João Bénard da Costa.
Foto encontrada na net
Admirei tudo no João Bénard. Admirei-o intelectualmente. Admirei-o socialmente. Admirei-lhe a paixão. Admirei-lhe a escrita. Admirei-lhe o Tempo e o Modo. Admirei-lhe a Gulbenkian.
Por sugestão do meu professor de Filosofia Antiga, José Gabriel Trindade dos Santos, um dia, em 1980, convidou-me para trabalhar com ele, na futura Cinemateca, tinha eu 26 anos. Nesse dia, deixei a universidade e uma pós-graduação. Nesse dia, nasci outra vez.
Faço declaração de interesses: eu gosto, agora, aqui, do João Bénard. Tal como o voluntarioso Martin ama Ethan Edwards, na “Desaparecida” do Ford, eu amo o João Bénard. Nada do que eu agora diga tem, por isso, outro valor que não seja expressar esse amor. Escusam de me pedir racionalidade, pedagogia ou debate de ideias. Vou ser hagiográfico. Nem quereria ser outra coisa.
Convidaram-me para vos falar do programador João Bénard da Costa.
Foram sempre pessoas o interesse do programador João Bénard. Fez de preferência ciclos sobre pessoas: actrizes e actores, sobretudo realizadores, eventualmente um produtor.
Mesmo quando o João Bénard se autorizava um ciclo sobre um género – e estou a lembrar-me do ciclópico, homérico Ciclo do Cinema Musical – ou um ciclo sobre um estúdio, ou sobre uma década, como os que gloriosamente dedicou ao cinema americano dos anos 30, 40 e 50 – o objectivo último era a exaltação do humano. Alguém de carne e osso, alguém de luz e sombras!
Estava sempre alguém no começo e no fim de um ciclo de João Bénard.
Mencionei o Musical na Cinemateca e na Gulbenkian. Creio que fez esse ciclo para contemplar 20 vezes a elegância e as altíssimas pernas de Cyd Charisse. Via, voltava a ver, via outra vez, e de cada vez que as via eram mais belas, outras pernas que eram sempre as mesmas, ou não fosse a repetição o secreto êmbolo do prazer. Ainda no Musical, fez desse ciclo um ringue, o mais acolhedor ringue de boxe, para que nele pudéssemos escolher entre o padrão atlético de Gene Kelly ou o estilo macio e silencioso de Fred Astaire.
O João fez o Musical para que acontecesse perante os nossos olhos a transformação caleidoscópica de Busby Berkeley num demiurgo ou para que Esther Williams, tão saudavelmente americana, emergisse das águas para raiva e desconsolo da clássica Vénus e do seu Boticelli.
Comecei por falar de pessoas, é altura de falar do amor.
Os ciclos de João Bénard foram sempre declarações de amor. Amor à primeira vista!
E o que é o cinema senão olhares cruzados, olhos que se abrem desmesurados, olhos que, tanta é às vezes a luz, têm de se fechar. Só essa tanta luz explica porque é que nos filmes de Griffith os olhos de Lilian Gish pestanejam repetida, estremecida, ternamente. Eram assim os olhos do João, olhos de Lilian Gish.
O programador João Bénard caiu, de amor à primeira vista, por Murnau, por Howard Hawks, por Robert Bresson ou Lubitsch, pelo mais amado de todos, Nick Ray.
Quando se ama, quer-se tudo e quer-se tudo só para nós. Os ciclos sobre os realizadores seus autores, os ciclos sobre as actrizes e actores, eram a escandalosa exibição pública desse amor penetrante e obsessivo. Há uma boa palavra inglesa para isto: lust. Luxúria, eventual equivalente português, não lhe faz, apesar do doce sabor pecaminoso, justiça devida.
Era quase uma psicose: o programador João Bénard queria fazer ciclos completíssimos que levassem à descoberta de incunábulos, se os houvesse. Queria descobrir um filme em que talvez o realizador tivesse assinado pelo menos um plano, descobrir-lhe obras perdidas, obras que não eram, mas talvez pudessem ter sido da sua autoria. Como programador, com esses sinais, ele revelava sintomas de “amour fou”, a sua forma francesa de amar o cinema.
Quando se ama assim, mesmo que o amado, ou a amada, esteja já exangue no leito de morte, o seu último gesto é ainda o mais amoroso dos gestos, espécie de botão de rosa molhado e fresco, porque nunca o João Bénard deixaria que a morte vencesse o amor.
É isso que leva o João a defender que esse derradeiro We Can’t Go Home Again recapitula tudo e dá globalidade à obra de Nicholas Ray. E é por isso que o último Oliveira será sempre, onde quer que o João o veja, o mais belo dos Oliveiras.
O amor do João por um autor não admitia o envelhecimento: o último filme de um cineasta era, para ele, outra vez a mais primeira e “prima” das suas obras-primas, sendo que na linguagem do João, obras-primas já eram todos os filmes que esse realizador amado antes fizera.
Trabalhei com o João. Ao lado do João Lopes, do José Manuel Costa, do Zé Matos-Cruz. Nessa altura, quando fui o mais ocioso dos escravos com que o João montou a Cinemateca, vi outras programações de cinematecas, museus e arquivos – de Paris, de Los Angeles, Madrid, do BFI.
Recebia os catálogos de divulgação e olhava. Nenhum tinha a sensualidade das programações de João Bénard. Essas programações estrangeiras que me chegavam, vinham bem arrumadinhas. Poderiam, como agora se faz, ser executadas num irrepreensível Excel.
Eram as contas de uma boa mercearia. Faltava-lhes a sensualidade, a cor da erotização que João Bénard conferia às suas programações.
Nas programações do João Bénard estava o objecto do seu amor – realizadores ou actores, um género – mas estava também, presente, exposto, o próprio amador. O João escrevia-se, íntimo, nas apresentações desses ciclos. Nos textos dos catálogos e, depois, nas folhas que acompanhavam a projecção de cada filme, lia-se o amor do João e lia-se o João inteiro. Sobretudo lia-se a parte de dentro do João, os nervos dele, as artérias, o delírio do seu cérebro fervente.
Os folhetos que eu recebia de outras dignas instituições internacionais tinham sido feitas por dedicados “mangas de alpaca”. O João Bénard, a stêncil ou em rotogravura (como no catálogo Hitchcock), a preto e branco ou a cores, inundava as suas programações com torrentes de inenarráveis e líquidas efusões amorosas: ali estava publicamente o que, muitos, nem em privado conseguiriam dizer. Garanto-vos, não há posição que o João Bénard não tenha experimentado com os seus obscuros objectos de desejo. Não por vontade de proezas atléticas que lhe seriam indiferentes, mas por um desmedido amor físico e mental, por uma sede carnal e espiritual que lhe inspiravam esses objectos do seu amor – Sternberg ou Marlene, David O. Selznick ou Jennifer Jones!
E lamento, estes deuses podem ainda ser objecto de alguma devoção, mas ninguém os voltará a amar assim.
Ninguém, nestes tempos que são politicamente sanitários, de correctas boquinhas em bico e de cavalgada normativa, os voltará a amar como ele os amou em cada texto, em cada verbo lento, em cada inominável adjectivo, na vaidade de cada advérbio. Ninguém, substantivamente, os voltará a reinventar com tanta amorosa imaginação, recriando-lhes intenções, submetendo-os a uma luz que, algumas vezes nem eles próprios, desconhecendo-se tão amados, poderiam supor.
A par da erotização dos seus ciclos, dos seus actores e autores, para além de os cobrir de beijos, o João cobria-os com outro poder: o vigor da sua escrita.
Pensando bem, talvez o João não fosse um programador. Ou só o fosse para ser o escritor que de facto foi, que de facto é, que de facto continuará a ser.
Mas se não era um programador o que era esse homem que durante 40 anos deu vida, som e fúria às salas da Cinemateca e da Gulbenkian?
João Bénard era e é um escritor. Programador de filmes sim, mas não se tente arquivá-lo na académica gaveta dos historiadores de cinema e muito menos na gaveta dos críticos de cinema.
A estratégia de programação de João Bénard era servida por um dispositivo narrativo que, literariamente, a replicava e a complementava. Sem esconder o seu gosto pela totalidade e pela teatralidade, o João programava acompanhando a programação sempre com “a vida e a obra”. A de Buñuel ou a de Ford, a de Fritz Lang ou a de Hitchcock. E se o protagonista era um período ou um género, o João dicionarizava.
Eram temíveis os seus dicionários. Para horror das encantadoras e encantadores bibliotecários da Cinemateca, o João requisitava 287 livros para cada figura do dicionário que tinha entre mãos, requisitava duas enciclopédias e 35 dicionários de cinema, incluindo um em sueco, mandava vir toda a colecção dos Cahiers du Cinéma, pedindo em duplicado os de capa amarela, claro, e mais 235 números soltos dos velhos Screen, Film Quarterly, Variety, Sight & Sound, Film Comment.
Por descargo de consciência pedia sempre um número da Positif que, depois, regressava virgem e envergonhadíssimo à estante, sem viver as delícias de ter sido aberto e despudoradamente folheado.
Por vezes, com alegria, o João requisitava o Manuel Cintra Ferreira. Era a alegria das listas, a euforia das datas, a nostalgia do sim, sim, estreou no Condes, ó João, olhe que não, foi no Éden. Porque é no Éden que, afinal, os filmes do João e do Manel se estreiam.
Depois – e eu julgo que era ao mesmo tempo, porque o João fazia quase tudo ao mesmo tempo – espalhava mil fotografias em cima da mesa que, naturalmente, a seguir, derramavam pelo chão e, não me desmintam porque eu vi com estes olhos, por vezes flutuavam, inefáveis, no ar, dentro do gabinete. Abrindo-se a porta viam-se Gary Coopers ou Ingrid Bergmans no ar, o João de braços levantados ao céu e, a querer sair pelo tecto, o Bogart e a Bacall aos beijos ou a ver se sabiam assobiar. Também não é fácil explicar o que é que, debaixo da secretária, faziam os ruivíssimos cabelos e os longos decotes de Maureen O’Hara, cuja fotografia lá tinha ido parar.
No meio deste caos, no meio deste ciclone, em pleno olho do tufão como no “Feiticeiro de Oz”, era assim, indomável, que o João escrevia torrencial, apaixonado, cada texto um monte dos vendavais. E esta compulsiva dramatização do acto da escrita contaminava a própria escrita. Os milhares de textos que o João Bénard nos deixou estão furiosamente invadidos de aventuras, aventuras de comboios a entrar em túneis escuros, aventuras de vertigens em campanários, como as de Cary Grant ou Jimmy Stewart nos amados Hitchcock. São textos que estilhaçam todos os tabus de sexo e morte e nos oferecem tantos jardins de prazer como os filmes que lhes deram origem. São textos – para usar um termo que o faria soltar uma gargalhada – pregnantes de drama.
São textos em que João Bénard reescreve cada filme. Só com palavras volta a iluminar a cena, recompõe o enquadramento cortando um bocadinho mais à esquerda, e volta a chamar os actores redesenhando-lhes a boca, os olhares, a angústia de uma despedida ou de um reencontro, a inadjectivável solidão de Rosebud, trenó esquecido na neve, a pasmosa alegria de toda a glória da vida no milagre da ressurreição que Dreyer encenou em “Ordet”.
O que é que o João nos deixou escrito? Deixou-nos filmes escritos. Chamem-lhes se quiserem filmes-textos ou textos-filmes.
Esses textos são cinema porque contêm tudo o que é essencial da mise-en-scène do cinema narrativo – o ângulo da câmara, um travelling, os cambiantes da luz, o esplendor ou dura escassez de um décor.
Esses textos são literatura porque cumprem todas as unidades dramáticas do romanesco, enunciam conflitos, dão densidade e dimensão a personagens, desenvolvem com exaltação peripécias e incidentes que fazem avançar a acção e, por fim, happy-end ou final trágico, resolvem o conflito.
Foi assim que o João escreveu a maioria das suas folhas. Tantas vezes com o olhar cheio de infância, o João escreveu em harmonia e fé como se pudéssemos ainda encontrar um mundo perfeito, inocente e inaugural, igual ao que nos faz chorar no “How Green Was My Valley”, de John Ford.
Muitas e tantas outras vezes, o João escreveu com um pessimismo profundo, mergulhando numa metafísica da perda, como se, uma vez doente, à esplêndida rosa que o verme mordeu, nada lhe pudesse já restituir o fulgor, a graça, a plenitude. Nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower. Ou de como, tantas vezes, o escritor João Bénard foi irmão gémeo de Nathalie Wood, essa trémula e perdida criação a que Elia Kazan chamou Deanie Loomis.
Faltou ao João saber pintar. Se soubesse pintar, com cada filme que amava, com cada ciclo que programou, o João teria deixado uma “Galeria degli Uffizi” aos museus portugueses. Riquíssima, a Cinemateca seria mais forte do que o Banco de Portugal e um Portugal dourado mereceria genuflexão à senhora Angela Merkel. Mas os grossos e desajeitados dedos do João só obedeciam ao movimento cursivo de uma escrita miudinha, quase ilegível. Se o João tivesse sabido pintar, a pulsão de morte de Nicholas Ray seria mais escura do que as capelas negras do agónico Mark Rothko.
João Bénard era, já disse, um escritor mais do que um programador. Montava em cada ciclo uma narrativa. Mas era o melhor programador se aceitarmos que pode haver um programador anti-teórico. O João não vergava um filme para favorecer uma teoria. Porque não a tinha. A teoria dele era o concreto do filme que lhe entrava pelos infantis olhos dentro e o que a sua imaginação de escritor depois ditasse. Leiam-no. Encontrarão metáforas, elipses, e sobretudo o dilatado vício da hipérbole. Encontrarão o arsenal de um bom, excelente, apaixonado escritor. Às vezes fiel, fidelíssimo, às vezes atrevendo-se a reinventar o concreto de cada filme. O que não encontrarão é rédeas que obriguem ou humilhantemente reduzam o cinema a ser “artíficio” ou ”factício” ou outras parafernálias de para-filosofia ou apressada hermenêutica. Não se faz a ofensa de dizer palavrões destes a filmes que são lá de casa, tão lá de casa, tão da nossa, da sua vida, tão da vida de João Bénard.
Que bom teria sido se fosse também pintor! Foi um enorme escritor, autor. Os ciclos dele foram, afinal, o encontro desse autor da palavra com outros autores, autores de luz e sombra, sons e imagens moventes, fantomáticas.
Mas o que é que o João queria com as suas programações?
Era um programador que queria salas viventes, de gemidos e sussurros, de choro e riso. Queria um público sôfrego de sonhos, queria um público jovem de barbas mal-feitas e calças rotas, de miúdas lindas com saias new age e maus perfumes, gente que não se importasse de se sentar no chão, de pernas encolhidas, gente que em cada plano que iluminava o ecrã tivesse um êxtase celestial. Gente que sonhasse ser realizador mal pago, figurante numa curta, numa daquelas curtas de conceito críptico e umbilical.
Foi esse João o João que, em 1973, pela primeira vez vi no átrio da Gulbenkian, no ciclo Rossellini, grande como Orson Welles, bolso generoso como o de Henri Langlois, donde saíram os bilhetes de borla com que entrei na sala.
Mas o João queria também outro público. Sentia-se em casa, e queria na sua casa presidentes e ministros, embaixadores, patrões da indústria, reis ou cardeais. Não tinha medo de ser elitista, aristocrata no gosto, artista contemporâneo que convive com os Papas e os Médicis.
Lembro-me de um conselheiro cultural da Embaixada de França, tarimbado em 20 países, me confessar comovido que, ele que enfrentara primeiros-ministros e encontros hostis, quando entrava no gabinete do João estremecia, impressionado e reverente. O conselheiro via no João um herói. Mas lembro-me também que o senhor Gil, o motorista da Cinemateca e do João, o adorava de se rir, de nos vir contar, orgulhoso, as suas histórias. E nunca, nunca mais, voltei a encontrar alguém tão alguém que, herói de várias gerações de públicos como o João Bénard, fosse também herói para o seu motorista.
O que quero dizer é que as programações de João Bénard não eram paroquiais. Não eram programações de seita ou tribo, nem traziam com elas a sanha da exclusão de ninguém. Tanto iam num bolso roto a caminho da Amadora, como entravam nos salões de palácios. Se fosse preciso, e sem iconoclastia, projectava-se o “Je Vous Salue Marie” no paço episcopal.
Programador universal, do João tender-se-á a dizer que, como os melhores programadores, programava para si mesmo. Estou convencido que programava para os seus fantasmas. Fantasmas de sexo e morte, fantasmas de milagre, ressurreição e vida.
Como a Gene Tierney do The Ghost and Mrs Muir, o João não era homem para se assustar com fantasmas – muito menos os dele. Foi o João que disse: “Um fantasma é o medo que a gente tem dele”. E o medo do desejo nunca foi medo de João Bénard.
Este é o João Bénard que eu amei. Tal e qual como se dizia no mais amado dos seus filmes “There was never a man like my Johnny”
texto de
Manuel S. Fonseca
13 de Janeiro de 2011