quarta-feira, 25 de julho de 2012

O CINEMA PORTUGUÊS É UM MILAGRE


História de um encontro, entre dois grandes realizadores portugueses, ambos com 80 anos na altura do encontro, organizado pelo jornal Se7e em 1988.


António Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira


Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira, produção de António Lopes Ribeiro. 
Carregado no youtube por CanaLusitano em 29-12-2011.


Coisas boas em jornais



Manoel de Oliveira e António Lopes Ribeiro, 1988.


Um nasceu em Abril... O outro em Dezembro. Foi há 80 anos. A história das suas vidas é praticamente paralela á história do cinema em Portugal, cinema de que ambos fizeram rofissão. António Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira, dois «monstros» do cinema luso, dois nomes reconhecidos internacionalmente, duas obras polémicas. Com oito meses de diferença, Lopes Ribeiro e Oliveira são duas referências, daquelas fundamentalíssimas, da história do cinema português. António Lopes Ribeiro ficará para sempre ligado ao esplendor da comédia dos anos 40, a filmes com «O Pai Tirano» ou «A Vizinha do Lado». Manoel de Oliveira, que continua a realizar (ao contrário de Lopes Ribeiro que parou em 1959), é o cineasta português mais premiado internacionalmente. Juntar os dois não foi tarefa fácil. Um vive em Lisboa, outro no Porto e ambos continuam com uma vida profissional activa, com poucos momentos livres. A ideia de um encontro, para uma entrevista conjunta foi recebida sem reservas. Disseram ambos: aceito se ele aceitar. E aceitaram! Foram precisos três meses para acertar uma data, uma hora, um local. Foi na terça-feira passada, ás três da tarde, na sala de visionamento dos Filmes Castello Lopes, ali ao Marquês de Pombal. Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira não se encontravam há vários anos. Ambos de excelente humor declararam de imediato que o essencial, ali, era recordar alguns acontecimentos que os ligaram ao longo dos anos, alguns dos quais foram determinantes nas suas carreiras. E começaram a falar, praticamente sem interrupção, sorvendo um as palavras do outro, por aí fora...

Manoel de Oliveira — Posso dizer que conheci o Lopes Ribeiro há perto de 60 anos, em 1931. 0 Lopes Ribeiro tinha visto partes do «Douro Fauna Fluvial» e tinha gostado. Um dia, vinha eu do Porto, cheguei à estação do Rossio e éle estava à minha espera. Não nos conhecíamos pessoalmente. Lembro-me que desembarquei e ele perguntou-me: «Você é que é o Manoel de Oliveira?» Eu respondi que sim. Então ele disse-me que era preciso que o meu filme passasse no Congresso Nacional da Crítica, que se realizava nessa altura. Mas o «Douro Fauna Fluvial» ainda não estava pronto. Eu disse ao António que ia fazer os possíveis para acabar o filme a tempo, mas que ia ser muito difícil. O António disse-me apenas: «Não vai fazer os possíveis, vai fazer os impossíveis!»

António Lopes Ribeiro — É verdade! Foi em 1931. Foi nesse ano que se realizou o Congresso Internacional da Crítica. Estiveram em Portugal os maiores criticos de cinema, música e teatro, neste Congresso organizado por António Ferro. E o facto é que o «Douro Fauna Fluvial» passou mesmo. O filme foi exibido, ainda mudo, no Salão Central, no Palácio Foz. A crítica recebeu muito bem o filme. Depois disso eu pedi ao Manoel que me deixasse sonorizar a película, e assim foi. E então o «Douro Fauna Fluvial» foi o complemento da exibição do meu `Gado Bravo', projectado no Tivoli, com música de Luís Freitas Branco. É essa versão sonorizada que está agora na Cinemateca Portuguesa. A seguir a «Gado Bravo» eu decidi concretizar um sonho: a produção contínua. Depois de ter feito «O Pai Tirano» e «O Pátio das Cantigas», o Vasco Santana disse-me que o Manoel de Oliveira tinha uma história muito engraçada com miúdos, baseada num conto de um escritor do Porto, Rodrigues de Freitas, um conto publicado na Presença, «Meninos Milionários». E assim o terceiro filme das produções António Lopes Ribeiro foi o «Aniki Bobó», por recomendação do Vasco Santana.

M.O. — É interessante porque eu participei na produção com uma pequena parte dos custos, com 150 contos. O «Aniki Bobó» custou 750 contos. Depois deste filme ainda houve a perspectiva de outro trabalho conjunto, meu e do Lopes Ribeiro, mas não se concretizou. Era um projecto que eu tinha, «A Caça». O Lopes Ribeiro fez uma combinação com a Tóbis chegou a propor-me a produção do filme. Mas depois houve um problema qualquer e não chegou a ser co-produção dele. Mas a primeira pessoa a dar um passo a favor de «A Caça» foi o António.

A.L.R. — E ainda há outro episódio que me relacionou com o Manoel. Foi com «O Acto da Primavera». Fui eu que dei o «empurrão» no Conselho de Cinema para que ele pudesse fazer o filme. Por isso, ao contrário do que muitos idiotas para aí dizem, sempre me interessei pela carreira do Manoel e tenho o maior gosto nos seus triunfos. É ou não é verdade?

M.O. — É! O Lopes Ribeiro sempre foi uma pessoa aberta, não era de invejas. É uma pessoa que se abre, que reconhece o talento dos outros e que sempre facilitou a vida aos outros. Eu lembro-me (ainda não conhecia o Lopes Ribeiro) que havia três homens que se encontraram um dia em Paris e fizeram a promessa de levantar o cinema português, de arrancar com o nosso cinema, que estava parado. Eram o Leitão de Barros, o Chianca de Garcia e o António Lopes Ribeiro. Daí, de facto, começaram a fazer filmes: de maneira que o Lopes Ribeiro foi sempre uma figura cimeira do impulso do cinema português.


Porto, 1942: Manoel de Oliveira durante a rodagem de Aniki-Bóbó. Foto encontrada em www.rtp.pt.

António Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira. Já sabemos que se conheceram na estação do Rossio que tiveram projectos comuns. Mas os dois cineastas acompanharam o nosso cinema desde pequeninos. E sabem muitas histórias desses tempos maravilhosos da descoberta da imagem animada...

A.L.R. — É curioso lembrar que os grandes centros cinematográficos nunca eram nas capitais dos países. Em Espanha o cinema nasceu em Barcelona, em Itália nasceu em Milão, em Portugal nasceu no Porto. O cinema português é um milagre. Primeiro com Aurélio Paz dos Reis, depois com a Invicta Filmes. Bom e depois, também, com o Manoel de Oliveira, que tinha a sua moviola. Era ou não era? Que é feito disso?

M.O. — Isso desapareceu tudo. Em tempos vendi esses aparelhos. Depois com o 25 de Abril foi-se o resto...

A.L.R. — E agora só rezando-lhes pela alma. Mas o cinema português teve um grande período áureo no tempo do cinema mudo, que foi o da Invicta Filmes. Fizeram-se excelentes filmes, que eu aliás tive ocasião de apresentar, ainda não há muito tempo, na RTP, no Museu do Cinema.»

M.O. — Há muitas histórias curiosas dos primeiros tempos do cinema português. Lembro-me, por exemplo, de um caso anedótico passado com «Ver e Amar», do Chianca de Garcia: os actores do filme parece que estavam mal, a crítica não foi favorável, etc. Então houve alguém que perguntou ao Leitão de Barros (que nessa altura era um realizador de nomeada, muito considerado): «Como é que acha que vão os actores neste filme?» Ele respondeu apenas: «Sabe... Há filmes onde os actores vão bem, há outros filmes onde os actores vão mal. Em `Ver e Amar' os actores não vão!» (Risos)

A.L.R. — Antes de ser realizador eu tinha sido critico cinematográfico. Fazia uma crítica humorística numa secção chamada «Fitas Faladas». Ao fim de uns meses o Joaquim Manso convidou-me para ter uma página inteira sobre cinema no «Diário de Lisboa». Curiosamente foi o primeiro jornal do mundo que dedicou uma página inteira à crítica cinematográfica. Ninguém ligava nenhuma ao cinema. Era considerado uma arte de terceira ordem.

M.O. — E uma vez fizeste um manifesto contra o Charlot, não foi?

A.L.R. — Foi no Quino. Fiz um número inteiro contra o Charlot. A minha admiração pelo Chaplin era total. Mas, nessa altura, ele negou-se a fazer cinema sonoro. Queria continuar a fazer filmes mudos. E nós, defensores do sonoro, indignámo-nos com ele e fizemos essa brincadeira, esse manifesto anti-Charlot. Mas o Chaplin levou aquilo tão pouco a mal que até consentiu que eu depois lhe traduzisse a autobiografia e a prefaciasse. E aí até aconteceu mais um caso curioso. Quando a editora me convidou, eu disse que queria fazer um prefácio. Eles responderam-me que o Charlie Chaplin não queria prefácio nenhum. Mas eu insisti: faz-se um prefácio, passa-se para inglês, manda-se ao homem e se ele disser que não se publica, não se publica. Então eu mandei um prefácio ao Chaplin, em inglês, a dizer tudo ao contrário do que era costume dizer-se do Charlot. Porque o Charlot é dado como um exemplo do protector dos fracos. Ora ele nunca quis nada disso. O que ele fazia era só malandrice, dava pontapés nas criancinhas, roubava as caixas das esmolas, era um falso burguês. O que é facto é que ele concordou com aquilo que eu disse dele no prefácio.

M.O. — Mas há outra história com o Leitão de Barros. Uma vez o Francisco Quintela, que tinha um laboratório e que precisava de trabalho, encontrou o Leitão de Barros e começou a insistir com ele para que fizesse mais filmes (Obviamente, ele queria era material para revelar no seu laboratório). Então o Leitão de Barros respondeu: «Eu gostava de ser realizador mas era dantes... Quando era o primeiro e único!» (Risos).


Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira, produção de António Lopes Ribeiro. 
Foto encontrada em fotos.sapo.pt.

As histórias vão surgindo naturalmente. Não é preciso estimular. Acontecem, simplesmente. Sobre as suas relações com o poder, de que quase sempre dependeu o cinema português, os dois realizadores não têm razões de queixa. Consideram que não há interferência do poder na realização e na produção dos filmes. Há interferência apenas no nível das escolhas dos filmes a subsidiar. Do cinema português que se faz actualmente evitam falar. Dizem-me que terei de entrevistar um dos realizadores que hoje são novos, quando esse realizador fizer 80 anos. E esquivam-se a uma resposta mais concreta. Em relação ao público, Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira consideram que o cinema atravessa uma crise, mas que essa crise é mundial, não é portuguesa:

A.L.R. — Hoje em dia há o vídeo, a televisão. Não é que o cinema morra, até porque através da televisão muitos filmes são reexibidos.

M.O. — Mas isto também não quer dizer que seja uma situação definitiva. Hoje, o público não vai ao cinema como ia antes, mas pode tornar a ir. Dantes fazia-se um filme e contava-se com o Brasil, Africa e Portugal. Era dinheiro que vinha logo à cabeça.

A.L.R. — De certa maneira o cinema até tem mais força. Pode passar na televisão e pode ser registado em vídeo, tem um alcance maior. Agora tem é uma expansão de outro género. Eu por exemplo não posso ver uma fita na televisão, faz-me impressão, naquela escala não consigo. As fitas não são feitas para serem vistas daquele tamanho.

M.O. — Perde muito! Perde todo o fascínio de uma sala escura, de um ecrã grande.

A.L.R. — E mais! A televisão não é um espectáculo, é um serviço doméstico. Quando se está a ver uma fita em casa pode-se interromper, fazer barulho. Quando se vai ao cinema, ficamos fechados numa sala escura. Um indivíduo não vê senão o que se passa entre ele e o ecrã. E se alguém se atreve a falar alto no cinema, durante um filme, mandam-no logo calar. A televisão não é um espectáculo, é um serviço doméstico, como a electricidade, a água ou o gás.»

António Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira. Este ano fazem 80 anos de idade, muitas décadas de cinema. Muitos filmes, muitos metros de película, muitas horas de prazer. E o que é que um acha do trabalho do outro? Que preferências? Que críticas? Vamos saber:

A.L.R. — Dos filmes que vi do Manoel de Oliveira, gosto mais dos últimos do que dos do meio. Vi no outro dia «O Meu Caso» e gostei muito. Gostei muito de «Francisca». Já gostei menos de «O Passado e o Presente» e de «Benilde ou a Virgem Mãe». «O Sapato de Cetim» ainda não vi. Só tenho pena que o Manoel de Oliveira tenha querido fazer agora um cinema... como direi? menos comunicativo, do que eram os seus primeiros filmes. Agora estás outra vez a libertar-te um bocadinho disso. Também em determinada época o intelectualismo era extraordinariamente apreciado e todo o outro cinema era considerado comercial e, portanto, desprezível. O Manoel de Oliveira, que não é parvo, seguiu essa receita e não se deu nada mal. Foi ou não foi, ó Manel?

M.O. — Bom, mas eu segui sempre a minha intuição. Nunca me traí a mim próprio. Como de resto acho que tu não fizeste. Em relação aos filmes do Lopes Ribeiro, «O Pai Tirano» é um filme popular extraordinário. Evoca todo o êxito da revista, do estilo português, os actores cómicos, a piada portuguesa, aquele «gag» excelente da badalada na Torre de S. Deniz. O filme tem um êxito extraordinário nesse campo. Mas este filme não tem nada a ver com «Gado Bravo». Este filme é uma tentativa de cinema internacional. Mas eu vou agora falar em meu nome e no do Lopes Ribeiro: tanto ele como eu estamos convencidos de que os nossos melhores filmes ainda estão para fazer, ainda estão para sair! (Risos).

Texto de José Fragoso 
jornal Se7e de 28-09-1988
Fotos de João Bafo; copiadas do jornal Se7e




Manoel de Oliveira e António Lopes Ribeiro à conversa com o reporter, 1988.






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