normais mas é claro que ficam sempre marcadas e há uns que ficam muito perturbados e até para o resto da vida e às vezes por coisas que em comparação com outras são insignificantes ou não têm importância. Enfim, isso já depende muito da predisposição de cada pessoa a criar as suas próprias fobias ou neuroses.
I.Q.S.: Doutor João Bénard da Costa, como foi o seu percurso académico até à sua entrada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa?
J.B.C.: Ora bem, sim senhora, eu primeiro de tudo estive num colégio particular, na instrução primária, o Lar Educativo João de Deus ou Colégio João de Deus, que era na altura e ainda hoje é um colégio particular conhecido onde estive na segunda classe, mas ainda antes disso estive num colégio de freiras, o que é uma coisa engraçada, onde fiz a infantil e a primeira classe e nesse colégio a classe da infantil era mista, e por isso havia também rapazes, foi onde eu comecei. Depois passei para o outro colégio, o João de Deus, estive até ao final da terceira classe, e a quarta classe fiz até em casa, que se chamava nessa altura a quarta classe, actualmente o quarto ano e fiz em casa com um explicador. Depois entrei para o Liceu Camões, fiz o exame de admissão ao Liceu Camões e entrei para o liceu. E em termos de liceu, posso destacar dois períodos bastante distintos: um em que fui francamente mau aluno na parte de Ciências, péssimo a Desenho, uma falta de jeito manual incrível, que foi uma característica minha toda a vida a roçar o patológico, e sobretudo portanto em Desenho era uma desgraça completa e absoluta e Matemática também era péssimo. Em geral, na parte de Ciências era péssimo. Muito bom na parte de Letras, História, Português adorava. E isso fez-me chumbar o quinto ano que corresponde ao nono ano actual, onde havia um exame, pois nessa altura só havia portanto onze anos, sete de Secundário e quatro de primária e portanto era o fim do actual Décimo primeiro ano que corresponde também ao Décimo segundo agora, onde depois se entrava para a Universidade. E no nono ano, que era onde depois se fazia a escolha para Letras ou para Ciências, e o sistema que havia era fazer provas de Letras e de Ciências paralelamente, e eu passei a Letras com média de 14 valores, portanto que não dava ainda dispensa da oral, mas que apesar de tudo era uma boa nota e chumbei na parte de Ciências, o que me obrigou a repetir um ano, só a Ciências, que tinha só disciplinas das quais eu não gostava, e portanto em vez de melhorar, piorei e seguiu-se outro chumbo, sobretudo pela nota tirada a Desenho. Então um episódio curioso, do qual pode ter dependido toda a minha vida, eu tinha tido 2 a Desenho, na escala de 0 a 20, não é na escala de hoje de 0 a 5, porque na altura as notas eram todas de 0 a 20, e isso atirava-me com a média das outras disciplinas que já eram fracas cá para baixo e eu estava completamente desolado com a ideia enfim, tinha sido o pior ano da minha vida, estava numa depressão, numa coisa e só dizia “repetir isto terceira vez? Não! Eu já não tenho coragem. Quero deixar de estudar, não quero pensar mais nisto”. Até que passou o meu professor de desenho, que tinha sido meu professor durante esse ano e viu-me naquele estado, perguntou-me o que é que tinha acontecido, e o meu professor como sabia que à disciplina dele era uma desgraça com um defeito congénito, ficou muito revoltado a dizer “não há direito”, até porque eu ao contrário na outra área tinha boa nota e foi falar com o reitor, que era um reitor que depois foi muito falado, Sérvulo Correia, criticado por muita gente, mas que eu só tenho razões para dizer bem dele nesse momento, e depois mais tarde, quando foi meu professor do Camões, onde o conheci já de outra perspectiva. Mas, o meu professor foi-lhe contar o que se tinha passado e a certa altura lembro-me de ouvir dizer que o reitor me tinha chamado ao gabinete dele, e eu lá fui, sem perceber de todo porque é que era, e o reitor quando me viu disse: “Eu sei que tu chumbaste e o teu professor de desenho diz que tu não tens culpa do que aconteceu e foi um bocado absurdo, podias ter pedido dispensa da prova de desenho, que em certos casos, quando há um problema do género do teu, normalmente se consegue. Agora é mais difícil mas pode-se ainda pedir ao Ministro uma anulação da prova de Desenho, diz ao teu pai que venha falar comigo podemos apresentar atestados médicos e etc. e vamos tentar”. E foi um período terrível para mim, o meu pai foi lá falar, apresentou um atestado médico, e aquela coisa de ser passado de médico em médico, como um “anormalzinho”, e os médicos lá fizeram os atestados, e pronto passado algum tempo o Ministro na altura deferiu o pedido e portanto a prova foi anulada, e fui fazer a oral, e lá passei à “rasquinha” mas passei e pronto, a partir daí fui para Letras. Estava a pensar fazer Direito, fui para o Liceu Pedro Nunes, mudei de liceu, portanto tive 6 anos no Camões, e aí no novo liceu no terceiro sétimo ano fui óptimo aluno e acabei o liceu com média de 18, portanto entrei no liceu, na admissão ao liceu com média de 15, saí com média de 18, mas o que se passou lá dentro foi durante aqueles anos bastante menos brilhante, sobretudo nesse período. E esse período foi um período terrível, esse período do segundo quinto ano e do segundo chumbo, que para todos os efeitos foi um segundo chumbo, embora depois não tivesse sido, foi um período de total descrença em mim próprio em que só pensava “não eu não vou ser capaz, nunca mais vou sair daqui, isto já não vale a pena estar a insistir” ou então, enfim, eu sabia que os meus iam voltar a insistir uma terceira vez a pensar: “outra vez passar por isto tudo, se calhar para o mesmo resultado”.
J.B.C.: Portanto, por tudo aquilo que eu já disse, era evidente que Ciências era uma área completamente fora do meu horizonte, só me queria ver livre, para além de Desenho, da Matemática, da Física, tudo coisas que eu odiava, hoje ponho a hipótese talvez por culpa de professores, maus professores que nunca me souberam interessar devidamente nessas cadeiras, que eu acho que é aí que o papel do professor é fundamental e que todas as disciplinas podem interessar um aluno desde que sejam bem dadas e o professor seja bom, não olhando a casos extremos mas em casos normais isso depende fundamentalmente do professor. Mas enfim, quer por recriminações minhas já anteriores, quer por razões já várias, Ciências era um domínio que eu nem pensava, queria ir para Letras. E Letras nessa altura para um rapaz, só havia um destino possível em termos sociais que era Direito, que depois dava para ser juiz, advogado, diplomata, carreiras nobres, e portanto se eu queria ir para Letras ia para Direito, nem havia outra possibilidade, e fui para Direito como preparei no Pedro Nunes e cheguei mesmo a entrar na Faculdade de Direito onde estive 3 meses, portanto entre Outubro, começo das aulas e o Natal e até descobrir durante aqueles meses que aquilo não me estava a interessar mesmo nada e cheguei mesmo a pensar: “não é nada disto que eu quero fazer, não quero ser advogado, não quero ser juiz e portanto Direito não me interessa nada” e enquanto lia cada vez mais coisas, e a minha paixão sempre tinha sido a História, Filosofia também me interessava bastante e havia um curso nessa altura na Faculdade de Letras que era Ciências Histórico-Filosóficas, as duas disciplinas hoje em dia estão separadas, mas naquela altura era um curso com este nome e eu comecei a pensar: “porque é que eu não vou para ali, é ali que eu gostaria de estar” e tive que enfrentar um bocado a família que dizia “uhh e tal, isso não dá acesso a nada. O que é que podes fazer? Ser professor, não sei quê” que não queria e que ficou muito triste que eu tivesse trocado Direito por Histórico-Filosóficas, mas pronto lá consegui ganhar essa batalha, perdi uma ano nessa troca, precisei de fazer outra cadeira e um outro exame e entrei em Histórico-Filosóficas porque História e Filosofia eram disciplinas que me apaixonavam e que eu gostava muito, quer os problemas da Filosofia, quer História que era uma disciplina que me interessava imenso e depois pronto na Faculdade as coisas correram muito bem. Na Faculdade de Letras antiga que não era ainda onde é hoje, era ali ao pé da Rua do Século e do Convento de Jesus, num edifício muito antigo, muito velho, sem condições nenhumas, em que maioritariamente era frequentado por raparigas, por isso é que se dizia que o curso era para raparigas, que queriam ser professoras de liceu e na maior parte dos casos havia menos alunos rapazes, e foi precisamente nesse curso que eu me formei.
D.L.C.: Mais uma pergunta, disse-nos que tinha gostado de frequentar e leccionar no Liceu Camões, embora o percalço que teve enquanto aluno e queria introduzir uma questão: Vivíamos na época do Estado Novo, Doutor António de Oliveira Salazar ainda governava, como foi ensinar, e como é que era o acesso ao ensino no Liceu Camões durante o Estado Novo?
J.B.C.: Ora bem, exactamente aí, essa é uma questão interessante, porque eu quando acabei o curso fui convidado para ficar como assistente, acabei o curso com uma nota boa e fui convidado para ficar na Faculdade de Letras como assistente. Assistente era por onde se começava, depois fazia-se o Doutoramento, e entrava-se como Professor na Faculdade até chegar a Professor Catedrático, isso é mais ou menos como acontece hoje. E eu aceitei o convite, convite esse que me interessava muito e nessa altura todos os empregos públicos, todos sem excepção estavam condicionados a um parecer da P.I.D.E. (Polícia de Investigação e Defesa do Estado), ou seja a Polícia Política que dava um parecer sobre a pessoa dizendo “desta pessoa nada consta” ou “sim, senhor está completamente integrada na ordem estabelecida” ou pelo contrário “não dá nenhumas garantias de cumprir com a ordem estabelecida”, e nestes casos quando vinha esta informação ninguém olhava, era como se dissesse “não” era um veto. É muito curioso porque isto mostra que o medo tomou conta dos portugueses porque não havia nenhuma lei que determinasse que um Director-Geral ou o que quer que fosse numa Faculdade estivesse obrigado a seguir o parecer da P.I.D.E. E até podia haver um ou outro que dizia “sim senhora, se fizer um favorzinho até o quero cá”, mas ninguém e foram raríssimos os casos em que alguém infringiu esta regra. Vinha aquela informação era a mesma coisa que dizer “não” e portanto pronto, na altura o professor que me tinha convidado chamou-me a certa altura a dizer “Infelizmente, não pode ser”. E porquê? Qual era a razão que a P.I.D.E. invocava? Eu tinha nos últimos anos da Faculdade tido alguma actividade política e tinha tido essa actividade sobretudo em 1958, ano de uma campanha eleitoral muito movimentada em que o General Humberto Delgado apareceu como candidato de oposição. Claro que as eleições eram uma fraude, a maior parte das pessoas não podia votar, os cadernos eleitorais não havia acesso, não havia controlo das mesas de voto e por isso quando os resultados não eram favoráveis eram facilmente falseados. Mas durante a campanha havia muito barulho, e durante esse tempo Humberto Delgado assustou bastante o regime porque pôs muita gente na rua, ficou conhecido até como o “General Sem Medo”, e com ele houve grandes manifestações, portanto aquilo passou para rua e houve um ambiente de grande tensão. Digamos que foi o primeiro grande susto que o regime apanhou, em 58, portanto 16 anos antes do 25 de Abril. E durante essa altura, eu não só tinha tido actividade ao lado do General Humberto Delgado, dando apoio a Humberto Delgado, como católico que eu era, tinha feito parte de um primeiro grupo de católicos que tinha resolvido interrogar seriamente o regime, ou seja dizíamos: “o que é isto? Um regime que se diz católico que está todos os dias a apaparicar a igreja e a falar em nome dos Cristãos e que proíbe as liberdades fundamentais, tortura pessoas na prisão, prende quem não pensa como eles, onde é que está aqui o Cristianismo, o amor ao próximo, a tolerância, enfim, as virtudes do Cristianismo”, e portanto alguns Católicos nessa altura, que escrevem ao próprio Salazar dizendo: “o que é isto?” e contando o que a gente sabia, histórias conhecidas que se passavam e perguntavam: “o que é isto? Um regime que se diz Cristão?”. Claro que a resposta foi imediatamente um processo em cima dessas pessoas, uns interrogatórios na polícia e um “Não Cortado” portanto eu não podia ter empregos no estado, mais eles fizeram um requinte especial, não me queriam dar a Carta de Curso, que era o documento fundamental para qualquer emprego. Eu dizia: “tenho este curso” e eles pediam: “se tem esse curso, mostre lá a carta de curso”; sem isso qualquer pessoa pode dizer que tem um curso qualquer e não tem, e portanto isso era a prova de que se tinha, era um processo burocrático, pode dizer-se um requerimento e depois eles passavam a carta de curso, e a mim, eu cheguei lá e disseram-me: “não, não, a sua carta ainda não está pronta, e disseram-me mais não sei o quê”, até que eu percebi: “não me vão dar a carta de curso e eu sem ela não arranjo emprego nenhum”. Então fui falar com o reitor da Universidade, que era o Professor Marcelo Caetano, que depois foi sucessor de Salazar, e nessa altura era reitor na Universidade de Lisboa. Contei-lhe a história, o que se estava a passar e ele foi bastante simpático, percebeu a situação, percebeu que era uma injustiça terrível, eu estava formado e tinha direito à carta, quaisquer que fossem as minhas ideias, e passados uns dias tive a carta de curso. Mas sabia que qualquer emprego público me estava vedado. Qual era a única hipótese? Pensei por exemplo professor de liceu que era preciso um estágio mas era a mesmo a única coisa que me ia acontecer. No liceu, como nessa altura havia crise de professores ele recorriam muito aos chamados “Professores eventuais”, quer eram uns professores sem contracto, portanto davam aulas, eram pagos, menos do que os outros, mas não eram pagos nem durante as férias, nem tinham nenhuma garantia de emprego. Estavam num ano, no ano seguinte podiam já nem estar, era uma coisa de “sim, não”, dependendo dos anos, e não se portando mal durante as férias. Mas aí, talvez porque eles sabiam que “se estes se portam mal, podemos pô-los fora com toda a facilidade” não era necessária informação da P.I.D.E. e portanto foi aí que eu consegui entrar, por ter estado primeiro em colégios particulares, estive no Liceu Francês Charles Lepierre, sítios onde não era preciso isso claro, estive no Seminário de Almada, num outro colégio em Almada, e depois no princípio dos anos 60, durante 3 anos, no Liceu Camões a leccionar História e Filosofia. Experiência de que eu gostei muito, gostei muito de ser professor.
D.L.C.: Que memórias tem do Liceu Camões? Guarda algum episódio, que o tenha marcado pela positiva ou pela negativa, ou algum professor/aluno que destaque durante os períodos em que frequentou e leccionou no Liceu Camões?
J.B.C.: Como professores houve, alguns que me marcaram profundamente ao longo do liceu, por exemplo uma professora de Português, Manuela Barroso, que me leccionou desde o actual quinto ano ao nono ano; ou um professor de História, que já morreu há muito tempo, Carlos Miguel, que foi meu professor durante o oitavo ano que foi das pessoas que mais me incutiu o gosto pela História. Como professor, tenho muito boas recordações do Liceu Camões, adorei leccionar lá, posso destacar um momento importante que ocorreu, aquando Sérvulo Correia ainda era Reitor, eu organizei o primeiro festival de cinema, que aconteceu precisamente no liceu e que do qual tive todo o apoio de Sérvulo Correia. Ainda hoje oiço falar alguns alunos que eu leccionei e que me dizem que se lembram e que gostaram muito do festival, e ainda guardam isso na memória. Portanto do Liceu Camões tenho excelentes recordações como professor, más recordações como aluno, por causa de todos os episódios menos felizes que ocorreram.
J.B.C.: A Fundação Gulbenkian cria-se em Portugal em 1956, tinha eu 21 anos, estava na Faculdade. E portanto quando acabou o curso, a Gulbenkian estava a conceder bolsas para as pessoas que queriam continuar os estudos ou no Estrangeiro ou em Portugal. E as pessoas que queriam estudar aqui ou ali, mas não tinham maneira/meios ou não podiam estudar sem ser essas bolsas, daí a importância delas, e eu pedi uma dessas bolsas à Fundação Gulbenkian para continuar a trabalhar na minha tese de Licenciatura que é sobre um filósofo francês Emannuel Mounier, e para continuar a estudar a obra de Mounier em França, para ter acesso à biblioteca particular dele e etc., e a Gulbenkian deu-me essa bolsa, durante dois ou três anos e que na sequência do qual conclui o meu livro, que foi o meu primeiro livro a ser publicado. Esta bolsa não era um emprego, dava-se uma quantia x por mês às pessoas para fazerem um trabalho, e a bolsa podia durar 1 ano, 2 anos, 3 anos e ter um resultado, que como no meu caso era para preparar um livro, e que na conclusão do qual a bolsa terminava.
I.Q.S.: Em 1963 foi um dos fundadores da revista “O Tempo e o Modo”, onde permaneceu até 1970. Quais foram as motivações que o fizeram entrar neste projecto?
J.B.C.: Ora bom, quando eu estava na Faculdade, como eu disse e agora retomo, estava ligado a um grupo de católicos, a Juventude Universitária Católica e aí fui nomeado presidente da JUC (abreviatura, portanto de Juventude Universitária Católica) e eles tinham um jornal intitulado “O Encontro”. E eu portanto como presidente era também por permanência de cargo, director do jornal. E essa experiência do jornal interessou-me imenso, trabalhar no jornal, organizar o jornal, convidar pessoas a escrever, a colaborar, orientar o jornal, foi um ano muito rico. “O Encontro” teve uma importância grande diante dos universitários todos, não só católicos e Cristãos, mas mesmo entre a geral dos alunos universitários, “O Encontro” nessa altura era um jornal muito rico e que teve uma presença muito forte. E quando, deixei de ser presidente da JUC, o meu sonho era formar um novo jornal onde pudesse continuar aquele tipo de experiência. E mais do que um jornal, nós pensámos numa ideia, que é de uma coisa que hoje em dia quase não há, que era uma revista, que se distribuía com o jornal, em vez de ser uma coisa do mesmo tipo de papel que o jornal, que se lê e atira fora, era um pequeno volume com artigos vários, onde as pessoas faziam assinaturas, nessa altura havia muitas, e portanto era a ideia de criar uma revista desse género. O nosso modelo era uma revista francesa a “Esprit”, que tinha sido criada por esse tal filósofo que eu falei há bocado, Emmanuel Mounier, sobre o qual escrevi o meu primeiro livro, e era esse digamos o meu modelo tomado pelos meus amigos e colegas também, e portanto era a ideia de se a gente pudesse fazer uma coisa destas em Portugal. Mas onde encontrar dinheiro? Até que conhecemos o António Alçada Baptista, que tinha comprado nessa altura a Livraria Morais, uma editora/livraria da Baixa e que estava interessadíssimo num projecto desse género. Disse: “Sim, senhora a livraria dá-me algum dinheiro, vamos fazer essa revista”. E portanto daí saiu esse projecto, que na nossa ideia, era uma revista que servia sobretudo para um diálogo entre crentes e não-crentes, portanto, no núcleo fundador éramos todos católicos, António Alçada Baptista também o era, eu próprio, e assim do núcleo mais próximo, mais ligado, o Pedro Támen, conhecido por ser poeta, o Nuno Bragança que depois também foi um escritor muito conhecido, já morreu, um escritor com uma importância muito grande na nossa literatura ou o Alberto Vaz da Silva, que está vivo e que é o meu maior amigo, e que se dedicou sobretudo muito depois à Grafologia, à Astrologia, ao longo da vida. E é este grupo que criou “O Tempo e o Modo”, mas com a ideia de que ele servisse como plataforma para o diálogo com os não-católicos e portanto convidámos também a fazer parte da revista pessoas como Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, etc., que não eram católicos mas com quem nós achámos que era possível estabelecer um diálogo. Curioso e inédito em Portugal, era a primeira vez que isto se fazia, porque tinha havido sempre uma grande separação entre católicos e não-católicos e até uma suspeição de que os não-católicos, muitos deles eram contra o regime, os católicos tinham a fama de ser a favor do regime, e portanto nós éramos a minoria que não era do regime e debatíamos portanto, os problemas da sociedade portuguesa numa revista desse género. E é curioso, que por exemplo o primeiro número do “Tempo e o Modo”, é hoje um número histórico saído em Janeiro de 1963, os dois artigos de fundo, além do artigo do director, António Alçada são do Mário Soares e do Jorge Sampaio. Mal sonhávamos nós nessa altura, isto em 1963, que estavam ali dois futuros Presidentes da República. Se me viessem dizer isso nessa altura eu dizia “estão a brincar comigo, isso não é possível de maneira nenhuma”, mas é um facto e portanto aí trabalhámos com imenso entusiasmo nessa revista que deu muitos debates, muitas polémicas, nessa altura não tanto pela quantidade de leitores ou mesmo de assinantes, as pessoas tinham medo de assinar a revista e serem conotados de alguma maneira mas lia-se muito, discutia-se muito e “O Tempo e o Modo” marcou muito uma geração quer de não-católicos, quer de católicos. Foi muito importante, foi uma coisa que eu gostei muito de fazer, eu fui chefe de redacção, o director da revista era o António Alçada, e fui chefe de redacção até 1969, ano em que António Alçada abandonou a revista, já estava farto de perder dinheiro com a revista, e a revista não dava dinheiro, antes pelo contrário, era um prejuízo enorme para ele, e portanto teve de a deixar em 1969 e eu fiquei, tentando encontrar outras formas de arranjar dinheiro e ter outros apoios, que se alegraram mais ou menos, mas em 1970 acabei mesmo por sair da revista.
I.Q.S.: Que significado teve para si ter assumido as funções como responsável pelo sector de Cinema do serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian? Já nesta altura pretendia ter uma carreira tão directamente ligada com o cinema?
J.B.C.: Exactamente, eu sempre me tinha interessado imenso por cinema, desde miúdo que adorava cinema, e que ia ao cinema com muita frequência, mas era uma paixão como a de outros miúdos, embora na minha geração, todos nós adorávamos cinema e íamos muito ao cinema. Na Faculdade eu comecei a tomar isso mais a sério, estudar sobre cinema, ler mais coisas sobre isso, e a fazer parte de cineclubes, que nessa altura existiam, que eram clubes onde se projectavam filmes e se discutiam filmes, havia um cineclube universitário, depois nós exactamente também entre os católicos, criámos um cineclube para católicos e portanto isso quer dizer alimentou o meu gosto sobre cinema, e comecei a escrever muito frequentemente sobre cinema, comentários, textos sobre filmes críticas a filmes, por aí fora. Durante o tempo em que estive na revista “O Tempo e o Modo” também. “O Tempo e o Modo” tem uma secção de Artes e Letras, em que havia todos os meses uma crítica a um filme, que estivesse em exibição em Lisboa, e que nos parecesse mais importante ou mais merecedor de atenção da crítica, eu muitas vezes escrevia essas críticas sobre cinema, portanto, mantinha-me a par do que se passava no cinema. E, em 69, exactamente numa altura, em que por um lado o “O Tempo e o Modo” estava com os dias contados, acabou no ano seguinte, por outro lado também a Associação pela Liberdade e Cultura não me dava dinheiro suficiente para viver, e um dia, apareceu-me um convite da Gulbenkian, que ia criar uma secção de cinema para ajudar o cinema português, e precisavam de uma pessoa. E então convidaram-me e perguntaram-me se eu queria ser essa pessoa que ficava responsável pelo cinema na Gulbenkian. E eu disse logo que “sim”, isto surgiu numa boa ocasião já estava a ver a vida com certas interrogações à frente, e uma coisa que eu gosto muito, que me interessa muito e ainda por cima, numa posição em que podia apoiar o cinema português, que estava bem necessitado desse apoio.
I.Q.S.: Qual foi a importância do 25 de Abril na sua vida? Onde é que estava? Quando e como é que percebeu o que é que estava a acontecer? Estava à espera que aquele fosse o momento?
J.B.C.: Ora bom, essa é uma pergunta interessante para a nossa conversa. É claro que desde 1958, desde Humberto Delgado, que falei há bocado, que eu estava à espera que o regime caísse. Eu e toda a gente que era da oposição, dizíamos “é agora”, 58 foi uma grande esperança, uma época de grande emoção, com muitas manifestações de rua, muito barulho e pensávamos “isto não pode aguentar mais tempo”. Tornava-se visível pela primeira vez que a grande maioria das pessoas era contra o governo, e que se houvesse eleições verídicas, o governo perderia com uma grande margem. Mas exactamente a repressão era tão grande, e houve tantas esperanças, sempre frustradas que a certa altura em muitos momentos de desânimo acabei por pensar “eu se calhar vou morrer e não é o Salazar, é natural que morra esse antes de mim pela ordem natural das coisas, mas este regime se calhar vai manter-se até eu morrer”. Cada vez que se falava em tom muito sério “é agora, parece que é agora, mais não sei o quê”, eu “está bem, mais uma história”. Porque houve muitas ocasiões em que se pensou “é agora”. Lembro-me de uma vez, a seguir às eleições de 58, em 59, exactamente em que houve uma tentativa chamada “Revolta da Sé”, e também estavam ligados católicos que me tinham falado, tinham-me dito se eu queria participar e ir trabalhar para o “Diário de Notícias”, dessa nova revolução. E eu passei uma noite inteira acordado à espera de um sinal que tinham ficado de me dar, que era o sinal para eu ir imediatamente para Lisboa, não dormi toda a noite à espera do sinal, e afinal não houve sinal nenhum, e depois soube que a missão tinha sido abortada e que muitas pessoas tinham sido presas, etc. até várias outras ocasiões frequentes, a “Crise de 62”, com os estudantes, muito perigoso, golpes internos e externos e não havia ideia de quando é que isto ia acabar. Em 74, eu entretanto participei muito na luta política, e em 69 participei até mais directamente como candidato numas eleições. Já se sabia que não ia ganhar mas para poder fazer uma campanha frontal contra o regime. E isso teve um grande sucesso, chamava-se CDE e ligava católicos e gente mais à esquerda, do PC, que teve um grande impacto em Lisboa, e um grande movimento de solidariedade e de apoio. E as pessoas pensaram que depois da morte de Salazar “não o Marcello Caetano vai começar a liberalizar o regime aos poucos, vai transformar isto na Democracia”. Mas não estava nada à espera do 25 de Abril, em Março desse ano tinha havido uma tentativa de golpe militar, também chamado “Golpe das Caldas”, em que foram presos mais uma série de militares e portanto mais uma esperança se tinha ido. E não tive qualquer eco nem qualquer boato, nada me chegou a mim sobre a preparação do 25 de Abril. Portanto fui completamente apanhado de surpresa. Lembro-me de um facto curioso, que estava com um amigo, Vasco Pulido Valente, em casa, na véspera à noite, e que tivemos uma longa discussão sobre a situação política, e ele tentou convencer-me, ele também era da oposição que o regime estava para “lavar e durar”. E eu dizia “talvez não seja tanto assim”, a tentar arranjar esperanças, e tivemos a discutir se o regime ia ou não cair ou não cair a breve prazo, já a revolução estava na rua e nenhum de nós sabia. Entretanto eu estava novamente a dar aulas, em 73 criou-se uma Escola Superior de Cinema no Conservatório Nacional, criada por Madalena Perdigão, hoje em dia está ali em Queluz mas nessa altura era aqui no Conservatório. E eu portanto nessa altura estava na Gulbenkian a “meio-tempo”, e outra metade do meu tempo era nas aulas, como professor nessa escola. E portanto nesse dia saí de casa de manhã para as aulas, às 9 tinha de estar no conservatório, e eu tinha sempre tendência para me atrasar normalmente chegava sempre um bocadinho atrasado às aulas, por causa do trânsito, moro em Sintra, e o trânsito de Sintra para Lisboa comparado com hoje, demorava um bocadinho e naquele dia reparei “não há trânsito nenhum. Está um dia fabuloso, o que é que terá acontecido? Que engraçado!”. Nem me passou pela cabeça que alguma coisa desse género pudesse estar a acontecer. Cheguei ao conservatório, ainda um bocadinho antes das 9, faltavam cinco minutos, pensei “é a primeira vez que me acontece, chegar antes”. Depois eu paro o carro para ir dar aulas e passa um amigo meu que me vê e diz “então é desta” e eu “é desta o quê?”. E ele “então tu não sabes? Revolução, revolução”. Eu disse logo “ó meu Deus, a esta hora da manhã não, estou cheio de sono”, tenho sempre uns acordares terríveis, de manhã estou sempre impossível, disse-lhe “não me venhas com revoluções a esta hora da manhã, não venhas gozar comigo!”. E convenci-me de que ele estava a brincar, entrei no conservatório, não se falava de outra coisa e tinha acabado de chegar uma ordem para não haver aulas nesse dia e eu pensei “espera aí. Isto é mesmo a sério”. E fui andar pela cidade, notícias não havia nenhumas a não ser aquele comunicado um bocado misterioso. Havia movimento das Forças Armadas e ninguém nos explicava o que é que era. Havia quem dissesse que estavam envolvidos líderes de direita, outros líderes de esquerda e ninguém percebia bem o que é que era. Não havia grandes coisas na rua, não havia notícias nenhumas, à hora de almoço as televisões não transmitiam, a televisão fechava e a certa altura começou a ir muita gente para o Carmo, para onde eu também fui, e bom foi durante o dia que aquilo se tornou evidente o que se estava a passar, e foi a maior alegria da minha vida, ter vivido esse momento eu considero-me como toda a gente que o viveu, um privilegiado, porque é uma sensação inacreditável, parece um milagre, a sensação de agarrarmo-nos uns aos outros a chorar, uma comoção que não é possível, e fiquei contentíssimo por este país, ter de repente conquistado outra vez a liberdade e tenha sido tão fácil, sem sangue, sem violência, a P.I.D.E. ainda matou um rapazinho, mas foi a única pessoa que morreu, e em qualquer país quando há uma revolução há normalmente uma quantidade enorme de mortes de um lado e do outro, ali nem isso aconteceu e estávamos a viver esse acontecimento inesquecível e à noite é que nos lembrámos dos presos que estavam em Caxias. Então foi tudo para Caxias e houve uma discussão com os militares se havíamos de deixar sair todos os presos ou não. E nós pensámos ou “ou saem todos ou não sai nenhum”, e abrimos as portas da prisão e começou a sair aquelas pessoas todas, alguns dos quais eram meus amigos e que estavam lá há anos, e de repente começou tudo aos abraços, e foram dias inesquecíveis que me sinto muito feliz por ter vivido.
D.LC.: Doutor Bénard da Costa, de todos os anos que trabalhou aqui na Cinemateca, guarda algum episódio engraçado que por uma razão ou por outra o tenha marcado? Alguma situação vivida com uma personalidade importante, sabemos que já passou por aqui tanta gente, ainda no outro dia soubemos da homenagem feita a Michel Piccoli, existe alguma acontecimento que gostasse de referenciar?
J.B.C.: Passou por aqui muita gente, de actores a realizadores, nomes grandes do cinema Mundial como Lauren Bacal, célebre actriz americana que foi casada com o Humphrey Boggart, que morreu em 57 e portanto já não é desse tempo, mas ela que era muito mais nova que ele, tinha sido casada com ele, e hoje é uma actriz celebérrima, ainda é viva felizmente e esteve aqui na Cinemateca, a Catherine Deneuve, a Claudette Colbert, que ainda é mais antiga, foi uma das glórias do cinema dos anos 30, ganhou um dos primeiros Óscares em 1934, era uma das actrizes mais bem pagas de Hollywood nos anos 30, o Mickey Rooney que começou muito miúdo e teve uma carreira muito grande, o Kirk Douglas, pai do Michael Douglas e nomes do cinema europeu que não acabam mais, o Mastroianni o Piccoli, entre tantos, tantos outros.
Guardo imensas recordações, por exemplo uma situação que posso contar, das mais engraçadas, que ocorreu com a própria Claudette
Colbert , de quem estava a falar há bocado que enfim quando veio cá já tinha mais de 80 anos, mas ela tinha sido muito bonita e mantinha todos os truques de vedeta. E portanto durante toda vida, na América, durante carreira ela só deixava ser filmada dum lado da cara, que era o lado que ela achava que ficava sempre melhor, e nunca do outro lado, ao qual ela não queria que tirassem fotografias. Ela normalmente quando havia fotógrafos explicava mas claro naquela grande atrapalhação criada por imensa gente, os fotógrafos não respeitaram, e havia fotógrafos de um lado e de outro. E ela levantou-se com os seus tais 80 e tal anos, levantou-se ali na Sala da Cadeira e de repente tirou as máquinas todas dos fotógrafos e mandou-os todos para o outro lado, enquanto a sala ovacionava em delírio. Lembro-me por exemplo de outra situação muito engraçada que foi com uma vedeta popularíssima espanhola que foi cá muito popular nos anos 50, que era a Sarita Montiel e também já tinha uma certa idade quando cá veio, não era tão velha como a Claudette
Colbert , mas já devia ter sessenta e muitos quando cá esteve. E eu fui esperá-la ao aeroporto, e ela está bastante conservada, está bastante bem para a idade que tem. E o guarda-costas que vinha com ela disse “se acha que ela está bem conservada espere para ver logo à noite”. E de repente, eu estava aqui à espera dela na Cinemateca, estava a chegar imensa gente, ela foi muito popular em Portugal, e por isso isto estava cheiíssimo de gente, um entusiasmo enorme com ela, e eu vejo chegar o carro, ela saiu e eu digo “não é possível!”. Aparece-me uma pessoa daquela idade com uma mini-saia e um mega, mega decote, sapatos encarnados, meias cor-de-rosa, uma toilette, uma coisa, e assim dali da rua para o portão, assim ao escuro, à noite parecia uma rapariga nova parecia de repente, eu dizia “não é possível! O que é que se passou ali?”. Enfim depois ao pé via-se, dava-se pelo tempo, mas ela portanto preparou-se ainda sem medo nenhum do ridículo, como se fosse uma rapariga nova, e a figura era incalculável, realmente desafiava tudo o que se podia pensar que uma pessoa daquela idade ia pôr para um momento como aquela ocasião. Era realmente como se os anos não tivessem passado por ela. E lembro-me de tantas outras histórias, que se citasse davam para a tarde inteira.
D.L.C.: Doutor João Bénard da Costa, antes de mais nada queria agradecer o tempo que nos disponibilizou, se calhar até foi mais do que podia dar, uma última pergunta, sabemos e admiramos bastante a participação muito activa que tem tido ao longo destes anos no cinema português, duas questões: o que é que pensa deste? Acha que as pessoas hoje em dia se interessam e se preocupam com o cinema português? E depois da sua retirada, um dia deste cargo, pensa que quem vier a seguir dará o mesmo impulso, e continuará o trabalho desenvolvido por si aqui na Cinemateca?
J.B.C.: Ora bom, em relação ao cinema português eu acompanho o cinema português desde os anos 50, portanto desde os meus 20 anos, numa altura em que o cinema em Portugal estava a atravessar uma crise terrível e vi muitas esperanças concretizarem-se, com o Paulo Rocha, Fernando Lopes, António Macedo nos anos 60 e portanto vi de recente começar a aparecer um cinema diferente, um cinema novo e acima de tudo a consagração total do realizador Manoel de Oliveira, que aos 60 anos pensavam que ele não ia fazer mais nada, e toda a gente o apelidava de “o Velho”, lembro-me do Doutor Azeredo Perdigão, estávamos à bocado a falar nele, que era muito mais velho que eu, uma vez me dizer na Gulbenkian quando ele passou, “neste rapaz acredito eu”, e aquela frase do “este rapaz”, que tinha 60 anos era bastante curioso referir-se a ele com aquela idade como “este rapaz”. Mal sabia eu como ele tinha razão e como de facto naquela altura ele tinha feito 34 filmes e fez 30 até quase aos 100, que ainda não tem, vai fazer para o ano. E conseguiu esta consagração, e é uma das personalidades portuguesas mais conhecidas no Mundo inteiro, ainda agora em Cannes, foi recebido de pé por toda a gente, numa ovação enorme, pelo reconhecimento que tem em toda a parte, e é um dos maiores cineastas vivos. E isso para mim, eu que sou um grande, grande admirador de Manoel de Oliveira, tenho grande alegria em ver esse reconhecimento conseguido ao longo destes anos todos. E penso que o cinema português tem algumas obras importantíssimas, sobretudo a partir dos anos 70/80, tem alguns dos grandes filmes da história do cinema, não só na obra do Manoel de Oliveira como na de alguns cineastas como João César Monteiro, Paulo Rocha, Fernando Lopes, autor de “O Delfim” e o último filme dele é “98 Octanas”, que tem uma longa filmografia, até na dos mais novos, um realizador como Pedro Costa, que eu considero um grande cineasta. Portanto e segundo um crítico francês que chegado a Portugal classificou como “país com mais cineastas interessantes por metro quadrado”, talvez seja um bocado exagero, mas é sem dúvida, numa filmografia pequena como a nossa, com obras mais curiosas e interessantes em vários pontos de vista, infelizmente não é muito reconhecido em Portugal, os portugueses não gostam muito dessa sua faceta, porque é um cinema que não é em nada igual ao cinema americano, que é considerado o modelo dentro do cinema, nem nunca poderemos fazer um cinema igual ao deles pois não temos nem tanto dinheiro nem tantos talentos.
Quanto à segunda pergunta que me faz, o que acontecerá quando eu sair daqui, como se costuma dizer “o futuro a Deus pertence”, e não quero fazer profecias, espero que tudo continue a correr muito bem, que é esse o sincero desejo que eu formulo e que as pessoas continuem a obra que está feita, o que eu acho, modéstia à parte bastante importante.
Entrevista realizada por Diogo e Isabel, na Cinemateca Portuguesa de Lisboa, situada na Rua Barata Salgueiro, no dia 23 de Maio de 2007, por volta das 16 horas.
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