domingo, 29 de julho de 2012

Aquele Inverno em Lisboa


Texto de
João Mário Grilo



Coisas boas em jornais



João Mário Grilo
A acreditar em Scorcese, que dizia ser o ecrã a melhor escola de cinema do mundo, ainda se estará para ver quantos cineastas se não terão feito entre Dezembro de 1985 e Março de 1986, nas salas da Cinemateca Portuguesa e da Fundação Calouste Gulbenkian, quando da realização do ciclo de cinema d'0 Musical (e o artigo é aqui importante, como já o havia sublinhado João Bénard da Costa, no início do 1° volume do respectivo catálogo).
Na era do vídeo (e dos pós do vídeo) e das suas múltiplas, variáveis e muito discutíveis (in)definições, já pouco espaço (económico) haverá para privilégios; por isso, dignos da mais verde das invejas estão aqueles que olharam, nessa altura, as cópias irrepreensíveis de Brigadoon, de Meet Me in St. Louis ou de The Pirate, todos de Vicente Minnelli, ou ainda, num mágico fim–de–semana prolongado, viram os Berkeleys deste ciclo, a começar no Footlight Parade, de 1933, e a acabar na vertigem diabólica e hipercolorida de The Gang's All Here, de 1942, com Carmen Miranda e tudo o resto.
Hoje, e passados que são quase quatro anos sobre a realização do ciclo, a ocasião é ainda de festa. Acabados de sair, estão já disponíveis os dois últimos volumes do seu monumental catálogo: o III volume, da responsabilidade de João Bénard da Costa e o IV, da responsabilidade de Miguel Esteves Cardoso.


As capas do III volume de O Musical: as letras por João Bénard da Costa.

O primeiro deles, que tem por justo título «As letras», é basicamente um dicionário crítico e sistemático de todos os realizadores, e dos principais actores e actrizes dos 180 filmes que compuseram o corpo fílmico do ciclo, bem assim como dos nomes mais significativos da art direction, da coreografia, da fotografia, do argumento e da produção. São no total, para cima de 1200 entradas, de Adbott (George), «o mais velho dos vivos», a Zwerin (Charlotte), obscura colaboradora dos Irmãos Maysles, como realizadora e montadora. Pelo meio ficam nomes porventura mais sonantes: de Berkeley (Busby) a Minnelli (Vicente), em dois longos textos de excelente recorte crítico, de Charisse (Cyd) a Astaire (Fred), passando — e porque não —por Rodrigues (Amália) e Costa (Beatriz). E se a carcaça do dicionário atemoriza—são 650 páginas—, o miolo é sempre escorreito, saboroso, invariavelmente correcto e até, pontualmente, irónico.
O interesse deste volume—decerto o mais importante dos quatro — não se resume assim (o que seria já muito louvável e mais do que suficiente) a um mero «arrumar» dessa casa caótica que é a heterogénea população que atravessou o género; o seu verdadeiro peso assenta antes no seu carácter deliberadamente pessoal e unitário, que pouco tem que ver com a folia e a monotonia arquivistas que norteiam o grosso deste tipo de produções. E significativo é, a este respeito, o que JBC escreve na entrada (de método) sobre Bogdanovich: «Muito me aproxima de Peter Bogdanovich, mais novo quatro anos do que eu. Amámos (amamos) os mesmos autores (...) amámos (amamos) o mesmo modo de fazer (e de inventar) a história do cinema; mais ou menos pela mesma altura começámos a ir ao cinema, com o mesmo temor e tremor; fixámo–nos nas mesmas memórias e na mesma necrofilia, entendendo o cinema como reino delas; amámos (amamos) os mesmos actores e não separámos o star–system da politique des auteurs; divertimo–nos, em miúdos e em crescidos, com dicionários, listas, filmografias, com gosto pelo pormenor.»


As capas do IV volume de O Musical: as pautas por Miguel Esteves Cardoso.

Se em «As Letras» se celebra assim, não apenas os nomes, nem somente o género, mas mais globalmente (e essencialmente) a capacidade de os visitar e revisitar continuamente, em «As Pautas», título do IV e último volume, trata–se principalmente de fixar o que nestes filmes é, paradoxalmente, menos «fixável»: as músicas. Como o escreve MEC, na introdução do volume, participa–se um crime; o de ter esquecido e o de continuar a esquecer —mesmo na vulgata cinéfila — a factura decisiva das colunas musicais e dos homens que as fizeram. Se algum princípio realmente fundamental anima esta derradeira abordagem d'0 Musical é, certamente, esta vontade de reabilitar na memória o que nunca o chegou a ser exactamente; restituir ao assobio de «Smoke Gets in Your Eyes» ou ao trauteio de «All I Do Is Dream of You» a presença de um autore, em todos os sentidos, de uma identidade. E mau-grado o modo de emprego relativamente complexo do volume (nomeadamente no que respeita ao apuramento de uma genealogia das «grandes partituras cinematográficas»), que empalidece fortemente a componente ensaística inicial — patente não apenas na introdução mas igualmente nas biografias dos principais compositores: Arlen, Berlin, Gershwin, Kern, Cole Porter e Richard Rodgers —, «As Pautas» é, não obstante, susceptível de orientar uma revisão ocasional e ocidental do musical e, sobretudo, de apelar eficazmente para a dimensão amplamente auditiva, não só do género mas de todo o cinema (e que O Musical, na suas exactas medidas, tão bem espelha).
Do balanço final deste projecto, fica sobretudo a ideia que se está perante um momento (e um monumento) incontornável na edição portuguesa sobre o cinema. O projecto modelar, sério, isento de folclorismos pictóricos, que quase sempre fazem passar, sob o brilho ofuscante da imagem, a manifesta nulidade do texto (muito embora se lamente a total ausência de cor nas reproduções... quando este ciclo é um ciclo da cor), O Musical— o catálogo constitui, para já, um elemento de memória fundamental. E se não for o presente, será o futuro, de certo, a comprovar a urgência e a necessidade de tão esgotantes empreendimentos.

JOÃO MÁRIO GRILO 
em O Jornal 23-06-1989




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