Surrealista?
"até à morte! Isso é uma coisa que não tem cura!"
"(...) quando entramos num museu e vemos coisas como a «Vitória de Samotrácia», por aí fora. Coisas que nos fazem perder a cabeça. Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos cansamos de fazer amor. Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas." (Cruzeiro Seixas)
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Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita : Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949. Foto de republicadassantasbicicletas.wordpress.com |
Uma Grande Grande Grande entrevista a Cruzeiro Seixas
Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas nasceu na Amadora a 3 de Dezembro de 1920. Em 1935, matriculou-se na Escola de Artes Decorativas António Arroio, em Lisboa, onde conheceu, entre outros, Mário Cesariny, Marcelino Vespeira, António Domingues, Fernando José Francisco, Fernando Azevedo e Júlio Pomar. Com estes e outros artistas participou, em 1943, em tertúlias de carácter vanguardista. Depois de uma fase expressionista-neo-realista, as inquietações plásticas e os desejos de libertação estéticos e ideológicos levam Cruzeiro Seixas a abraçar o projecto perfilhado pelo Grupo Surrealista de Lisboa, tornando-se, uma das figuras de referência daquele grupo fundado em 1947. Desde que assumiu os preceitos surrealistas não mais os abandonou, mantendo-se fiel ao onirismo figurativo dessa poética que empregou também em colagens e objectos. Com Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Mário Henriques Leiria, Pedro Com, Fernando José Francisco, Risques Pereira, Fernando Alves dos Santos, Carlos Eurico da Costa, Carlos Calvet e António Paulo Tomás, organiza a Primeira Exposição dos Surrealistas na cidade de Lisboa (Janeiro de 1949, entre a Sé e o Aljube). No ano seguinte, participa na segunda exposição de “Os Surrealistas” (Lisboa, Livraria Francesa) e assina diversos manifestos e folhas volantes. Em 1951, Cruzeiro Seixas alista-se na Marinha Mercante, viaja até à Índia e Extremo Oriente, acabando por se fixar em África, Angola, durante doze anos. Em 1964, com o intensificar da Guerra Colonial, Cruzeiro Seixas vê-se constrangido a regressar à Europa. De volta a Portugal, participa em inúmeras exposições. Na década de 70, participa em inúmeras colectivas do movimento surrealista internacional, principalmente aquelas ligadas ao Grupo Phases (liderado pelo poeta e ensaísta Édouard Jaguer, ao qual havia, entretanto, aderido). Em 1999, doa a totalidade da sua colecção à Fundação Cupertino de Miranda, com vista à constituição de um Centro de Estudos e Museu do Surrealismo. Artista Versátil, explorou, ao longo de décadas, as infinitas poéticas do surrealismo. Animou a renovação da arte portuguesa, propiciando exposições de artistas novos e a divulgação de artistas e movimentos internacionais nas galerias onde colaborou. Actualmente vive e trabalha em Lisboa. (fonte: www.circuloarturbual.com)
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Cruzeiro Seixas.
Foto de www.circuloarturbual.com |
Ainda é surrealista,
Cruzeiro Seixas?
- Ah, isso até à
morte! Isso é uma coisa que não tem cura.
A pergunta, se calhar, devia ser outra:
ainda se pode ser surrealista no século XXI?
- Eu acho que cada
vez vai haver mais. E isso é uma coisa que se está a notar aqui em Portugal: de
um momento para o outro, houve um interesse súbito pelo surrealismo.
O surrealismo ainda faz sentido como fazia
há cinquenta anos?
- Acho que sim. O
surrealismo ainda vai ser descoberto. Ou redescoberto. Foi a maior filosofia -
ou uma das maiores, para além do comunismo ou do existencialismo... Mas parece
que tem pernas para andar, mais tarde, quando for redescoberta.
Mas pode ser-se surrealista, ainda hoje,
como se poderia ser, sei lá!, cubista, Impressionista, gótico (para falar
noutras correntes na área das artes plásticas)?
- Simplesmente,
essas correntes, a maior parte delas, tinham um factor que era o mais
importante: o estético. O surrealismo tem, além do estético, uma filosofia de
vida que é muito importante e que vai mais longe.
Não estamos a falar, portanto, apenas de
estilo ou de técnicas artísticas mas de algo mais do que Isso.
- Há muito mais do
que isso no surrealismo. O pensamento que está por dentro disso é muito mais
importante, até, do que essa própria opção.
Falou de uma filosofia de vida: é o
mergulho no Inconsciente?
- É por aí que nós
temos que encontrar o caminho. O caminho do futuro vem por aí, com certeza.
Vem do Inconsciente?
- Do inconsciente
no consciente, evidentemente. Vamos supor, por exemplo, que o Homem se divide
em partes iguais: uma delas será inconsciente e a outra consciente. Realmente,
temos que admitir, pelo menos, que existem as duas e que são ambas muito importantes.
Explique-me o que é o seu surrealismo.
Cruzeiro Seixas?
- Cada um tem o
seu, de facto. É engraçado o modo como você põe essa pergunta. Tenho impressão
que cada um faz o seu surrealismo, diferente dos outros.
E o seu...
- O meu é um
surrealismo que assenta principalmente numa ideia de liberdade louca.
Louca!
- Louca. Porque é
tanta. E o desejo dela ultrapassa tanto a loucura, mesmo! E depois, posso-me
gabar de ter realmente conseguido, de certa maneira, realizar essa loucura...
Viveu-a?
-... e de tê-la
vivido. Acho que sim. Hoje, com 84 anos, tenho já uma visão enorme da vida e
posso espantar-me a mim próprio, não é?
Pela liberdade ou pela loucura?
- Pela liberdade e
pela loucura que meti dentro dela. Consegui! Consegui realmente viver.
O que é que a sua vida teve de mais
louco?
- Bom, para não
lhe falar nos amores, esta liberdade que nós sentimos no dia-a-dia. Sermos
capazes de passar pelos perigos. Estarmos à beira do abismo e não cairmos nele.
A vertigem atrai?
- A vertigem atrai
imenso. Estive muitas vezes no abismo, enfim, à beira dele, com um pé mesmo
nele. Mas sabemos realmente ultrapassar isso.
O que é artístico é conseguir acabar por
não cair no abismo.
- Cair não me
apetece muito. Realmente é muito bonito mas para isso acho que é preciso ser-se
genial. Eu não sou genial. Ou então fica-se um desgraçado que anda a dormir
pela rua.
Alguma vez correu esse risco?
- Eu julguei que
era isso que me ia acontecer na vida. Aqui há uns 30,40 anos eu supunha que
o meu destino era ser um vadio.
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Cruzeiro Seixas. Projecto para um Tejo à nossa medida, 1966
Serigrafia, 15 x 20,5 cm, foto em www.fcm.org.pt |
Por desadaptação?
- Por
desadaptação. Por não ter o mínimo jeito para fazer contas, por exemplo. E isso
é uma coisa absolutamente necessária. Se me perguntar quanto são sete vezes
nove eu não sei
Nunca chegou a saber ou esqueceu,
entretanto?
- Nunca soube.
Apanhei pancadaria quando era miúdo porque isso era uma das coisas principais,
nas escolas. E davam reguadas! Os outros todos saíam da aula e eu ficava mais
uma hora a apanhar. Na-na-na-na-na-na... Pumba, apanhava. Nunca fui capaz de
aprender.
Diz com um certo orgulho.
- Sim, sim, com
muito orgulho. E com orgulho porque acho que é uma coisa absolutamente
desnecessária.
O quê, fazer contas?
- Fazer contas!
Fiz a minha vida sem fazer contas e não morri à fome. Quer dizer, é estranho.
Eu próprio me espanto imenso, como é que foi possível. Mas estou aqui, você vê:
isto não é propriamente uma barraca! Não, pelo contrario: é uma excelente casa,
no centro de Lisboa...
- É engraçado, não é?
Não sei como é que
isso foi.
Alguém lhe fez as contas?
- Não, não. Nunca.
Não teve contabilista a zelar pelas suas
contas?
- Não. Esses só
aparecem para roubar. Isso é muito perigoso. Mas a minha experiência foi esta.
Mais: posso dizer-lhe que sou das poucas pessoas em Portugal que não recebeu
herança nenhuma. Os meus pais deixaram-me dívidas. Quer dizer, eu não tinha
nada, nada, nada. Tinha-me a mim, apenas. E com a grande dificuldade de não ter
vontade nenhuma de ser um pintor a sério.
Faz até questão de dizer que nunca foi
profissional das artes, profissional da pintura.
- Nunca.
Felizmente não. Isso era horrível.
Mas foi da pintura que viveu a vida toda
ou não?
- Não. Durante
anos e anos - e era esse o meu projeto de vida mas, depois, as coisas tomaram
outro caminho - vivi de empregos. Tinha empregos sempre o mais baixos possível.
Empregos de que tipo?
- Olhe, em África
trabalhei em seguros, fiz publicidade de uma empresa de cervejas. Sabe como
era? É engraçado. Realmente, o que eu queria era andar pelo interior de
África. Luanda não me interessava. O que me apaixonava era, realmente, o
interior. A aventura. Não havia estradas. Portanto, tudo o que acontecia era
com umas campanas velhas, com lama, com areia, com rios sem pontes, a passar em
jangadas que eram arrastadas pelas chuvas e que desapareciam... Tudo isso, toda
essa cobóiada.
Privilegiou sempre a Liberdade ao
bem-estar?
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André Breton por Man Ray, 1935.
foto em chagalov.tumblr.com |
- Sim. E acho que
soube tirar partido desse mal-estar. Aqui há tempos dizia que, se o Breton, o
pai do surrealismo, cá voltasse, cairia para o lado de espanto por ver o que se
faz hoje da Liberdade.
Um espanto satisfeito ou
insatisfeito?
- Acho que
insatisfeito. E muito decepcionado, com certeza. O mau uso que hoje se faz da
liberdade é uma coisa que a mim também me decepciona muito.
A que uso da Liberdade é que se
refere?
- A todos. Eu, que
não sou com certeza um moralista, acho que este caminho que a liberdade deu à
moral está completamente errado.
Não é um contra-senso prescrever
quais são os bons e os maus usos da liberdade: isso não será uma forma já
de a pôr em causa?
- Pois, quer
dizer, eu não lhe vou contar pelos dedos quais são as coisas e apontá-las...
Mas pode dar-me um exemplo.
- Acho que uma
certa loucura que há hoje... Nós vemos, por exemplo, a nível da política: isto
é uma vergonha. Acho que hoje há um grande fracasso no mundo. Um dramático
fracasso que, de uma maneira geral, as pessoas estão a pagar caro e,
particularmente, aqui em Portugal que é um país com pouca força, sem dinheiro.
Não vemos, em absoluto, o que vai acontecer amanhã. As coisas só tendem a
piorar.
Teme o futuro?
- Eu já não tenho
futuro. O meu futuro é o cemitério. Com oitenta e quatro anos já não há
futuro. Agora, gostava de me ir embora com uma visão melhor das coisas e do
mundo. Do amanhã. E isso é muito difícil.
Não viu as coisas melhorarem, apesar de
ter vivido uma época de dificuldades em termos sociais, de repressão, uma época
em que não existia a Liberdade que há hoje?
- Entre as duas
liberdades, a outra era muito doente, esta é doentinha. Se corresponde ao meu
ideal e ao ideal de um Breton e dessa gente? Também não.
Defina-me o seu Ideal.
- O meu ideal!?
Coisa complicada. É muito difícil. Mas digo-lhe que ele assenta,
principalmente, na liberdade. A liberdade das pessoas. A liberdade do indivíduo
é, realmente, a coisa mais bonita. Arranjarmos maneira de, todos os dias,
termos consciência de que ultrapassámos as barreiras que nos queriam pôr. Se
estivermos no labirinto, que conseguimos sair do labirinto. Que pusemos, pelo
menos, um pé de fora. Isso é realmente o principal.
Que herança, para lá da herança artística,
lhe parece que o surrealismo terá deixado?
- É essa. O
espírito de liberdade e a possibilidade de entendimento. Essa possibilidade do
surrealismo vem de imensas coisas. Por exemplo, dos jogos que eles faziam uns
com os outros.
Diz eles, não diz nós.
- Eles, os grandes
surrealistas, os que inventaram a coisa. Quer dizer, o grupo do Breton, que
surgiu logo após a guerra de 14. Eram gente genial que ainda não foi
substituída.
Acontece que a palavra surrealismo, o
adjectivo surrealista entrou na linguagem comum como sinónimo de
disparate, de coisa sem pés nem cabeça. Incomoda-o esta vulgarização do
termo?
- Incomoda-me só
deste ponto de vista: as pessoas, realmente, mostram ser incultas. Se tivessem
o mínimo de cultura sabiam que o surrealismo era uma filosofia e não um sinónimo
de disparate. E, depois, é gente na Assembleia da República, são ministros que
usam o surrealismo como se fosse sinónimo de loucura. Ora, se forem ao
dicionário não está lá como sinónimo de loucura. Em todos os dicionários está
uma explicação do surrealismo como sendo um movimento intelectual. E dos mais
extraordinários que o nosso século teve.
Já uma vez disse que nunca lhe interessou
ser um intelectual ou um artista. O que é que desejou ser então?
- Um homem. Acho
que é a coisa mais difícil de todas. E a mais apaixonante. Ser uma pessoa,
um ser humano.
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Homenagem a António Maria Lisboa
foto em www.circuloarturbual.com |
Qual era o seu grande sonho de infância?
- Não sei. Acho
que nunca tive sonhos de infância.
Não se recorda de querer ser qualquer
coisa quando fosse grande?
- Não. Contava-se
que o meu avô, quando era pequeno e lhe perguntaram o que é que ele queria ser,
respondeu: bombeiro. Naquele tempo em que as famílias todas, claro, queriam que
os meninos fossem outra coisa, não é? Esta história contou-se sempre.
Não há nenhuma história familiar, dessas,
a seu respeito?
- A meu respeito
não.
Teve uma infância feliz?
- Tive uma mãe e
um pai extraordinários. Sem dinheiro. Nunca havia
dinheiro nenhum lá em casa. Mas realmente com um ambiente de concórdia e de
respeito de uns pelos outros, de respeito por mim e pela minha liberdade. Isto
claro já não é só uma recordação de infância , é uma recordação de
adolescência e por aí fora: os meus pais nunca me perguntaram o que é que eu
queria fazer na vida. Tendo muito interesse por mim. Um interesse de todos os
segundos. Nunca me perguntaram esta coisa que é costume os pais perguntarem:
quando é que casas? quando tens uma namorada?
Nunca lhe perguntaram esse tipo de
coisas?
- Nunca. Nunca,
nunca, nunca. E isso é uma coisa que enche de luz a minha vida. É uma coisa
linda. Acho uma estupidez extraordinária estarem a querer impingir uma mulher
ou um homem a um ser humano. Nunca me fizeram isso.
Continua a tentar guardar uma certa ingenuidade
da infância, Já o disse.
- Eu sou um naïf.
Por opção?
- Por opção.
O que demonstra já uma certa consciência
da ingenuidade, ou seja, um pouco menos de Ingenuidade.
- Sim, você vê
muito bem o problema.
Naïf ou ingénuo é aquele que não se dá
conta de o ser.
- É, claro. Mas
isso é tão difícil. Ainda haverá hoje alguém que seja ingénuo? Já não há.
Ninguém, creio eu.
Porque é que diz ter tentado guardar
sempre a sua ingenuidade com unhas e dentes?
- Olhe, porque
tenho a maior admiração pelas pessoas ingénuas. Claro que a própria pintura
ingénua... Há o caso maravilhoso de um francês que construiu o palais ideal.
Ele era carteiro, andava a pé, fazia quilómetros e quilómetros, fazia uns 70
quilómetros por dia a distribuir correio na província | francesa. E ia guardando
pedras no saco. Para lá levava o correio e para cá trazia pedras bonitas. Com
essas pedras bonitas que trazia construiu um palácio - que ele chamava o
«palais idéale» - que hoje é um monumento de invenção, de imaginação de um
homenzinho qualquer que era simplesmente carteiro numa terrinha de província.
É esse tipo de ingenuidade que o motiva,
que o comove?
- Se eu tivesse de
invejar alguém, invejava esse homem. Quem me dera ter construído aquilo.
Qual é a principal utilidade (para usar
uma palavra muito presente no nosso quotidiano, hoje) que encontra na ingenuidade?
- Não tem
utilidade nenhuma a não ser satisfazer-se a si própria. Uma pessoa ingénua,
hoje, em princípio, só vai ser esmagada pela vida, pelo quotidiano.
Nunca temeu vir a ser esmagado pela vida e
pelo quotidiano ao tentar manter essa dose de ingenuidade?
- É realmente essa
luta que é apaixonante. É como a formiga a fugir da pata do elefante. Claro, o
elefante não sabe que vai pisar a formiga mas a formiga, naturalmente, foge,
esquiva-se e depois ri-se quando o elefante passou: desta livrei-me eu!
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No dia a seguir ao nosso casamento, 1967.
foto em oeiraslocal.blogspot.pt |
Sentiu muitas patas de elefante sobre
si?
- Muitas vezes.
Fui muitas vezes a formiga por baixo do elefante.
Teve uma infância lisboeta...
- Eu, quando era
miúdo, era muito doentinho, muito fraquinho. O médico disse aos meus pais que
eu não ia passar dos sete anos. De maneira que saímos de Lisboa, ou melhor da
Amadora, e formos viver para o Estoril, para S. Pedro do Estoril. Que, nessa
altura, não era chique como é hoje.
Foi uma infância com muita praia.
- A mãe ia todos
os dias comigo para a praia. Tomava banhos de sol e essas coisas todas que
faziam bem, que se dizia que faziam bem aos meninos.
Estava-se pelos anos 20...
- Vinte e poucos,
devia eu ter uns seis anos ou coisa assim.
... que não eram em Portugal os famosos
«roaring twenties", não eram, por cá, «os loucos anos vinte».
- Não, nada.
Lembro-me de um ventinho que passou pela minha mãe, pelas minhas tias, quando
as senhoras cortaram os carrapitos.
Lembra-se disso como uma cena de
liberdade?
- Lembro-me. Era o
cabelo à garçonne. Lembro-me, por exemplo, de uma anedota que vinha nas
revistas. Era daquelas anedotas que ficam mais em desenho do que propriamente em
palavras. Era um homem e uma senhora com o cabelo já cortado à garçoime, como
se dizia, numa cama. Então, a criada entrava no quarto com o tabuleiro do
pequeno-almoço e dizia: qual dos senhores é a senhora? Isto, para a época, era
extraordinário.
Lembra-se disso num desenho?
- Era um desenho
do Stuart Carvalhais.
Quer dizer que os desenhos desde cedo lhe
chamaram a atenção?
- Eram muito
bonitos.
Começou cedo a desenhar?
- Sim. Como não
tinha brinquedos, a minha mãe dava-me papel e lápis. De maneira que era o meu
grande entretenimento. O meu brinquedo principal foi sempre fazer desenhos. Que
eram iguais aos das outras crianças. Não tinham nada de extraordinário.
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Recordação de Lisboa em forma de postal, 1970.
Cruzeiro Seixas. Foto em www.fcm.org.pt |
Não lhe gabaram logo o talento desde
pequenino?
- A mãe gabava
mas...
Em que momento, então, é que começaram a
incentivar-lhe o talento?
- Nunca acreditei
muito nisso, sabe.
Nunca acreditou muito no talento ou no seu
talento?
- Não, nos elogios
das pessoas. Nunca acreditei muito. Claro que passei a tornar isso um bocadinho
a sério quando isso veio, por exemplo, da parte de um Cesariny. Éramos colegas.
Na António Arroio, ainda?
- Na António
Arroio. Fez-se uma grande camaradagem entre nós, tínhamos uns 17,18 anos. E
realmente ele ficava... E depois levava a minha casa outros: o António Maria
Lisboa, o António Domingues... Enfim, essa gente toda. Para verem as
minhas coisas. Eu ficava com uma certa vaidade mas não percebia nada do que
estava a acontecer à minha volta.
O Cruzeiro Seixas foi para a António Arroio
por iniciativa própria ou por incentivo de alguém?
- Como eu fazia os
tais desenhos e os pais não tinham dinheiro para me meter num liceu, acharam
que aquilo era o mais barato. E também como tinha a tal habilidadezinha para o
desenho, talvez conseguisse alguma coisa ali.
Foi lá na António Arroio que conheceu boa
parte desses seus companheiros de percurso surrealista.
- Sim. Lá andava o
Pomar, o Vespeira, lá andava toda a gente.
Quem é que o iniciou nas lides
surrealistas?
- Talvez, em
grande parte, o Cesariny. Era com quem me dava mais. Era o grande camarada.
Era ele o maior conhecedor desse vento
surrealista que estava a chegar cá?
- Sim. Mais tarde,
claro. O Cesariny, quando era jovem, aos vinte e tantos anos, era completamente
apaixonante. Apaixonante e apaixonado. Sempre muito inteligente e muito culto.
Sabia sempre muito mais do que eu.
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Cruzeiro Seixas. Finalidade sem fim, 2004.
Tinta-da-china x Papel. Foto em www.guarda.pt |
Sublinha «quando ele tinha vinte anos».
Quer dizer que, com o tempo, ele foi perdendo esse lado apaixonante?
- Acho que toda a
gente sabe que o nosso relacionamento cessou. De maneira que hoje o que me
chega é através de outros relatos que são sempre tendenciosos: uns dizem uma
coisa, outros dizem outra. Como os que lhe chegam a ele também o são, com
certeza.
Esse relacionamento cessou com
mágoa?
- É triste. Não me
dá alegria nenhuma. Não se percebe. Para além de desentendimentos que
possa haver entre nós - e que são saudáveis, acho eu - o que é bom é que as
pessoas não pensem todas como carneiros.
Desentendimentos de ordem estética ou de
outra ordem?
- De ordem
filosófica. À volta de tudo. À volta da vida de todos os dias, do dia-a-dia.
Mas acho que, realmente, o que é bom é haver desentendimentos. As coisas
ficaram assim e pronto. Agora já não há remédio.
Foi pelo lado dele que se deu esse desentendimento?
- Não. Se calhar
foi por parte dos dois. Se calhar ficámos decepcionados porque, em dada altura,
quando éramos novos, a verdadeira paixão era tão grande, o entendimento era tão
grande que, quando se é novo, se supõe que aquelas coisas vão durar toda a
vida. Depois, começa-se a envelhecer e começa-se a ver que há grandes abismos
entre as pessoas. Que somos completamente diferentes. Claro que a sabedoria
está em saber ultrapassar esses abismos.
Esses abismos entre as pessoas são uma lei
universal?
- Eu creio que
sim. A maior parte das pessoas não sabe ultrapassar esses abismos.
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Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny.
Foto sem data encontrada na net. |
Ainda recorda o primeiro impacto que o
manifesto de Breton lhe provocou?
- Não. Não tenho
memória nenhuma. A minha memória não é nada do género intelectual: o número da
página, saber que no livro tal está isto assim-assim. Não é nada disso. Tudo
fica a fazer parte da minha própria carne.
Mas não se lembra sequer da circunstância
em que o descobriu?
- Lembro-me. Quer
dizer, essas coisas entravam com muita dificuldade dentro de mim porque era nos
anos 40 e, por um lado, não tinha dinheiro para comprar as coisas, para comprar
livros. Por outro lado, as livrarias também estavam muito mal fornecidas. Livros
desses, a PIDE não os deixava chegar cá, de um modo geral. Hoje não se pensa
como tudo isso era difícil. Qualquer coisinha que chegava, nós corríamos os
cafés - Lisboa estava cheia de cafés - a participar uns aos outros, de café em
café.
E ainda tem memória da circunstância em
que, pela primeira vez, tomou contacto com o manifesto surrealista?
- Acho que foi
através do Mário. Do Cesariny, quer dizer. Ele também o tinha conhecido acho
que através do 0'Neill, que tinha trazido de Paris os manifestos do Breton.
Parece-me que é isso.
Uma vez descreveu o André Breton como «a
bruxa que abriu portas». Por que é que lhe chama bruxa?
- Quer dizer, a
bruxa que sabe muita coisa. É nesse sentido, não é no outro sentido do
horrível. Realmente, ele sabia muita coisa. Era um homem que tinha um poder de
adivinhação e uma sensibilidade extraordinárias. Poucas pessoas conhecemos no
mundo com uma sensibilidade tão grande e tão autêntica para a pintura.
Mas depois aquilo também se tornou uma
ortodoxia, a certa altura.
- Eu acho que
quando uma pessoa ama uma coisa cegamente é ortodoxo.
Mas com expulsões e tudo - ou seja
contrariando a ideia de liberdade.
- Fez muitos
disparates, claro. Enganou-se muitas vezes mas toda a gente se engana. Mas
tinha uma coisa espantosa. É que realmente, quando se enganava, sabia voltar
atrás - um ano ou dois, ou meses depois - e emendar. Aqui é muito mais difícil.
As pessoas não sabem fazer isso.
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Cruzeiro Seixas Auto-retrato, 1975.
Foto em www.guarda.pt |
Aqui em Portugal?
- Aqui em Portugal
tudo é muito difícil.
Considera Breton um génio, claro.
- Sim. Toda aquela
geração. É isso que nos falta hoje, sabe.
O génio?
- Em absoluto. A
todos os níveis.
O que é que define o génio?
- Isso é muito difícil.
Naturalmente, é aquele que nos espanta por aquilo que faz e que diz. Que é
completamente diferente daquilo que estava antes dele. E depois, que isso que
ele diz e que faz não seja apenas uma gracinha para nos espantar. Que seja, realmente,
uma coisa que vá tocar e interessar a todos os homens de uma maneira geral.
Disse uma vez: «é pelos olhos que quase
tudo penetra em mim». Dá mais importância à sua obra plástica do que à sua obra
escrita?
- Ora aí está uma
pergunta que não me tinha ocorrido. Eu creio que sim.
Pergunto-lhe isto porque o sentido mais
forte associado à poesia não é o da visão.
- Pois. Eu creio
que as coisas se encontram, sabe. Na minha poesia há muita arte plástica, se
quiser, e naquilo que se considera arte plástica há muito da minha poesia
escrita. As imagens dão saltos de uma coisa para a outra. Para mim é tudo
a mesma coisa.
Já houve até alguém que disse que a
pintura é poesia muda.
- Sim, isso é uma
frase que está dita por muita gente. Aliás, também entre essa gente genial
houve imensos que não se sabe bem ao certo se foram poetas se foram pintores.
No seu caso também as duas coisas se
misturam.
- Acho que sim.
Acho que é a mesma coisa, ao fim e ao resto. É o caso de um Henri Michaux, por
exemplo, que fez poesia tão boa como fez boa pintura. Sem ser um pintor. O que
há em mim que considero quase a minha coroa de glória é realmente não ter
andado em escolas superiores. Não saber desenhar. Ter uma inabilidade natural.
Inabilidade?!
- Uma inabilidade
natural para o desenho e para essas coisas todas. Chumbei durante três anos em
desenho, na António Arroio. De maneira que é muito engraçado! Durante três anos
com notas negativas: cincos e seis.
Então e aquele talento de infância que o levou
para a António Arroio foi contrariado pelos professores?
- Sim. Os
professores eram ainda mestres, com laçarotes e com pera. Ainda com todo aquele
aspecto que era próprio do artista. O artista tinha que ser diferente. Hoje,
também há outros. Só que é completamente diferente: as grandes cabeleiras, o
andar quase que em farrapos. Também há essas coisas que distinguem as pessoas.
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Cruzeiro Seixas - A Grande Refeição, 1972.
foto em ofuncionariocansado.blogspot.pt |
E, no seu caso, nunca quis distinguir-se
por nenhum desses adereços de artista?
- Não. Não estou
nada interessado. Acho uma boa idiotice as pessoas usarem esses estratagemas.
Acho pouco honesto. O andar com os sapatos desapertados ou com as orelhas sujas
ou a fumar muito... Quer dizer, há pessoas que se agarram a pequeníssimas
coisas: falar muito baixinho ou falar muito alto. Coisas que, para mim,
realmente, são desconsoladoras. São tristes.
Pergunto-lhe se dá mais importância à obra
plástica do que à poesia porque os seus poemas estiveram muito tempo
escondidos. Porquê?
- Só no ano
passado é que começaram a ser editados. E foi uma editora que se ofereceu.
Nunca pedi nada a ninguém. Foi uma amiga minha que vive em Paris, a Isabel
Meyrelles, que se encarregou de pôr ordem aos milhentos poemas que estavam
todos a monte dentro de gavetas.
Porque é que os escondeu durante tanto
tempo?
- Porque julgava
que não tinham interesse nenhum. Tinha havido um vago interesse do Cesariny,
quando éramos muito novos, e que tinha cessado. Foi, depois, a Isabel Meyrelles
que se interessou e que deu a ordem àquela papelada toda que eu nunca seria
capaz de lhe dar. Já saíram três volumes, grossíssimos, e ainda está mais um
para sair. Coisa que me espanta imenso.
Não sabia que tinha escrito tanto?
- Quando recebi
aquele volume pus-me a olhar para aquilo e a pensar, não tenho a menor recordação
de estar sentado a uma mesa a escrever poesia. Não me lembro de ter feito nada
daquilo. Claro que, se leio os poemas, encontro num e noutro alguma coisa que
me vem à memória. Agora, a maior parte são surpresa mesmo para mim. Quase
podiam ser de outra pessoa.
Quais são os seus versos que melhor o
retratam?
- Por muito
impossível que lhe pareça, não sei um único verso meu de cor. E isto também não
é tão impossível como isso porque, por exemplo, da poesia do Cesariny, que foi
feita quase toda ao meu lado, eu também não sei versos de cor. Ou sei duas
coisas muito antigas e que, possivelmente, ele até já esqueceu.
Por que é que põe datas fictícias nos seus
poemas?
- É para
transtornar o caminho aos académicos.
Cruzeiro Seixas, sem titulo, 1960. Foto em saomamede.com e
Cruzeiro Seixas. Sonho, 2001. Foto em divasecontrabaixos.blogspot.pt
Deliberadamente?
- Deliberadamente.
Fazê-los tropeçar e nunca escreverem um estudo sobre mim a dizer na época tal
ele fazia não sei que mais.
Quer dizer, baralhou os papéis todos para
aquilo sair com uma ordem que não tem nada a ver com a ordem pela qual os
poemas foram escritos.
- Nada. Que eles
não possam fazer isso. Ou se fizerem têm de ter muito trabalho. Mas realmente
não estou nada interessado nesses estudos.
Grande parte dos seus poemas tem como
legenda «África» ou «Áfricas» e depois, à frente, o ano. É só a data que é
fictícia ou também, nalguns casos, a indicação da origem?
- O ano é sempre
fictício. «África» poucas vezes aparece. Aparece muito mais «Áfricas». E
Áfricas era realmente um jogo. Eu tinha a consciência de que Africa era um
sitio de grande infelicidade e de grande horror. Desde as Descobertas que
aquela gente era escravizada. Depois, quando o colonialismo assentou bases,
continuavam a ser escravizados e depois da liberdade viu-se a desgraça que
aquilo tem sido. Vendo tudo isso e tendo o conhecimento das minhas próprias
desgraças, eu realmente ligava as coisas e a «Áfricas». Era a África África e a
minha própria África. Aquela que vive dentro de mim.
As suas desgraças pessoais, também?
- Sim. Comparo-me,
de certa maneira, a África. Porque a liberdade é sempre insuficiente. É sempre
pouca.
Há poemas onde coloca essa designação,
Áfricas, que podem ter sido escritos aqui em Lisboa, na Europa?
- Alguns já foram
escritos aqui. Mas África continua dentro de mim. Por paixão, também.
Por que é se veio embora ao fim de 14 anos
em Angola?
- Foi a guerra. E
quiseram-me meter uma arma na mão para eu combater.
O Exército quis mobilizá-lo?
- Não era o
Exército. Era a própria população branca que estava aterrorizada - e tinha
razão - e fizeram-se milícias que defendiam Luanda. Essas milícias eram
senhores doutores, senhores engenheiros, pais de família, mas matavam tudo
quanto mexia.
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Anuncio da galeria São Mamede em 1972.
Exposição de Cruzeiro Seixas entre outros. |
Isso em que ano: em 64?
- Eu para datas
sou muito mau. Vim-me embora, mais ou menos um ano depois daquilo ter começado.
Quando vi que não podia fugir a ser mobilizado numa dessas milícias. Era
insuportável.
Ainda chegou a pegar em armas?
- Não. Neguei-me
desde logo.
Quando partiu para África, em 1950, já
saiu de Lisboa com um destino definido?
- Ia com o destino
de ficar lá para sempre.
A meta já era Angola, logo à
partida?
- Era África toda.
Toda a África me parecia apaixonante.
Saiu de Portugal como marinheiro.
- Sim. Não tinha
ganha-pão e não tinha dinheiro para viajar. Apareceu uma pessoa no mesmo prédio
onde nós morávamos - eu morava com os meus pais - que era da Companhia Nacional
de Navegação. Um dia encontrei-o na escada e pedi-lhe se me arranjava um
emprego lá na Companhia. Ele disse: sim, senhor, vá lá. E pronto.
Andou muito tempo embarcado?
- Andei quase dois
anos. Foi uma coisa realmente muito interessante por toda a aprendizagem. Bem
distante daquilo em que eu tinha sido educado pelos meus pais. Era uma vida
muito dura. Mas para além disso tudo tive a oportunidade de conhecer todas as
colónias portuguesas ainda com ligações a Portugal: a Índia, Macau, Timor. Tudo
isso. O que era realmente a revelação da loucura daqueles tipos que tinham
chegado ali nos anos das Descobertas.
Já era surrealista quando se fez ao
mar?
- Sim. A minha
visão foi sempre, ao meu nível, tanto quanto possível, surrealista.
Essa viagem, a aventura, adensou esse lado
surrealista?
- Ficou para
sempre ligada a mim. Há qualquer coisa que eu sentirei sempre, enquanto viver,
que falta fazer em Goa. Essa coisa seria algo que estava ligado à nossa
permanência aqui e ao surrealismo. Não sei como é. Claro que era algo
completamente impossível de realizar. E continua a ser. Cada vez mais. Mas há
qualquer coisa para ali, naquele lado, que me continua a atrair.
A sua vida foi sempre assim, ao sabor do improviso?
- Sim.
Completamente. Sei sempre vagamente o que vai acontecer amanhã.
Já disse uma vez que foi uma vida, toda
ela, «um disparate». Em que sentido é que o diz?
- Disparate porque
fiz muito poucas das coisas que as outras pessoas fazem todos os dias. Apenas o
que é absolutamente necessário para subsistir. Foi muito complicado, sabe.
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Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique Leiria, Natália Correia e
Mário Cesariny. Foto sem data, (talvez do fim dos anos 70,
M. Henrique Leiria faleceu em 1980) encontrada na net. |
Há alguma coisa de que se arrependa?
- Naturalmente não
fui sempre, tanto quanto possível, amante, próximo, das pessoas de quem o devia
ter sido. Nessa perspectiva vejo que errei, às vezes. Quem me dera que não
tivesse acontecido. Aconteceu com certeza algumas vezes.
Hoje diz que se sente ofendido, é a
expressão que usa, pelos seus próprios sinais de velhice. É-lhe difícil aceitar
a idade?
- Muito. Acho que
é uma coisa horrível. Não há nada a fazer, mas realmente é revoltante
envelhecer e sentirmos que já não temos a mesma força para resolver os
problemas. Felizmente, julgo que ainda estou lúcido. Deixar de ficar lúcido é
uma coisa que me mete um medo atroz.
Como é que encara a ideia de morte?
- Agora, nesta
altura e a qualquer momento em que este estado se agrave, acho que é um alívio.
Desejava-a imenso. Mas ainda estou vivo e ainda tenho que me mexer como um
tipo que está vivo, claro. Mas já estou meio como a formiga pisada pelo tal
elefante. Só uma parte de mim a remexer. Há muita coisa que já pertence à
História, que já não me pertence a mim. Por exemplo, o viajar. Amar nós nunca
nos cansamos de amar, não é? E isso realmente é uma coisa de que se tem muita
saudade quando se chega a velho. Pelo menos no meu caso. Mas as coisas não
podem ser como nós queremos, claro.
É um homem desencantado, de alguma
forma?
- A vida tem duas
partes iguais. Há uma que é realmente apaixonante e outra que é decepcionante.
O desencanto também é muito forte. E, claro, numa vida vivida intensamente há
as duas partes muito intensas, também.
Qual foi o maior encanto que viveu ao longo
da sua vida já de 84 anos?
- Bom, eu sou um
apaixonado pela pintura. Mas também recordações de amor pessoas que amei, duas
ou três pessoas extraordinárias que não esqueço mais. O encontro, o coup de
foudre, como dizem os franceses. Aquela coisa espantosa que é encontrarmos uma
pessoa, cruzarmos o olhar e, daí a bocado, estarmos na cama, por exemplo, como
acontecia na Lisboa de aqui há uns anos. Isso são coisas muito bonitas. Quer
dizer, há tanta coisa admirável. A Natureza. Ou quando entramos num museu
e vemos coisas como a «Vitória de Samotrácia», por aí fora. Coisas que nos
fazem perder a cabeça. Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos
cansamos de fazer amor. Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas.
(Entrevista de Carlos Vaz Marques a Cruzeiro Seixas para o Diário de Notícias em 1 de Abril de 2005)
Cruzeiro Seixas. Foto encontrada na net.
A Vitória de Samotrácia em fotos de Dmitri Kessel (1950) e Gjon Mili (1962) da LIFE Archive.
"Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos cansamos de fazer amor.
Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas."
(Cruzeiro Seixas)