quinta-feira, 24 de maio de 2012

O olhar de matador e o Águia d'Ouro

Evocação de Rodolfo Valentino
por
Alves Costa


Henrique Alves Costa (1910-1988) desempenhou um papel fundamental na divulgação do cinema no Porto e no país, e na divulgação do cinema português. Co-fundador do Cineclube do Porto, do Cineclube do Norte, da Federação Portuguesa de Cineclubes, dirigiu também a revista “Cinema”, desta última, e foi autor de variados textos críticos e livros.



Alves Costa
QUANDO eu era rapazinho, meu pai levava-me todas as semanas ao cinema. As vezes à saída, encontrávamos as ruas em reboliço. Soldados da Guarda Republicana galopavam pela Rua do Almada. Alguns chanfalhos alombavam em manifestantes menos lestos em escapar-se. Ouviam-se vivas ou morras lá para baixo, para a zona dos cafés. Nessas noites, a ida ao cinema era ainda a mais excitante. Meu pai, muito calmo e sem pressas, metia-me por travessas que nos, afastavam do burburinho e regressávamos a casa, tranquilamente, a pé. Naquela altura não se repartiam as fitas por idades, nem meu pai se preocupava em averiguar se ao menino convinha ou não convinha ver «Os últimos dias de Pompeia» ou «Charlot prestamista», as aventuras de Eddie Polo pelo Far-West americano ou os dramas de amor da diva Pina Menichelli. Santa liberdade que permitiu aos meninos da minha geração, antes da idade do liceu, entrar no mundo maravilhoso que o cinema descobria diante dos seus olhos avidos e muito abertos. Recordo melhor algumas dessas idas ao cinema, pela mão de meu pai, do que muitas sessões de cinema a que assisti nos últimos dez anos. Quem pode jamais esquecer a emoção, o espanto, a aventura, o fascínio de uma descoberta todas as semanas renovadas?


Cine Águia d’Ouro, 1968, possivelmente um dos cinemas referidos por Alves Costa.
Foto original de Óscar Coelho da Silva encontrada em casadecamilo.wordpress.com

Pois foi por ter acontecido pertencer a uma geração que, começou a ir ao cinema, livremente, aos cinco anos de idade, que pude ver, à data da sua estreia, «Os quatro cavaleiros do Apocalipse», primeira versão do romance de Blasco Ibanez, realizada em 1921 por Rex Ingram, tendo como interprete de um dos principais papéis o jovem actor Rodolfo Valentino, que viria a ser uma das mais populares figuras do cinema de todos os tempos. Na minha memória ficaram muitas imagens dispersas e confusas. Mas lembrava-me sempre da figura dum general alemão (interpretada por Wallace Beery, como muito mais tarde vim a saber) e de um tango (muito argentino....) que Valentino dançava... e que os meus parentes mais crescidos procuravam imitar nas bailações que se faziam em família em dia de anos. Tipo acabado do que os

Rodolfo Valentino com o olhar de matador no filme The Young Rajah (1922) de Phil Rosen. Foto LIFE Archive.

americanos chamam the latin lover, esse jovem e medíocre actor de olhos pisados e olhar castigador, tornou-se, de repente, o ídolo das mulheres de todo o mundo e modelo para os «don-juans » de todas as latitudes. «Arenas sangrentas» e o «Sheik» consolidaram-lhe a fama. Púberes donzelas encarnavam em Valentino todos os seus sonhos de paixões arrebatadoras ou de desvairados e românticos amores. Mulheres maduras e experientes compensavam, num amor platónico por Valentino, todas as suas frustrações sexo-sentimentais. Todas - sobretudo depois de terem visto «O Sheik» lançado em 1922 - traziam Rudy Valentino no coração e o pensamento perturbado pelo secreto desejo - que tantas noites lhes agitava o sono - de serem amadas, seduzidas, violadas por tão perfeito e perturbante apaixonado...
Eu ouvia falar muito de Valentino, nos meus muito verdes anos. Meus primos mais velhos - como muita rapaziada da época - usavam penteado lambido e patilhas «à Valentino». O retrato de Rudy podia ver-se à cabeceira de muita menina que despertava para o amor ou de muita solteirona pronta para a dádiva de si própria.. Levado naquela onda, com os meus doze ou treze anos, também algumas vezes vagamente desejei vir a ser assim belo, desenvolto, vitorioso e sedutor, quando fosse grande...


Rodolfo Valentino em The Sheik (1921) de George Melford e em The Young Rajah (1922) de Phil Rosen. Fotos LIFE Archive.

Quatro anos depois, estalaria o drama. Rodolfo Valentino, o great Iover por excelência, o ídolo de todos os corações românticos dos anos vinte, morria, após prolongada e dolorosa agonia, em 24 de Agosto de 1926, com trinta e dois anos de idade! A consternação excedeu todos os limites. Aqueles fenómenos de delírio ou de histeria colectiva de que tanto acusam os teen-agers de hoje, ficam a perder de vista ao lado da vaga emocional que sacudiu a América e a própria Europa.
Durante o velório e o funeral gera-se um aperto monstro. As pessoas empurram-se, pisam-se esmagam-se e muitas são levadas dali seriamente feridas. Centenas de mulheres perdem a cabeça, gritam, arrancam os cabelos, rasgam as roupas; desmaiam ao lado do ataúde, estrebucham em convulsões de histerismo, sufocam numa torrente de lágrimas e soluços. É um delírio colectivo como nunca se tinha visto. As ruas que conduzem ao cemitério, estão cobertas de flores. Desde a véspera que já não havia onde colocar mais coroas, mais ramos... Depois veio o luto... alguns suicídios... e a criação de associações para manterem viva a memória de Valentino. Em Portugal, muita gente vestiu-se de preto...


Funeral de Rodolfo Valentino.


Hoje, tudo isto custa um pouco a acreditar. Muitos, muitos anos depois da morte de Valentino, ao ver «O Sheik», com um pequeno grupo de pessoas de idades diferentes, encontrámo-nos todos a rir até às lágrimas com as cenas de amor do sedutor Rodolfo. Como tinha sido possível - interrogávamo-nos - tamanha loucura colectiva, tamanho fascínio à escala mundial por este jovem actor cujo magnetismo se perdera por completo e cujo «felino encanto» agora nos parecia profundamente ridículo?... Como foi possível que o tempo (umas dezenas de anos) tenha desagregado o mito, tenha destruído um dos maiores ídolos do cinema, tenha apagado o seu magnetismo?... Mas ter-se-ia - mesmo apagado?... Teria o ídolo sido mesmo destruído?...
Com espanto, verifico que o culto por Valentino não desapareceu ainda. Noticiaram os jornais que no passado dia 26 de Agosto, muitas centenas de pessoas vieram juntar-se à volta do túmulo de Rudolfo Valentino numa manifestação de emocionada saudade, quarenta e cinco anos depois da sua morte!
A morte de Valentino não apagou logo o fogo da sua popularidade, não extingiu logo a sua fama lendária. Mas os anos passaram. Vieram outros gostos, outras modas, outros tipos de sedutores outras gentes. Com o Cinema sonoro vieram outros ídolos. O tempo trouxe - supunha eu - o esquecimento. Um dia destes, abro jornal e leio com espanto que Rodolfo Valentino não tinha sido esquecido. Que ainda há quem mantenha vivo (ou reacenda) o culto da sua memória (e ao que diz a notícia são por centenas os votos!) e vá chorar sob a sua campa coberta de flores, a quarenta e cinco anos de distância da sua morte!... Mas quem? Velhinhas de setenta anos (que continuam a sonhar)?... Jovens (ainda românticas) e por certo frustradas, entontecidas e fascinadas por um herói de lenda?... Gostaria de saber.

ALVES COSTA, jornal A Capital, 11 de Setembro de 1971

Um cinema do Porto já desaparecido


 O Cine Águia d'Ouro no inicio dos anos 20.
Foto encontrada em doportoenaoso.blogspot.pt

 O Cine Águia d'Ouro no fim dos anos 80.
Foto encontrada em outra-face.blogspot.pt


O dia 17 de Junho de 1899 marcou o nascimento do Cinema Águia d’Ouro. Edificado na Praça da Batalha, no Porto, a sua fachada oitocentista marcou, durante anos, o cinema portuense. Foi circo, recebeu teatro e, em 1907, assistiu à estreia do cinematógrafo de Thomas Edison. A partir de 1920, a exibição de filmes começou a ser feita de forma regular. Viveu uma época áurea e no local, onde anteriormente funcionou um botequim, realizaram-se tertúlias com a presença de Camilo Castelo Branco, Delfim Maia, entre outros. No entanto, na década de 80 entrou em declínio e acabou progressivamente dotado ao abandono e à degradação, o que ditou o seu fim no dia 31 de Dezembro de 1989. 
(In, www.jn.pt)


Fachada do  Cine Águia d’Ouro por volta de 1964/65. Os dois filmes anunciados estrearam por cá em 1964  (Os 4 agentes secretos, filme francês de Georges Lautner) e 1965 (Os 29 Irmãos, filme português de Augusto Fraga). Geralmente só se fazia cartazes gigantes para filmes que iam estrear. 
Foto encontrada em monumentosdesaparecidos.blogspot.pt





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