terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Viagem a Angola (Luanda) em 1991


Em 1991, houve os chamados acordos de Bicesse entre o governo angolano e a Unita e durante um tempo houve uma acalmia na guerra e um tempo de esperança para os angolanos. Aproveitando essa acalmia fiz uma viagem de 15 dias a Angola, mais própriamente à sua capital Luanda. Namorava nessa altura uma angolana e foi a mãe dela que me convidou a ir. Foi uma maravilha, mal abriu a porta do avião no aeroporto de Luanda e senti um bafo enorme de calor, disse para mim (esta terra tem a ver comigo). Para pagar a viagem só tive de mandar um par de sapatos novos e bons (já não me recordo quanto custaram) para Angola, e depois eles foram vendidos no "roque  santeiro", grande mercado ao ar livre em Luanda onde diziam que se vendia de tudo, mesmo tudo. E com o dinheiro da venda dos sapatos, deu para pagar a viagem de avião (negócios de tempo de guerra). A viagem de ida e a de volta foram ruidosas porque os angolanos, qualquer motivo lhes serve para comemorar (aquele era um tempo de esperança), e recordo que pouco dormi.



Fotos no andar do prédio "O Livro", após uma grande chuvada, em que tudo em Luanda parou e nós ficámos lá no alto a ver a chuvada e as poças que se formaram.


Ficámos hospedados em um apartamento do chamado prédio "O Livro", que pertencia a um amigo de um amigo de um primo (coisas à angolana). O prédio era enorme e o apartamento era lá no alto (?), e tínhamos de entrar cedo porque ás 22h os elevadores eram desligados. Passados dois ou três dias, fomos convidados para um casamento (também de um primo de um primo de não sei quem) numa coisa chamada "Clube das Nações Unidas) e foi um cena sem explicação, havia uma mesa para aí com dois metros cheia de lagostas, até um metro de altura, cerveja e outras bebidas ás centenas. Como não danço sentei-me ao pé das lagostas e foi de fartar até á noite, claro que chegados ao "Livro", tivemos de subir os andares todos, (creio que eram 18, mas posso estar enganado). 

Aqui apanhei um escaldão de primeira.


Não tenho muitas fotos, porque havia ainda um certo receio em tirar fotos (tinham-me avisado que era melhor não tirar a prédios, monumentos etc). A coisa mais linda de Luanda (para além das pessoas) foi ir ao Mussulo, em que nadámos no lado da baía junto aos barcos e depois fomos ao outro lado que é Oceano e que era uma praia deslumbrante. Outra coisa que recordo foi um almoço (nas instalações da Mota e Companhia?) que durou das 16h ás 24h, e em que só me levantei da mesa aí uma quatro vezes, é claro que quando acabou tiveram que carregar comigo, porque estava completamente bêbado. Os angolanos gostam de receber bem, a cerveja é óptima e só me davam uísque velho (que chatice).


"O Livro". Chamavam assim ao prédio porque tinha o formato de um livro aberto.


Recordo que fui ao mercado de São Paulo comprar fruta com um tio da rapariga e ele tira do bolso um monte de notas (como se vê nos filmes) para pagar a despesa e outra coisa foi que no meio da fruta que já era escassa, porque era quatro ou cinco da tarde, estava á venda uma garrafa de Moet Chandon. Não saímos de Luanda por prudência mas andámos bastante de carro e uma das vezes fomos ao Futungo (onde vive ou vivia José Eduardo dos Santos) e vi um poço a arder (petróleo ou gaz) ali perto, guardado por um soldado das Fapla. Recordo que não havia quase comércio mas fui a uma livraria na baixa de Luanda e comprei baratos um monte de livros de escritores angolanos, fomos á praia ao Mussulo e á da Baía e aqui encontrei-me com um assessor do presidente no restaurante Barracuda (o Barracuda só aceitava dólar, mas o assessor fez questão de pagar com kwanzas), para quem levava um recado (ou coisas ?) da sua amiga Cucha e ofereci a ele programas de peças de teatro. Fiquei cheio de saudades e a par da Colombia foram os países onde gostei mais de ir. Creio que é tudo, este post já vai longo, só direi mais isto; é que se me convidassem para trabalhar ou viver lá não hesitava porque adorei Angola, isto é Luanda. 


Mercado  Roque Santeiro em Luanda. Creio que já não existe.



Ilha do Mussulo em Luanda, zona virada para a Baía e zona virada para o Oceano. Um Paraíso.


Para os angolanos que me receberam.


 
Chico Buarque canta «Morena de Angola»




(As três primeiras fotos são de Francisco Grave e as outras foram encontradas na net)




domingo, 29 de janeiro de 2012

Filmezinhos de Sam


"Filmezinhos de Sam" - Uma série de 41? pequenos filmes para a RTP, da autoria de Sam (Samuel Azavey Torres de Carvalho) o cartonista conhecido entre outras obras pela criação do célebre "Guarda Ricardo". Os filmes foram protagonizados por Mário Viegas e realizados por José Cunha.


"Mário Viegas presta–se bem ao tipo de humor, entre o 
desconcertante e o absurdo, que povoa estas pequenas histórias." (Sam)


Tempo de Recreio

A pesca


Perfil  de Sam por Silas de Oliveira, em O Jornal 27-01-1989, e Ad Ephemeram Gloriam, monumento ao poder efémero, da autoria de Sam, no cimo do relvado da Alameda Dom Afonso Henriques, em frente da porta principal do IST - Instituto Superior Técnico.É dedicada "A TODOS OS QUE PASSAM E OUSAM DETER-SE", a escultura é uma grande cadeira com o acento inclinado. (foto de marcasdasciencias.fc.ul.pt)



Falecido em 1993, Samuel Azavey Torres de Carvalho, engenheiro de formação, ficou conhecido pelo pseudónimo Sam e pela faceta de cartoonista, com desenhos de traços simples que assinalam em 2008 a quarta década de publicação, destacando-se o famoso Guarda Ricardo, publicado pela primeira vez a 27 de Maio de 1971 no Notícias da Amadora, um analista do quotidiano "guarda da justiça, liberdade e de um certo equilíbrio", nas palavras do próprio autor. (In, Blitz)


Sam, o nome com que Samuel Azavey Torres de Carvalho assinava os seus cartoons, foi dos mais fustigados pela censura.(In, aeiou.expresso.pt)



(Cartoons encontrados na net)



sábado, 28 de janeiro de 2012

José Rodrigues Miguéis - Conto "Inédito"

"Comércio com o Inimigo"


Coisas boas em Jornais

José Rodrigues Miguéis em 1958.


"A vida não é um privilégio pessoal: é alguma coisa que nos ultrapassa como indivíduos; que pertence à natureza, à história e à sociedade. É dos homens como "todo", no tempo e no espaço, que se faz a verdadeira eternidade. E é só entre eles, na sociedade, na consciência e na acção, que somos e nos sentimos reais ...
José Rodrigues Miguéis


Conto inédito (na altura) de José Rodrigues Miguéis, publicado
no Diário de Lisboa em 24-06-1971. Clique para ler.


Citação:

“Com grande espanto, vejo logo à cabeça da lista esta coisa inesperada: 
Sopa de nabos com feijão branco à portuguesa.
Nabos! Em Boitsfort! E feijão branco à portuguesa! Dei um pulo que fez sorrir a criadinha roliça, loira e flamenga a olho nu, que desenvoltamente se viera postar a meu lado.Como a todos os portugueses, sempre me alvoroçou encontrar lá fora, fosse onde fosse, um reflexo da nossa influência civilizadora. Não há português digno do nome que, passando por Paris, não vá abrir a boca de admiração a uma esquina da Rue de Lisbonne ou do Boulevard Pereyre; que não sinta espicaçá-lo uma ponta de orgulho ao ver, em Bucareste ou Nova Iorque, a tabuleta dum mercador chamado Portugal ou Portugalov, ou achar a cada passo, por esses restaurantes, as clássicas ‘ostras portuguesas’ ou a sopa de tomate a que chamam portugaise, talvez em homenagem à nossa nunca desmentida tesura. Uma cidade chamada Lisbon, no Ohio ou no Maine (ainda há outras), ou mesmo Angola (Indiana ou Nova Iorque), enche-nos o peito de ufania. Uma simples refeição ao madère num romance de Dumas, ou ao porto numa novela russa; a menção duma personagem cosmopolita de apelido Faria ou Paiva, bastam para nos compensar de infindos amargos de boca patrióticos. Vaidades perdoáveis em quem, como Pedro Sem, já teve e agora não tem. (…) Quando a pequena me serviu a sopa, a fumegar numa funda e portuguesíssima tigela de barro vidrado de Estremoz, o meu assombro cresceu: era a legítima, a insofismável sopinha familiar de feijão branco! Ataquei-a com todo o fervor da minha gastronostalgia, e esqueci por completo o ensaio de bordoada que me preparava para aplicar à nossa culinária.”
(José Rodrigues Miguéis, Uma Aventura Inquietante, 9.ª ed.: 12-14).
(In, www.ilcml.com)


Desenho de José Rodrigues Miguéis, o dos óculos, efetuado 
em 1936, ano em que ocorreu a história aqui representada:


- Migués encontrava-se em Nova Iorque há seis meses. Foi procurado pelo funcionário dos Serviços de Imigração, o obeso, que, não obstante conhecê-lo, perguntou-lhe:
– Por acaso sabe se é aqui que trabalha o Miguéis?
- Miguéis não está! – respondeu-lhe o próprio.
- Eu volto daqui a pouco – disse o funcionário saindo do escritório.
Miguéis aproveitou e saiu pela janela. Permaneceu na América até morrer.

(Texto e desenho em lusografias.wordpress.com)


José Rodrigues Miguéis


José Claudino Rodrigues Miguéis nasceu a 9 de Dezembro de 1901 em Alfama, bairro típico de Lisboa, e veio a falecer em Nova Iorque a 27 de Outubro de 1980. Passou a sua infância e juventude em Lisboa, recordações que marcarão a sua futura obra. Ainda em Lisboa viria a formar-se em Direito em 1924. Todavia, nunca exerceria de forma sistemática profissão nesta área, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia. Neste último campo viria a licenciar-se em 1933 em Ciências Pedagógicas na Universidade de Bruxelas. Herdando do pai, um imigrante galego, as ideias republicanas e progressistas, cedo entrou em conflito com o Estado Novo, o que acabaria por o levar ao exílio para os Estados Unidos da América a partir de 1935. Desde essa altura até à sua morte apenas voltaria pontualmente a Portugal, não passando no seu país natal períodos superiores a dois anos. Em 1942 viria a adquirir a nacionalidade americana. A estada de Rodrigues Miguéis nos E.U.A. fez dele um importante agente cultural na divulgação da literatura e cultura americanas quer em Portugal quer no Brasil. Para lá do trabalho, durante quase uma década, como Assistant Editor das Selecções do Reader’s Digest, Miguéis traduziu grandes autores da literatura norte-americana, como Carson McCullers, Erskine Caldwell ou F. Scott Fitzgerald. O reconhecimento institucional – desde a atribuição da Medalha da Ordem Militar de Santiago de Espada (1979) aos Colóquios realizados em Portugal, graças, sobretudo, ao empenho de Onésimo T. de Almeida – ainda não se traduziu, porém, na merecida valorização pública e na redescoberta de um autor que em muito contribuiu para alargar os horizontes culturais dos portugueses no tempo do Estado Novo e para a revitalização da língua portuguesa. Em 1983, na sequência de um trabalho conjunto de Onésimo T. de Almeida, de George Monteiro e de Camilla Miguéis, para reunir os documentos dispersos do escritor, foram criados os "José Rodrigues Miguéis Archives" integrados em "Special Collections" da John Hay Library (Univ. Brown).
(Texto: vários a partir da net)


José Rodrigues Miguéis em 1975.


(Fotos do espólio de José Rodrigues Miguéis na Brown University Library, EUA)


sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Eles e Elas em Technicolor

Guys and Dolls, 1955
de Joseph L. Mankiewicz



"A única diferença entre um filme e a vida 
real, é que o filme tem que fazer sentido!"
Joseph L. Mankiewicz


 Joseph L. Mankiewicz durante a rodagem do filme, Guys and Dolls. Hollywood, 1955. Gjon Mili.


 "Folha" da Cinemateca assinada por João Bénard da Costa no catálogo O Musical. Clique para ler.


Marlon Brando a dançar (coisa rara) e Jean Simmons na cena da batatada. 


 Jean Simmons, a missionária completamente perdida.


O quarteto do filme: Marlon Brando, Jean Simmons, Frank Sinatra e Vivian Blaine.


O quarteto do filme: Marlon Brando, Jean Simmons, Frank Sinatra e Vivian Blaine.

Guys and Dolls. Hollywood, 1955. Gjon Mili.


Frank Sinatra durante a rodagem de Guys and Dolls. Hollywood, 1955. Gjon Mili.

Marlon Brando durante a rodagem de Guys and Dolls. Hollywood, 1955. Gjon Mili.

Joseph L. Mankiewicz durante a rodagem do filme, Guys and Dolls. Hollywood, 1955. Gjon Mili.


Para acabar em grande: Brando a dançar e cena da batatada.



(Fotos de Gjon Mili e LIFE Archive)



Hermínia Silva e o Fado


"Anda Pacheco"
(Frase com que Hermínia iniciava alguns fados, dirigida ao seu guitarrista António Pacheco)

Coisas boas em Jornais


"Desde que me entendo que gostei de cantar. E o fado, cantava­‑o a todo o mo­mento, e por toda a parte: na rua, em casa, na escola, desde que aos seis anos comecei a frequentar a escola, que ficava ali na Rua da Madalena, mesmo em frente da igreja.
Ora lá na escola, por vezes, havia umas festas nas quais tomavam parte algumas meninas que sabiam cantar. Eu deixava­‑me ficar muito caladinha quanto aos meus «méritos», pois tinha vergonha de os reve­lar. Até que um dia, quando se preparava uma dessas festas, uma das minhas colegas dirigiu-se à mestra e, apontando-me, revelou:
— Minha Senhora, esta menina canta muito bem!
Claro está que a professora quis, imediatamente, avaliar as minhas possibilidades e mandou-me cantar uma música que eu soubesse bem. E eu «desatei» logo a cantar um fado, daqueles bem fadistas.
A professora ao ouvir-me cantar o fado levou as mãos à cabeça e, fazendo um gesto negativo, declarou:
—  Ai. Esta menina! Não… Fado não!
Depois, talvez por ver a decepção estampada na minha cara, incitou-me a cantar outra «moda» que eu soubesse. Cantei, ou melhor, comecei a cantar uma canção que sabia também, mas o pior é que mesmo a canção, na forma como eu cantava e na minha voz, soava como fado. E, de novo, a senhora me interrompeu, repetindo, um tanto ou quanto escandalizada:
—  Não, fado não… Esta menina não pode cantar na festa! As meninas não cantam fado!
Escusado será dizer que fiquei com uma grande «pinha», pois cantar já era para mim uma paixão.
E começava também já a despontar em mim o desejo de representar. E chorei que me fartei.
Mas a vida continuou e eu sempre cada vez mais possuída por aquela verdadeira paixão que era para mim o cantar. E sempre que podia lá estava eu de «boca aberta» quer fosse em casa, quer fosse nas casas de pessoas amigas que me convidavam, de vez em quando, a cantar um «fadinho», quer fosse em festas particulares, onde me chamavam de propósito para eu «botar» cantiga, porque achavam que eu tinha «jeitinho».E eu ia sempre cantando e sempre a pensar no Teatro, pois nesse tempo não havia casas típicas e eu para as tabernas não ia… claro que não ia. (...) Chegou a altura em que tive necessidade de ir aprender um ofício e empreguei­‑me como aprendiza de modista. No en­tanto, o meu pensamento estava sem­pre no Teatro e no Fado. E continuei a cantar, quer pelos bailaricos, quer em festas particulares, para as quais estava sempre a ser chamada. E eu ia sempre, pois o que eu queria era cantar…"
(Palavras de  Hermínia Silva em lisboanoguiness.blogs.sapo.pt) Ler Mais Aqui



Hermínia Silva canta "Sou Miúda" da autoria de Luís Ribeiro e João Fernandes.
Gravação de 1958. Carregado por TiMariaBenta em 19/12/2009


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Drugstores: Sol a Sol e Tutti Mundi

os primeiros em Lisboa


Em 1968, tinha 14 anos e trabalhava na baixa, na rua da Prata e como tinha muito tempo ao almoço, (a loja de tecidos só reabria ás 15 horas), ia algumas vezes ter com o Luís "pintor", á rua de Santa Marta onde ele trabalhava numa loja de roupas e lembro-me de ir ver o Drugstore Sol a Sol, (já não me recordo se ia sozinho ou com o Luís), e entrar pela rua Rodrigues Sampaio e sair na avenida da Liberdade. A pouca memória que tenho é de meia dúzia de lojas e ser uma coisa a dar para o "fino". Não sei bem a diferença entre "Drugstore", Shopping" e "Centro Comercial", talvez tenha a ver com o tamanho e o numero de lojas e acho que os "Drugstores" são ou eram uma coisa mais selectiva. O Sol a Sol deve ter sido o primeiro em Lisboa, não encontrei noticia referente á sua abertura, mas deve ter sido em fins de 1967, porque em Dezembro de 1967 já estava a funcionar. Nesse mesmo ano abriu o Tutti Mundi, onde hoje funciona o centro comercial Roma. Mais tarde, veio o Apolo 70 (bons gelados, bons filmes), e nunca mais pararam de crescer como cogumelos pelo país fora. Mas, o primeiro shopping ou centro comercial, deve ter sido o Cruzeiro no Monte Estoril, como podem ver em ruinarte.blogspot.com. Aliás, um excelente trabalho. Ler Aqui


O anuncio da discoteca no Drugstore Sol a Sol foi encontrada em guedelhudos.blogspot.com, e trazia a legenda: in "Diário Popular", 22 de Dezembro de 1967.



 Fotos da Av. da Liberdade 232 e Rua Rodrigues Sampaio 77, as entradas do Drugstore Sol a Sol.


 Noticias referentes á abertura do Tutti Mundi em Dezembro de 1968.


Anuncio pouco antes do carnaval de 1970.



Fotos da Av. de Roma 48 e Rua Conde de Sabugosa 15, entradas do Drugstore Tutti Mundi.


O Apolo 70 só chegou em 1971. Anuncio da abertura, reportagem e anuncio do filme inaugural. A foto da reportagem é do arquivo fotográfico da CML.


O Cruzeiro no Monte Estoril, deve ter sido o primeiro de todos em Portugal. E o mais bonito.


(foto de O Cruzeiro: ruinarte.blogspot.com. As outras foram feitas com o Google View)



quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SEPARATA GRATUITA

 de 
Mário-Henrique Leiria




O que aconteceria se o Arcebispo de Beja fosse ao Porto e dissesse que era Napoleão. Toda a gente acreditava que era. O presidente da Câmara nomeava-o Comendador. Iam buscar a coluna de Nelson, tiravam o Nelson e punham o arcebispo lá em cima. E davam-lhe vinho do Porto.
Então o arcebispo de Beja dizia:
- Sou a Josefa de Óbidos.
Ainda acreditavam que era, embora menos. O presidente da Câmara apertava-lhe a mão. Iam buscar o Castelo de Óbidos, tiravam os óbidos e punham o arcebispo na Torre de Menagem. Além disso davam-lhe trouxas d’ovos.
Nessa altura, convicto, o arcebispo de Beja afirmava:
- Sou o arcebispo de Beja.
Não acreditavam. Davam-lhe imediatamente uma carga de porrada. E punham-no no olho da rua. Nu.

Mário-Henrique Leiria in “Novos Contos do Gin”, 1989


Mário-Henrique Leiria


O Príncipe do Absurdo (Homenagem a Mário-Henrique Leiria) de Cruzeiro Seixas.

(fotos encontradas na net)



terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Quando Spencer Tracy foi Manuel

O pescador português que ganhou o Óscar com o filme 
Lobos do Mar (Captain Courageous) de Victor Fleming (1937).


As fotos são da reportagem da revista LIFE em 10 de janeiro 1938.


«Foi na pele do pescador português que Spencer Tracy conquistou a primeira das suas duas estatuetas. Produzido com o luxo das grandes fitas da MGM é a adaptação de uma história de Rudyard Kipling (prémio Nobel da Literatura) sobre um menino rico e mimado, salvo por um pescador português depois do desastre marítimo vivido a bordo de um paquete de luxo onde seguia em cruzeiro. É junto a velhos lobos do mar que Freddie Bartholomew (na altura considerado como um dos meninos prodigíos do cinema americano) acaba por perceber que a vida é dura e não se resume aos seus caprichos de criança mimada.»
(In, portugal-mundo.blogspot.com)

As fotos são da reportagem da revista LIFE em 10 de janeiro 1938.


«Spencer Tracy (1900–1967) foi um dos mais famosos actores de sempre do cinema dos Estados Unidos. Filho de pais católicos, Spencer estudou num colégio jesuíta. Nesse colégio conheceu o também futuro actor Pat O'Brien. Em 1917 os dois abandonaram os estudos e se alistaram na Marinha para participarem da Primeira Guerra Mundial. Nesse tempo começou a actuar no colégio e acabou decidindo seguir carreira de actor. Fez um teste para a American Academy of Dramatic Arts em Nova Iorque e foi aceite. Em 1922 estreou na Broadway. Em 1930 teve seu primeiro grande sucesso na Broadway, o director John Ford assistiu a peça e o chamou para participar no seu próximo filme "Up the River". Pouco depois ele e sua família se mudaram para Hollywood. Nos próximos 5 anos actuou em 25 filmes, até que em 1935 assinou contrato com a MGM. Dois anos depois ganhou dois prémios Óscar consecutivos de melhor actor principal (1937 e 1938). Em 1941 durante as filmagens de Woman of the Year, Tracy conheceu a actriz Katherine Hepburn, e teve com ela um longo relacionamento, nunca assumido, até a morte dele. Por 20 anos ficou na MGM e em 1955 começou a actuar como independente. Participou em mais de setenta filmes em três décadas. Juntamente com Laurence Olivier possui o recorde de indicações ao prémios Óscar de melhor actor.» (fonte wikipedia)


Tributo a Freddie Bartholomew.



sábado, 21 de janeiro de 2012

O teatro e a televisão


A telenovela estraga os actores e o público. Com maus actores e mau público não há teatro. Sem teatro, a comunidade vê-se privada de um poderoso instrumento de confronto, reflexão e transformação. 

Por Manuela de Freitas


Cada sociedade tem o teatro que merece.
Federico Garcia Lorca

O actor é o membro da comunidade que, partilhando as suas inquietações e paixões, tem como profissão contar histórias que interessam a todos, comovendo-os, divertindo-os, inquietando-os e confrontando-os. Para as contar bem, aprende técnicas, como qualquer profissional. Exercita o corpo e a voz, para que se oiça e se perceba o que diz; para que se apreenda todo o sentido do que diz; para incorporar os textos e não os papaguear (etimologicamente, decorar significa “aprender com o coração”); para poder gritar e não ficar rouco, atirar-se pelo ar e não se magoar, correr e não cair do palco abaixo, agredir e ser agredido sem ferir nem se ferir.

Helene Weigel nas duas fotos, em A Mãe de Bertolt Brecht.

Para que o público receba com a inteligência, os sentidos e a emoção o que o actor lhe propõe, este vai buscar às outras artes, às ciências, às filosofias, aos rituais religiosos e a todas as formas de cultura, as técnicas que o ajudam a conhecer-se melhor e a melhor utilizar o seu pensamento, os seus sentidos e emoções, fazendo deles matéria de criação. Vivendo e convivendo com o que é, o que recusa, o que teme, o que deseja, é atento como uma antena e nada lhe é estranho ou alheio. Confronta-se com as suas capacidades e incapacidades, vícios e virtudes e torna-se uma espécie de base de dados a que vai buscar tudo o que serve para dar vida a cada nova personagem. Do seu encontro com ela o actor cria uma terceira entidade, única e irrepetível. Procurando o que a personagem tem de essencial, quais os mais significativos e universais vectores de humanidade que nela se manifestam, é sempre também ele e não outro, com o seu corpo, emoções, inteligência, memórias, experiências e opções. Não se esconde nem imita ninguém. Vive até às últimas consequências a parte de si que dá forma à personagem e os conflitos em que ela se inscreve. Não aceitando como a “sua verdadeira personalidade” a imagem estereotipada que a sociedade criou para ele, ou que ele criou, consciente ou inconscientemente, para funcionar na sociedade, passa por toda a espécie de experiências físicas, mentais e emocionais para, em cada dia, poder estar à frente do público, inteiro e em carne viva. Tão humano e ao mesmo tempo tão fora do quotidiano, do “real” estereotipado, que se torna arquetípico representante da humanidade que com ele se identifica e se põe em causa.

Se tudo isto implica uma permanente vigilância e disponibilidade, um estar sempre a começar do princípio, a percorrer caminhos desconhecidos de autoconhecimento, de relacionamento e de expressão, implica também uma ética. Matéria-prima de criação artística, instrumentista virtuoso cujo instrumento é ele próprio, o actor sabe que tem de se enriquecer como ser humano, tem de fazer escolhas e de se exprimir cada vez melhor. Para ter coisas importantes a dizer aos outros e dizê-las bem para que eles as aceitem e as utilizem. Para contar tão verdadeira e profundamente uma história que a torne universal. Para “acontecer” - estar presente inteiramente num espaço e num tempo – e saber levar o público a “acontecer”, não assistindo, passivo, a uma exibição, mas sendo co-criador de um acto de vida único e irrepetível. Vendo, ouvindo, sentindo e pensando o que lhe diz respeito e, assim, aprendendo, tomando partido, transformando-se.


Manuela de Freitas em Final de Becket, encenação de Mário Viegas. (foto francisco grave)


O teatro, como qualquer forma de Arte, não é uma cópia da vida. É uma transposição poética da realidade, condensando-a e permitindo que se veja para além da pequena história que se conta. Mergulhando a fundo na representação do real, desmascara as aparências que o falseiam e faz com que cada um que assiste possa pensar: “Isto tem a ver comigo. Perante isto, a minha posição é esta”. A força do teatro reside no facto de tornar presentes as misérias e as grandezas dos seres humanos e os consequentes conflitos que originam, levando o público a tomar partido.

Pelo contrário, a telenovela, pretendendo ser uma cópia fiel da vida, na sua forma redutora de a representar utiliza códigos de identificação política, cultural e moral que fazem dela uma eficaz máquina de propaganda de uma determinada visão do mundo. Com o ar inocente de mero entretenimento, instila-a num público que passivamente a digere e inconscientemente a assimila.

Mas não é só essa a sua função perniciosa. E voltamos aos actores.

As telenovelas utilizam modelos e apresentadores que se querem exibir e promover; velhos comediantes medíocres que, em vez de estarem asilados ou a passar fome, assim se divertem e vivem um pouco melhor; pessoas que querem aparecer na televisão para serem conhecidas na rua; jovens que querem sair nas revistas, ganhar dinheiro, sentir-se alguém. E também utilizam crianças, que são mão-de-obra barata. Quando abrem concursos de casting, vão lá pais com crianças de um ano, de seis, de dez, e escrevem nas fichas “livre a qualquer hora do dia ou da noite”. Porque o filho pode render algum dinheiro ou até ser artista, ter alguma hipótese de futuro e sair da cepa-torta. Muitos destes miúdos deixam a escola ou não conseguem estudar porque as filmagens começam de manhã e acabam à noite. Há muitos a recorrer a psiquiatras e já houve casos de suicídio porque não se conseguiram reintegrar na escola ou porque concorreram e não foram aceites.

E claro que também utilizam actores profissionais. Hoje, a profissão de actor já não existe fora da televisão. Quer como carreira, quer como meio de subsistência. Na televisão, um actor ganha, em média, 6.000 euros mensais (a mim ofereceram-me 10.000 há oito anos), com a garantia de trabalho pelo menos durante 6 a 8 meses. No teatro, quando é pago, o actor recebe em média entre 1.000 e 1.500 euros mensais, durante um máximo de 3 meses. Vai fazer a primeira novela pensando: “Vou só lá fazer isto porque preciso agora de algum dinheiro”. Ganha muito bem durante 6 a 8 meses, tem de largar o emprego que tinha porque tem filmagens todo o dia, paga a entrada e as primeiras prestações de uma casa, compra carro, muda os filhos de escola e, quando acaba a novela, fica sem nada, com a casa e o carro para pagar, a escola dos filhos mais cara. Agora está nas mãos da televisão. Faz a segunda novela, a terceira, aceita tudo o que lhe oferecem, por qualquer preço e em quaisquer condições, das novelas às dobragens, dos sketches à publicidade.

E assim, ao longo dos anos, vamos assistindo à destruição dos actores, alguns de grande qualidade e talento. Porque, se o actor é o instrumento de si próprio, tem de ter os cuidados que um violinista tem com o seu violino. Com um instrumento em más condições, desafinado, nem o melhor executante consegue tocar boa música. A repetição daqueles clichés, o primarismo daquelas personagens e a industrialização da produção destroem-nos a pouco e pouco. Representam muitas vezes a olhar para os diálogos escritos pelas paredes porque não tiveram tempo para os decorar. Porque aquelas histórias são muito fracas, tudo muito pobre e muito parecido, vão-se transformando nos estereótipos que criam para funcionar naquelas situações. Defendem-se do vazio gesticulando, sentando-se e levantando-se, cruzando e descruzando os braços, passando as mãos pelos móveis ou pelos cabelos – para parecerem “muito expressivos”. E já não sabem fazer-se ouvir numa sala de teatro sem microfones, porque se habituaram ao linguajar naturalista e sussurrante da novela em que o que se diz não tem qualquer sentido nem importância, a não ser causar a impressão de que é igual à vida quotidiana. Ao contrário do teatro – em que as palavras têm todas um peso e um significado, são matéria com carne, emoção e pensamento –, na novela o texto é apenas pretexto e as palavras tanto podem ser aquelas como outras. E os actores vão perdendo a noção do sentido das palavras por causa da “naturalidade” e da vulgaridade com que se habituam a falar sem dizer nada. Apanhados nas armadilhas do cliché, procuram ser “verdadeiros” e desaprendem (e os mais jovens nem chegam a aprender, porque os cursos de formação de actores já só visam essa única saída profissional: a televisão) o que qualquer artista sabe: a força da obra de arte é a capacidade de dizer, condensando num gesto, num traço, num som, numa palavra, o que nem todas as cópias da realidade conseguem dizer. Nem juntando todas as fotografias saídas nos jornais e todas as reportagens televisivas conseguiríamos apreender tanto sobre a guerra civil de Espanha como vendo a Guernica de Picasso que, para além disso, nos confronta ainda com as consequências de todas as guerras acontecidas e por acontecer.


Guernica de Pablo Picasso.

E assiste-se também à destruição do público. Habituado a ouvir contar histórias que não lhe exigem reflexão nem o confrontam com nada de importante, de uma forma que não lhe reclama concentração, nem tempo, nem atenção, o público não aguenta um teatro que não seja apenas entretenimento superficial e fácil, onde vai para fazer a digestão ou para apreciar ao vivo as vedetas da novela.

Com maus actores e mau público, não pode haver teatro. Nas salas aveludadas, vão-se exibindo espectáculos desfrutados apenas por uma elite intelectual que “deixa a novela para a plebe” e que, sem inquietação, se compraz com formalismos esteticistas decadentes ou com experimentalismos pós-modernos que também não são teatro. Porque o teatro, como qualquer arte, se não se compadece com a vulgaridade, também não se compadece com o efeito por mais bem elaborado que seja, ou com o enfeite por mais bom gosto que exiba. Não é um passatempo nem um luxo para servir a convidados.

Cartaz de A Mãe de A Comuna.
Estará então a televisão a acabar com o teatro? Nos seus muitos séculos de história, o teatro tem sido alvo dos mais variados atentados: tirando-o da praça pública e restringindo-o aos salões aristocráticos, ou às salas burguesas “à italiana” que separam o público dos actores e transformam o acto teatral numa exibição pseudo-mágica que leva à passividade do público; confinando-o em contextos que seleccionam a assistência segundo as classes sociais; utilizando-o como instrumento de propaganda populista e imediatista, tanto à direita como à esquerda.

E a estes como a outros atentados o teatro tem sempre sobrevivido. É cíclico. Persistem pequenos focos de resistência marginais que não se deixam subjugar e que ciclicamente emergem, restituindo ao teatro o seu lugar na comunidade. Há sempre quem não aceite a privação, entre outras coisas, deste poderoso instrumento milenar de enriquecimento e de libertação.

 (Manuela de Freitas, 20-02-09, em passapalavra.info)   

(fotos encontradas na net)