terça-feira, 31 de julho de 2012

The End Of Hollywood '70

A Paramount Pictures em 1970
Fotos de Henry Groskinsky


Em 1970, a Paramount Pictures decidiu vender 
os seus "tesouros" e a LIFE fez uma reportagem.


Adolph Zukor, presidente do Conselho de Administração da Paramount Pictures aos 97 anos, ainda ia todos os dias para o seu escritório no seu carrinho de golf. Viria a falecer seis anos mais tarde. Na altura a Paramount já quase só servia para estúdios de televisão, tal como hoje.


"O cinema sonoro nunca dará certo. É barulhento demais e impede que as pessoas durmam durante o filme." 
(Frase atribuída a Adolph Zukor)

A reportagem da LIFE (excerto). Clique para ler.

«Um Estúdio de cinema é responsável pela produção e até distribuição dos filmes realizados sob sua tutela. Criados quando o cinema ainda gatinhava, os estúdios guardavam os acessórios e cenários dos filmes em grandes armazéns. Com o tempo, cada estúdio ganhou uma espécie de identidade própria, e um filme produzido em suas dependências tinha um “estilo” diferente dos outros estúdios, uma assinatura estética e temática. Já no final dos anos 1910, temos a popularização das estrelas, que davam à sua “casa” o  glamour necessário. Ainda havia a questão dos géneros, porque cada estúdio parecia fazer ou ter maior tendência na produção de determinados filmes. Hoje, é claro, essas marcas são mais subtis, uma vez que passaram a fazer um pouco de tudo.» 
(texto encontrado em planocritico.ne10.uol.com.br)


A célebre entrada da Paramount, que ainda existe para turista 
ver e grande plano de Adolph Zukor, aqui com 97 anos.




O Studio System

«Conjunto de práticas realizadas pelos grandes estúdios de Hollywood entre os anos 20 e 50, numa altura em que mantinham o controlo sobre todos os aspectos da produção e distribuição cinematográfica. Financiados por banqueiros de Nova Iorque, os filmes eram produzidos com uma eficiência semelhante às das fábricas, com o trabalho a ser dividido por departamentos (efeitos especiais, montagem, guarda-roupa, etc.), enquanto que realizadores, actores e argumentistas trabalhavam como “meros” empregados sob contracto e com criatividade artística limitada. Embora houvesse realizadores que usufruíam de alguma independência, grande parte deles trabalhavam sob as regras dos estúdios, cada um com o seu estilo característico. Muito embora a concorrência de pequenas produtoras e de produtores independentes, os grandes estúdios eram responsáveis por cerca de dois terços dos filmes distribuídos no final da década de 30, quer com filmes de grande orçamento, quer com filmes B. Determinados tipos de filme, como os de cowboys, melodramas e de mistérios, eram desenvolvidos de modo a manter os custos de produção baixos. O inicio do fim do studio system dá-se em 1948, quando o tribunal ordena os estúdios a desfazerem-se das salas de cinema que detinham, acabando, assim, o monopólio vertical que os estúdios mantinham sobre todas as fases da produção e distribuição cinematográfica. O declínio foi agravado com o surgimento da televisão nos anos seguintes. Muito embora a tentativa em combater a popularidade da televisão com produções mais caras, os estúdios viram-se confrontados com a impossibilidade de manter uma estrutura permanente de empregados e foram forçados a reorganizar-se. Embora tenham sobrevivido, os estúdios têm, desde então, mudado constantemente de mãos, e hoje não passam de empresas que aprovam e financiam filmes de produtoras independentes que depois distribuem.» 
(texto encontrado em chambel.net)









Adolph Zukor, Chairman of the Board at Paramount Pictures. Hollywood, 1970.
«O maior responsável pela integração do método do Studio System nos EUA foi Adolph Zuckor, o Mr. Paramount. O principal objectivo da adopção do sistema era para produzir os feature films em maior escala e em maior velocidade, afinal o lema “tempo é dinheiro” servia de motivação para incontáveis empresas.»
(texto encontrado em planocritico.ne10.uol.com.br)

Vista geral da Paramount Pictures em 1948. Foto de Peter Stackpole.
A Paramount Pictures, completa 100 anos de existência em 2012. E para comemorar a data, o estúdio fundado por Adolph Zukor em 1912 divulgou um poster comemorativo que inclui ícones inspirados em alguns de seus filmes mais famosos. O poster foi criado pelo estúdio de arte Gallery 1988, de Los Angeles. 
Foto e texto encontrado em pipocamoderna.com.br


(Fotos de Henry Groskinsky e LIFE Archive)






segunda-feira, 30 de julho de 2012

Santos Manuel - Eu não queria ser Actor


Santos Manuel e Mário Viegas em 1993, na peça "Enquanto se está à espera de Godot" de Samuel Beckett, com encenação de Mário Viegas na Companhia Teatral do Chiado.
Foto encontrada em lauroantonioapresenta.blogspot.pt



Estava ontem a terminar um post e já a pensar noutro, e lembrei-me do Santos Manuel e de um episódio que revela bem o distraído que era fora dos palcos, e fiquei pensando se escreveria aqui o que se passou. E, hoje compro o jornal e dou com a noticia da sua morte. Embora não privasse com o Santos Manuel, achava que era uma pessoa tímida e discreta (como eu aprecio), e de quem eu gostava muito e sinto bastante a sua morte, mas fica a memória dos tempos que trabalhámos juntos. Deixo mais abaixo um texto do Santos Manuel, coisa rara.
A historia com o Santos Manuel, foi a seguinte: eu namorava já há uns meses com uma actriz, quando o Santos Manuel virou-se para o Mário Viegas e diz-lhe; «Tenho a impressão que qualquer dia vamos ter um caso do Chico com a “Maria”. E responde o Mário; «Ó Santos, então tu não sabes que eles já vivem juntos.», e ele; «Não tinha dado por nada».



DEPOIMENTO DO ACTOR SANTOS MANUEL, ESCRITO PARA O ESPECTÁCULO, “O ENSAIO DE UM SONHO”, BASEADO EM TEXTOS DE INGMAR BERGMAN E AUGUST STRINDBERG EM MARÇO DE 1994.


Em 1961 entrei para a Casa da Comédia. Lá encontrei o Dr. Fernando Amado, o meu querido, primeiro e saudoso Mestre. Lá encontrei Manuela de Freitas, Maria do Céu Guerra, Fernanda Lapa, Zita Duarte, Glória de Matos, Norberto Barroca e tantos outros. Lá estava o Palco, a Luz, os Actores, a Música, o Silêncio, a Magia, o Cenário, os Adereços, o "Sonho", e o meu "Sonho" de ser Cenógrafo. Eu não queria ser Actor.

"Deseja-se Mulher" de Almada Negreiros, tinha marcado um encontro com o meu destino e assim me estreei como Actor. Estive ligado à Casa da Comédia até 1965. No mesmo ano fui para o Teatro Experimental de Cascais, como Actor. No T.E.C. fui ficando, fui trabalhando, fui criticado, fui louvado, fui premiado, “e eu não queria ser Actor”.

Fui curioso demais e aceitei a experiência como uma forma de realização pessoal, até chegar às margens da angústia. Continuo insatisfeito. Nunca me consegui libertar do receio de o meu trabalho ser julgado pelos Outros.

Sei que sou frágil e não suporto agressões. Vou flutuando na corrente da vida como um aventureiro receoso, mas determinado.

Às vezes sou derrotado, outras vezes ferido, mas vou aprendendo. As minhas experiências ainda não foram fatais.

Vou prosseguindo com os meus humildes esforços de criação, eles defendem-se em grande medida daquilo que eu ainda não sei e daquilo que eu ainda não fiz.

Aprendi a respirar o pó dos Palcos com Fernando Amado, Carlos Avilez, Artur Ramos, Hélder Costa. Neste momento como Encenador e amigo tenho Mário Viegas. Já vencemos uma batalha. “Enquanto Se Está à Espera de Godot”. Com certeza que ainda vamos vencer outras.

Trabalhar com Manuela de Freitas em “O Ensaio de um Sonho”, é um grande prazer. Será que ela é um Mal Necessário para o meu aperfeiçoamento e auto-correcção? O tempo o dirá. Se eu puder penetrar no seu Universo Interior já me poderei sentir recompensado. Ela é a Actriz.
Talvez um dia eu queira e deseje ser Actor.

As minhas experiências não estão cristalizadas.

A Vida, o que tem de melhor, é o “Sonho” que se altera constantemente.

Esta é a verdadeira Liberdade.


Texto transcrito do programa da peça "O Ensaio de um Sonho", 1994.


Manuela de Freitas e Santos Manuel em "O Ensaio de um Sonho", encenação de Mário Viegas. 
Foto copiada do programa da peça "O Ensaio de um Sonho".

Mario Viegas e Santos Manuel em "A Grande Magia", 1994. 
Foto copiada de jornal.
Mario Viegas e Santos Manuel em "A Grande Magia", 1994.


domingo, 29 de julho de 2012

Aquele Inverno em Lisboa


Texto de
João Mário Grilo



Coisas boas em jornais



João Mário Grilo
A acreditar em Scorcese, que dizia ser o ecrã a melhor escola de cinema do mundo, ainda se estará para ver quantos cineastas se não terão feito entre Dezembro de 1985 e Março de 1986, nas salas da Cinemateca Portuguesa e da Fundação Calouste Gulbenkian, quando da realização do ciclo de cinema d'0 Musical (e o artigo é aqui importante, como já o havia sublinhado João Bénard da Costa, no início do 1° volume do respectivo catálogo).
Na era do vídeo (e dos pós do vídeo) e das suas múltiplas, variáveis e muito discutíveis (in)definições, já pouco espaço (económico) haverá para privilégios; por isso, dignos da mais verde das invejas estão aqueles que olharam, nessa altura, as cópias irrepreensíveis de Brigadoon, de Meet Me in St. Louis ou de The Pirate, todos de Vicente Minnelli, ou ainda, num mágico fim–de–semana prolongado, viram os Berkeleys deste ciclo, a começar no Footlight Parade, de 1933, e a acabar na vertigem diabólica e hipercolorida de The Gang's All Here, de 1942, com Carmen Miranda e tudo o resto.
Hoje, e passados que são quase quatro anos sobre a realização do ciclo, a ocasião é ainda de festa. Acabados de sair, estão já disponíveis os dois últimos volumes do seu monumental catálogo: o III volume, da responsabilidade de João Bénard da Costa e o IV, da responsabilidade de Miguel Esteves Cardoso.


As capas do III volume de O Musical: as letras por João Bénard da Costa.

O primeiro deles, que tem por justo título «As letras», é basicamente um dicionário crítico e sistemático de todos os realizadores, e dos principais actores e actrizes dos 180 filmes que compuseram o corpo fílmico do ciclo, bem assim como dos nomes mais significativos da art direction, da coreografia, da fotografia, do argumento e da produção. São no total, para cima de 1200 entradas, de Adbott (George), «o mais velho dos vivos», a Zwerin (Charlotte), obscura colaboradora dos Irmãos Maysles, como realizadora e montadora. Pelo meio ficam nomes porventura mais sonantes: de Berkeley (Busby) a Minnelli (Vicente), em dois longos textos de excelente recorte crítico, de Charisse (Cyd) a Astaire (Fred), passando — e porque não —por Rodrigues (Amália) e Costa (Beatriz). E se a carcaça do dicionário atemoriza—são 650 páginas—, o miolo é sempre escorreito, saboroso, invariavelmente correcto e até, pontualmente, irónico.
O interesse deste volume—decerto o mais importante dos quatro — não se resume assim (o que seria já muito louvável e mais do que suficiente) a um mero «arrumar» dessa casa caótica que é a heterogénea população que atravessou o género; o seu verdadeiro peso assenta antes no seu carácter deliberadamente pessoal e unitário, que pouco tem que ver com a folia e a monotonia arquivistas que norteiam o grosso deste tipo de produções. E significativo é, a este respeito, o que JBC escreve na entrada (de método) sobre Bogdanovich: «Muito me aproxima de Peter Bogdanovich, mais novo quatro anos do que eu. Amámos (amamos) os mesmos autores (...) amámos (amamos) o mesmo modo de fazer (e de inventar) a história do cinema; mais ou menos pela mesma altura começámos a ir ao cinema, com o mesmo temor e tremor; fixámo–nos nas mesmas memórias e na mesma necrofilia, entendendo o cinema como reino delas; amámos (amamos) os mesmos actores e não separámos o star–system da politique des auteurs; divertimo–nos, em miúdos e em crescidos, com dicionários, listas, filmografias, com gosto pelo pormenor.»


As capas do IV volume de O Musical: as pautas por Miguel Esteves Cardoso.

Se em «As Letras» se celebra assim, não apenas os nomes, nem somente o género, mas mais globalmente (e essencialmente) a capacidade de os visitar e revisitar continuamente, em «As Pautas», título do IV e último volume, trata–se principalmente de fixar o que nestes filmes é, paradoxalmente, menos «fixável»: as músicas. Como o escreve MEC, na introdução do volume, participa–se um crime; o de ter esquecido e o de continuar a esquecer —mesmo na vulgata cinéfila — a factura decisiva das colunas musicais e dos homens que as fizeram. Se algum princípio realmente fundamental anima esta derradeira abordagem d'0 Musical é, certamente, esta vontade de reabilitar na memória o que nunca o chegou a ser exactamente; restituir ao assobio de «Smoke Gets in Your Eyes» ou ao trauteio de «All I Do Is Dream of You» a presença de um autore, em todos os sentidos, de uma identidade. E mau-grado o modo de emprego relativamente complexo do volume (nomeadamente no que respeita ao apuramento de uma genealogia das «grandes partituras cinematográficas»), que empalidece fortemente a componente ensaística inicial — patente não apenas na introdução mas igualmente nas biografias dos principais compositores: Arlen, Berlin, Gershwin, Kern, Cole Porter e Richard Rodgers —, «As Pautas» é, não obstante, susceptível de orientar uma revisão ocasional e ocidental do musical e, sobretudo, de apelar eficazmente para a dimensão amplamente auditiva, não só do género mas de todo o cinema (e que O Musical, na suas exactas medidas, tão bem espelha).
Do balanço final deste projecto, fica sobretudo a ideia que se está perante um momento (e um monumento) incontornável na edição portuguesa sobre o cinema. O projecto modelar, sério, isento de folclorismos pictóricos, que quase sempre fazem passar, sob o brilho ofuscante da imagem, a manifesta nulidade do texto (muito embora se lamente a total ausência de cor nas reproduções... quando este ciclo é um ciclo da cor), O Musical— o catálogo constitui, para já, um elemento de memória fundamental. E se não for o presente, será o futuro, de certo, a comprovar a urgência e a necessidade de tão esgotantes empreendimentos.

JOÃO MÁRIO GRILO 
em O Jornal 23-06-1989




sábado, 28 de julho de 2012

Os paraísos perdidos de Artur Sem-Medo


Texto de
Maria José Mauperrin


Fase de Artur Semedo como galã dos anos 50.
Foto encontrada em serbenfiquista.com


Coisas boas em jornais


Os fantasmas da infância e a paixão de representar de Artur Semedo

“Sou  o último dos marialvas”, afirmava o Barão de Altamira 
aos seus correligionários do Movimento Independentista de Olivença.


«Pode dizer-me as horas?», pergunta, na tarde solarenta, a jovem ao transeunte burguês  de jeans e blusão de cabedal.
«Não uso», responde ele, apontando para o pulso esquerdo com a mão direita, a única enluvada de negro.
«Porquê?» —, pergunto-lhe depois. «Por medo à morte?»
A questão parece surpreendê-lo. A Primavera chegou, o sol já dá um novo brilho às ruas, às pessoas. O Tejo corre lá ao fundo, mais rápido do que o trânsito denso que nos envolve. Volta-se, olha-me, e diz: «Quanto à morte, quando ela vier cá estou. Não a temo. Já estive, muitas vezes, com um pé nela. Quanto ao relógio, não uso porque não gosto.»
Ocorre-me que provavelmente os nomes influenciam os comportamentos. Como o de Semedo que, segundo Artur, é uma aglutinação de Sem-Medo, apelido original da sua família. Quanto ao nome de baptismo, não faz qualquer referência histórica. Não deixa contudo de salientar que, além de não gostar de usar relógio, não gosta, não admite, igualmente, «a traição e a delação», coisas, como diz, «que só se podem resolver com um lavar de honra».


Cartaz do filme Chaimite,de Jorge Brum do Canto, 1953; 
«talvez o maior papel no cinema de Artur Semedo».

«Dêem água ao menino!»

Como conceitos e preconceitos não se transmitem geneticamente, mesmo quando se descende dos Sem-Medo ou até do último dos marialvas, o Barão de Altamira, há que inquirir aonde se foram buscar.
«A minha educação castrense e à família militar», esclarece Artur Semedo.
Quando refere «família militar» estará a pensar mais no Colégio Militar do que na influência do seu pai, militar de carreira. No entanto, parece que a sua passagem pelos «meninos da Luz» não foi muito pacífica.
«Claro que não, embora tenha grandes e boas recordações desse tempo. Fui expulso. Houve um professor, o major Pato, que me acusou de estar a copiar no exame.»
E estava?
«Com certeza. A matéria não me interessava, porque havia de perder tempo a estudá-la? O professor mandou-me levantar e pôr em sentido. Eu respondi-lhe que isso só me iria fazer perder tempo e atrasar a prova. Isto foi considerado um desrespeito ao professor e as consequências foram a minha expulsão.»
Um desaire que esteve longe de frustrá-lo.
«O que eu gostava era de representar. Desde criança. Representava para a família, mas tinham de me pagar. E a assistência era numerosa. As criadas também assistiam. O que eu fazia era uma imitação do que via nos filmes. Uma das cenas que muito os impressionava era quando, em pleno Verão, vestido com um sobretudo de fazenda azul muito espessa (chamava-se fazenda Moscovo), com um cachecol enrolado ao pescoço, me arrastava pelo corredor da casa e entrava na sala a pingar suor, de boca aberta e olhos esbugalhados: Então a minha mãe gritava para a cozinheira, a Baziliza e para a Henriqueta, que era a criada de fora: «Dêem água ao menino, dêem-lhe água!».


Anuncio de uma peça de teatro no cinema Odéon às 18,30h, com Artur Semedo e a grande actriz Maria Lalande e anuncio da estreia de O Dinheiro dos Pobres (1956), o primeiro filme realizado por Artur Semedo.


Um militarão bonito

No entanto, apesar do «jeitinho do pequeno» para a arte de Talma, a escolha de carreira passou mais pela determinação do pai Semedo - «um militarão bonito» - do que pelas manifestas tendências criativas e artísticas do filho. E, assim, a ida para o Colégio Militar.
Embora os desígnios paternos não correspondessem aos desejos do jovem candidato a actor, hoje, à distância de quase seis décadas, Artur Semedo recorda sem amargura:
«Eu adorava o meu pai. Era um homem muito inteligente, e bonito. Arrasava corações. Provocou imensas paixões e uma delas teve um desfecho bem trágico. Uma irmã da minha mãe, divorciada, incapaz de resistir à grande paixão que sentia pelo meu pai, acabou por se suicidar. O encanto dele era o de saber ser terno e simultaneamente dominador.»
Faz uma pausa, como quem procura uma definição mais rigorosa, e diz, a rir: «Havia nele qualquer coisa de farinha 'Lacto-Búlgara' (era a que se dava aos bebés, nesses tempo) e de cheiro a cavalariça.»
A mãe aceitava essas paixões...
«... Mal, como seria de esperar. Por vezes, tinham discussões terríveis. Eu ficava então muito triste, sobretudo porque gostava muito dele», volta a repetir. «Eu usei-o muito, aliás como uso tudo aquilo de que gosto: Era de facto um militarão, mas também um homem de grande “charme”.»


Excerto de Malteses, Burgueses e às vezes, de Artur Semedo, filmado em 1973 e estreado em 11 Abril 1974, 20 anos depois do primeiro filme. Carregado no youtube por paulomfcunha em 28-10-09.


Acumulação de memórias

A tarde ia pelo meio. Acabara de ver o último filme de Artur Semedo. Sentado junto à janela que já foi montra de mercearia, resguardada por uma cortina de «filet», suspensa de um varão de latão doirado, o realizador de O Barão de Altamira, entre plantas e um enorme espelho do século passado, de moldura pintada a oiro, copo cheio de sumo puro de laranja – «não bebo álcool, estou a antibióticos» - ilude perguntas, salta de história para história e fala, fala, sobretudo da sua vida - que ele avalia como «cheia».
Ainda que o requintado ambiente do bar fizesse lembrar alguns dos «climas» de filmes de Visconti, o cinema foi o grande ausente na conversa corn o realizador.
Ou talvez não. Porque não será antes esta forma narrativa de «flash-back» permanente, este saltitar de história para história, de assunto para assunto, numa quase total incapacidade de se fixar apenas numa ideia, e de trabalhá-la, uma das características dos filmes de Artur Semedo?
«Talvez que essa acumulação de memórias, essa sobrecarga de referências que você diz ter sentido, no meu filme, tenha a ver com as poucas oportunidades que há, entre nós, de fazer cinema. Eu tenho, em cada filme, uma enorme necessidade de esgotar o que tenho cá dentro», diz.
Quando fala em «esgotar o que tenho cá dentro», e ainda que no decorrer da conversa apenas se tenha referido ao seu pai, lembro-me da «Mãezinha» de O Barão de Altamira. E pergunto-lhe: esta «Mãezinha» é um exorcismo de algum dos seus fantasmas de infância?
«Não, embora esta 'Mãezinha' tenha a ver com a minha infância, nada tem a ver com a minha mãe. A ideia ocorreu--me ao lembrar-me de uma frase que o meu avô, José Francisco, costumava dizer à minha avó, para lhe acalmar os receios da morte: `Deixa , não te preocupes. Quando morreres, mando-te embalsamar e ficas aqui em casa'. A ideia ficou-me, e por isso a 'Mãezinha' do Barão é um manequim que recebe um tratamento igual ao das pessoas. Faz parte da família.»
Semedo não esgotara tudo o que tinha para dizer; a voz tem outro registo, mais lento e arrastado, quando volta a falar: «Isto tudo são coisas que estão dentro de mim e que algumas pessoas não entendem. Por isso há quem diga que o meu filme tem cenas que são autênticos 'videoclips'. Talvez tenham razão, mas eu não vejo assim. Tudo isto faz parte da minha pessoa.»
Como cineasta sente-se próximo de algum outro em particular?
«Eu não me sinto um cineasta como os outros. Posso até estar a fazer um cinema diferente, até um anticinema, não sei. A partida não tenho essa preocupação.  Também não me coloco na faixa dos nossos cineastas, ainda que respeite grande parte deles.»



O Rei das Berlengas de Artur Semedo (1978). Com Mário Viegas 
a fazer vários papeis. Carregado por hardb0p em 31-12-09.

Mário Viegas e Artur Semedo em foto sem data nem local. Mas, de certeza na época de O Rei das Berlengas (77/78), ao fundo vê-se umas arcadas que parecem o santuário de fátima, o que pode explicar o "ar de enterro", com que os dois estão. Foto encontrada em cavalinhoselvagem.blogspot

Pretérito e masculino

Corno diz Jorge Luís Borges, «não há paraísos que não sejam paraísos perdidos». É um pouco esta a ideia com que ficamos depois de ouvir Artur Semedo. Um Artur Semedo que abusa dos verbos no pretérito.
«Não tinha dado por isso», diz.
Também é evidente no seu discurso a importância que o elemento masculino tem na sua vida. Da infância refere o pai e o avô. Da juventude fala das «aventuras» que viveu com outros homens. Mesmo no seu filme, o Barão é casado com uma mulher meio tonta, a «Mãezinha» é de pasta de papel, a enfermeira é impudente e a «outra» é bonita mas estúpida. Nem sequer escapa a irmã do «alcaide» de Olivença. Será que O Barão de Altamira não é o último dos marialvas e que a inteligência, a amizade e a dignidade só são possíveis no masculino?
«De facto, eu tive um universo masculino. No meu tempo as mulheres não se misturavam com os homens. Digo, não fui habituado a ver na mulher uma amiga, uma companheira para os copos.»
As mulheres são apenas objectas de desejo?
«De paixão: Tive grandes paixões e fui correspondido. Mas isso acabou há vinte é cinco anos, quando conheci a Pilar, com quem continuo e continuarei casado. Sosseguei desde que a encontrei.»
Se tivesse de escolher entre mulheres, automóveis e cavalos, que escolheria?
«Tudo. Das mulheres já falámos. De cavalos digo-lhe que sempre gostei muito e que fui um óptimo cavaleiro. Melhor do que o meu irmão, que entrava em concursos. Quanto aos automóveis, foi uma paixão que começou na minha infância. Outra influência do meu avô. Ele era um homem todo para a frente. Começou por ter uma moto e depois foram os carros. E eu, miúdo pequeno, sentava-me ao volante e, com o carro parado, fingia que guiava. E também à mesa com os pratos. Brrrumm, brrumm, e lá ia pela mesa fora até derrapar. E a minha mãe a gritar: `Está quieto, Artur, está quieto'.»

O Barão de Altamira (1986) de Artur Semedo; Rosa Lobato Faria, Artur Semedo, Isabel Mota e actor desconhecido. Foto copiada do jornal Se7e.

Uma história de automóveis

A paixão pelos carros e pela velocidade levou-o a comprar um «carrão», a meias, com o Manuel da Fonseca. E a história vem a seguir:
«Um dia resolvemos vir a Lisboa, para a farra. Quando chegámos a Setúbal, o  carro começou a falhar. Tivemos de  ir procurar uma garagem e lá fomos dar com uma, onde estava um homem (bem, não sei se lhe hei-de chamar senhor), que reparou avaria. Quando lhe perguntei quanto custava, ele disse que não era nada. Então o Manuel da Fonseca chamou-me á parte e disse: “Temos de lhe dar uma gratificação. Quanto há-de ser?” Dez escudos, digo eu. Agradeci ao homem e estendi-lhe os dez escudos. Com um ar atrapalhado, ele recusou, mas agradecendo. E nós a insistirmos. E ele a recusar. Até que se voltou para nós: Desculpem, não posso aceitar. Guardem o vosso dinheiro, que a mim não me faz falta. Sou um dos homens mais ricos de Setúbal. Três anos depois, estava a bater-lhe à porta para lhe pedir dinheiro emprestado – para fazer uma 'tournée' a África. E ele emprestou. E eu paguei-lhe.»
Artur Semedo gosta de dizer que é homem de boas contas. Porém, ao contrário do que chegou a constar, não usa uma luva preta para pagar uma promessa. Ele explica: «Eu estava a filmar Sofia e a Educação Sexual, do Geada. Na cena, eu segurava um balão de conhaque, daqueles grandes. Talvez pelo nervosismo que há sempre que se começa a filmar, apertei o copo com demasiada força e os vidros cortaram-m os tendões da mão direita. Fui sozinho para o hospital, fui operado e fiquei com menos de 50 por cento de mobilidade na mão, além de uma híper sensibilidade. Foi por isso que comecei a usar luva. Hoje faz parte da minha imagem. Uso-a sempre preta para não desgostar os meus fãs.
Também o Barão de Altamira não dispensa a sua luva negra. Talvez que também ele a use para não desgostar os seus correligionários. Talvez que também ele tenha tido um avô «todo para a frente», um pai «militarão, mas cheio de charme». Só o que ele não consegue ter é a quase irresistível comunicabilidade de Artur Semedo.

Maria José Mauperrin
Jornal Expresso 
12 Abril 1986


O Barão de Altamira: Artur Semedo com Zita Duarte e  com Silvia Rato e Manuel Dias. 
Fotos copiadas de jornais.


Noticias  de O Barão de Altamira: Ante-estreia na Cinemateca; 
participação dos Trovante e critica de José Vaz Pereira.


 O Querido Lilás (1987) e Um Crime de Luxo (1991), os dois últimos 
filmes de Artur Semedo, ficam para outra oportunidade.
Fotos da net.


''O Benfica nunca perde ás vezes é que não ganha''
Artur Semedo




sexta-feira, 27 de julho de 2012

Estrelas de Cinema 4


"Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam"

(Clarisse Lispector em A Hora da Estrela)


Danny Kaye e Tamara Toumanova. 1945, Peter Stackpole.

Buster Keaton e Donald O'Connor, ensaiando para um 
filme baseado na vida de Keaton. 1956, Allan Grant.

Clara Bow, "The Girl of the Roaring Twenties", numa 
cena do filme "Hula" de Victor Fleming. 1927.

Anthony Quinn a jogar xadrez, durante as filmagens de The 
Magus (1968) de Guy Green. Maiorca?, 1967, Pierre Boulat.

Pier Angeli, 22 anos, pendurada numa árvore de eucalipto no meio do mato. EUA, 1954, Allan Grant. / A futura actriz Candice Bergen sentada no chão, olhando para a câmara durante uma festa de crianças em Hollywood. EUA, 1952, JR Eyerman.

Charlie Chaplin por Alfred Eisenstaedt. 1931.

Alec Guinness sentado, com Noel Coward ao fundo, no Sloppy Joe' Bar (famoso bar de Havana), durante as filmagens de "O Nosso Homem em Havana" de Carol Reed em plena revolução cubana. Havana, Cuba, abril 1959, Peter Stackpole.

Senta Berger nas filmagens de "Major Dundee" de Sam Peckinpah. Cuernavaca, Mexico, 1964, Bill Ray. / Burnu Acquanetta em uma cena de "Arabian Nights" (As Mil e Uma Noites, 1942) de John Rawlins, um filme em que não foi creditada. EUA, 1942, John Florea.

Ottola Nesmith numa cena de um filme para TV, 
"Edge of Terror". Hollywood,EUA, 1958, Allan Grant.

Carroll O'Connor ou Archie Bunker, estrela do programa de TV "All in the Family" (Tudo em Família). USA, 1971, Michael Rougier. / Elizabeth Taylor, 13 anos. EUA, 1945, Peter Stackpole.

Gene Kelly e Fred Astaire. Foto sem data nem local de J R Eyerman.



"Nunca disse que os actores são gado. O que eu disse é
que todos os actores deveriam ser tratados como gado."
Alfred Hitchcock



(Fotos LIFE Archive)