Outras Loiças

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A irmã do FP

"Não sei o que o amanhã trará"

(Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa, com 16 anos, com a família em Durban, África do Sul. Da esquerda para a direita: Mãe, João Maria*, Fernando Pessoa, Henriqueta Madalena*, Luís Miguel*, João Miguel Rosa (padrasto). * meios-irmãos. Foto de www.prof2000.pt


Coisas boas em jornais


Entrevista a Henriqueta Madalena, irmã de Fernando Pessoa no Jornal de Letras em 26-11-1985.



 Fernando Pessoa nas paredes para todos. Fotos encontradas na net.





POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


"Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria." (Fernando Pessoa). Foto de luardejaneiro.blogs.sapo.pt






quarta-feira, 30 de maio de 2012

Stuart de Carvalhais, A vida sem rede

«A distância em relação ao poder é a escola mais importante de Stuart .»
(António, Cartonista em Jornal de Letras, 28-08-89)


Stuart de Carvalhais (1887-1961)


José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais, mais conhecido por Stuart de Carvalhais, foi um pintor, e autor de banda desenhada. É considerado o pai da banda desenhada em Portugal. Para além de divertir o público com os desenhos que apareciam nos jornais, revistas ou livros, quem com ele privou é unânime em afirmar que na vida pessoal sempre foi uma pessoa de trato muito divertido, sendo mais que muitas as anedotas reais que se passaram consigo. Apesar de grande parte do meio intelectual do seu tempo o olhar com desdém, o grande escritor que foi Aquilino Ribeiro definiu-o na perfeição: "O grande e pobre Stuart". (In, infopedia.pt)

Coisas boas em jornais


STUART, A vida sem rede
por
Fernando Assis Pacheco


Stuart de Carvalhais.
Contam-se por milhares os seus cartoons, sabe-se lá quantos perdidos para todo o sempre. Stuart de Carvalhais executava-os à medida das, encomendas e à cadência das necessidades próprias, mas um dia desabafou para Aquilino Ribeiro: «Há dezoito anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos...»

Filho de um engenheiro agrónomo e de uma senhora de ascendência escocesa, ambos transmontanos, José Herculano Torrie Suta rt d'Almeida Carvalhais nasce em 07.03.1887 na cidade de Vila Real, de onde, muito pequeno, o pai o leva para Zalamea la Real, província do Huelva, ao ser ali colocado nas minas de Rio Tinto. Aprende então Espanhol e mistura-o generosamente com o Português enquanto aprende as primeiras letras.
Aos seis anos a família regressa a Portugal: Alenquer, mais tarde Montemor-o-Novo e Lisboa. José Herculano faz parte do curso dos liceus em Évora, apanhando um irónico chumbo em Desenho.
Lisboa, para onde os Carvalhais vêm em 1901 — o pai contratado pelo Museu Etnográfico na qualidade de colector-preparador, por empenho de Leite de Vasconcelos —, não parece vê-lo melhorar por aí além quanto aos estudos. A mãe ainda alimenta o sonho de vê-lo cursar Belas Artes. Em vez disso entra para o atelier de Jorge Colaço e inicia-se na técnica do azulejo, ganhando como aprendiz 5$00 por metro quadrado. (Ao azulejo voltará em 1921, com Francisco Valença, para decorar a escadaria do Diário de Lisboa.)

É Colaço que o inicia na ilustração e na caricatura, acompanhando-lhe os primeiros passos, a estreia absoluta no Tiro e Sport logo seguida de uma colaboração regular n'O Século Cómico, em 1906. Até 1913, ano da partida para Paris, Stuart faz a mão em tudo quanto é publicação de humor, dirigindo mesmo uma folha, A Sátira (1911). Também experimenta ser clown, com o nome artístico de Mr. Billot, no Palácio Foz, então um local muito in da Lisboa Alegre. E torna-se habitué do teatro de revista. Da fama de Don Juan não se livra: traz uma girl por conta, ou vice-versa, que é ainda mais gratificante.
Evitemos a minúcia biográfica, mais próxima de uma obra de fundo como Crónicas d'um Stuart, de Osvaldo de Sousa, edição recente (Dom Quixote). Mas 1913 merece algumas linhas largas.
«Usava os cabelos soltos ao vento, um rolo de papéis debaixo do braço...», «contará a Vasco Callixto. «E um desejo imenso de visitar Paris...» A oportunidade surge-lhe à conversa com Carlos Franco, José Pacheko e Valentim Talone, no Café Martinho. Entre o «queres vir?» e o «vou!» é um sopro, do Rossio à Gare d'Austerlitz correm 34 horas zebradas — o verbo vai estar na moda — de ânsia e premonição de triunfo. Entre as redacções, claro. E uma delas promoverá mesmo Stuart a vedeta. Título, Ruy Blas.


"Lisboa numa roda só:  aí vai Stuart de Carvalhais empurrado 
rua fora, nos tempos em que viver era formidável".

A experiência parisiense do exdiscípulo de Jorge Colaço tem essa vertente profissional séria, em que ele multiplica as colaborações por várias revistas e jornais de humor, ao mesmo tempo que apura o traço na boa escola de Gousbofa e Poulbot, como diz João Abel Manta; e o lado boémio, de adolescente retardado, bebendo mais do que a conta e, confissão ou hipérbole, fazendo pé de alferes às beldades do bairro, entre as quais uma empregada doméstica com que se terá tomado de amores. Pobre ingénua Louise. Uma vez o português mostra-lhe um postal com a Torre de Belém. (Et c'est quoi?), pergunta a rapariga abrindo muito os olhos. «Le palais de ma famille!», diz Stuart .
Louise, aliás Louisette, haveria desempenhado um papel importante no contrato do Ruy Blas, isto segundo uma das versões do artista, que também avançará com uma outra não coincidente. Pecha bastante sua: o passado retocado. A versão Louisette é digna de romance, incluindo um encontro com a mulher de um cabeleireiro que arranja a coiffure da mulher do director do Ruy Blas... Impagável. Mas, como quer que seja, o todo-poderoso Muller, director da revista, gosta de Stuart e propõe-lhe 500 francos por mês, sob exclusivo.


"Quatro tipos de Lisboa apanhados em flagrante nos bairros pobres, às vezes
Stuart limitava-se a usr um pau de fósforo para dar vida às suas personagens"

Todavia esta cláusula leonina não existe no seu mundo, é uma violência inaudita para quem se vê assoberbado com pedidos de colaboração, tentado por ofertas em metal sonante. Ei-lo a mandar desenhos e caricaturas para Le Journal, Cri de Paris, Le Sourire, L'Assiette au Beurre, Pel-Mel, Pages Folies, a coberto de pseudónimos que não funcionam diante da evidência do traço. Crê-se, de resto, que terá pesado na decisão de voltar para Lisboa uma presumível ameaça de processo judicial: Muller deu à casca, reclama a pele de Stuart. Ou foi para fugir a um outro perigo, o da mobilização? Os estrangeiros residentes em França não estavam a salvo do Distrito de Recrutamento, e disso falou insistentemente o português para se limpar do regresso precipitado, em 1914.
Reinaldo Ferreira, o Repórter X das manchetes, ouvi-lo-á lamentar que foi «maluco em vir embora». Por cá a glória não excede as participações nos Salões dos Humoristas (1912, 1913) e a estima dos seus pares, a vida sem rede abre novo capítulo: aí está ele casado com D. Fausta Moreira, que lhe dará o filho único, Raul, prometido também a uma carreira de desenhador, mas não na faixa humorística. Lisboa. Uma paixão, uma cisma, um deambular entre a gente modesta que lhe vale meia dúzia de tipos (a varina, o guarda do chanfalho, a cocotte barata, a megera do carrapito, o ardina, o amigo, do briol) repetidos até à exaustão.

"O outro Stuart, artista «tout court», sem
necessidade de legenda, fez uma única
exposição (de pintura) nos anos 30"
Vinte e seis anos depois da morte, como o vê o cartoonista Vasco, também vila-realense, também com Paris às costas — mais longo, por motivo diferente?
«Era um galeriano como o Camilo. Nas condições concretas da Lisboa do seu tempo, deu-se à preguiça, mas de qualquer maneira comia do que trabalhava. E tem um prestígio ingrato: alcoólico, boémio, artista à portuguesa. Parece que era um tipo de uma grande bondade, coisa má nesta terra. Artisticamente facilitou, mas era um poderossímo talento
Vasco acha que não houve apenas um Stuart, sim vários. E desses vários preza muito especialmente «o anarquista», colaborador d'A Batalha.
«O Stuart de que falo aqui vem na tradição de Goya e Daumier: o desenho satírico de 'combate', o estilo forte e agressivo. Mais tarde, vítima das circunstâncias, vai cair no pitoresco e no picaresco, que é um equívoco nesta galáxia do desenho de humor
Dói-lhe «a vida frustrada» do conterrâneo, o adivinhar que ele talvez não tenha sido levado a sério no seu tempo. «Coitado do Stuart, a vender bonecos pelas redacções. Agora não pode ser, passe mais logo... Tudo isso não era nada nobilitante.» Para Vasco este «andar à trincha» foi a pior fase de Stuart.

Mas antes disse ele faz nome, cria imagem, poisa um decidido pé no cimento fresco do átrio da fama. É o desenhador da moda, o cartoonista requestado, e mais ainda pela facilidade do traço, a rapidez, a bonomia (não faz exigências, acomoda-se ao que há). Na falta de outro material usa um pau de fósforo aparado, ou o pincel careca, de dois pelos, que molha no seu frasquinho de nanquim. Se necessário usa também graxa. E papel qualquer serve. Não havendo branco, vá uma demão de guache. Colaborou n’A Batalha? Ora, e os desenhos para o Papagaio Real monárquico saudosista? Depois, é certo, chegou a chamuscar o coiro no 7 de Fevereiro (de 1927), conforme depoimento inquestionável de Aquilino, a quem teria pedido «uma espingardinha» para o que desse e viesse. Em 1934, porém, já está às sopas da Câmara Municipal de Lisboa (cartazes para as festas da cidade), em 1937 ilustra um escrito macaco editado pelo SNI, Le peuple portugais et ses caractéristiques sociales, de Francisco Casanova. «Não passo de um fabricante de desenhos...»
José-Augusto França, a propósito: «O seu lápis não tinha ideologias». (Mas quem o conheceu, mesmo nos piores anos, garante uma coisa: Stuart não era homem para andar com Salazar ao peito. Sabia-lhe a vinho martelado?)
Recapitulemos. Sobre desenhador de humor, o vila-realense pode ser considerado pioneiro da Banda Desenhada; mesmo a nível mundial não houve muita gente de qualidade antes dele, poderia fazer-se a prova traduzindo algumas tiras, aí estão as Aventuras de Quim e Manecas, em 1915, n'O Século, que igualmente passarão ao cinema em realização sua.
"Quim e Manecas, a banda desenhada de 1915, faz
de Stuart um pioneiro no género"
Ao mesmo tempo é o cartazista, o capista de partituras musicais duas vezes premiado no estrangeiro, o cenógrafo e figurinista de teatro, o decorador (d'A Brasileira, do Bristol Clube, do I Salão de Outono de Elegância Feminina, mas também da Feira Popular, a convite de Leitão de Barros), o desenhador de selos para os CTT, enfim o pintor — escasso, tímido, com uma exposição individual em 1932, na Casa da Imprensa. É amigo de Abel Manta, de Botelho e outros artistas sediados n'A Brasileira, mas a título individual, não do grupo em si, com o qual se sente pouco à vontade. O seu território: Bairro Alto, Camões, orografia do zinco.
António dá-o como sendo a ponte entre a geração de desenhadores de humor do fim da I República e os do pós-25 de Abril, José de Lemos atribui-lhe dimensão europeia, Baltazar diz que ele «marcou várias gerações como personagem e como cidadão» (inquérito de António Valdemar in Diário de Notícias, 2.3.1986).
Que intervenção foi a sua? Mais através da ironia do que da sátira, embora em cartoons da primeira fase atinja um alto grau de agressividade. Depois, implantada a censura estadonovista, volta e meia tenta o drible em habilidade, mas há notícias (do Sempre Fixe) de que o lápis azul o não deixa preopinar além do tacitamente estipulado. Nos dias de azebre Botelho vinga-o com o célebre mocho Piu, sinal de que um alferes lateiro de má morte cortou a eito nos bonecos. Com o andar dos anos perde gás e perde graça, tipifica, estiliza, cede à facilidade do improviso. A terra é madrasta, o génio pessoal displicente.

Quem o não ler com vagar — vagar e simpatia — arrisca-se a tropeçar apenas no boémio. Mas para tanto é necessário ir às bibliotecas e às hemerotecas, folhear A Sátira, O Século, O Século Cómico, o Papagaio Real, A Situação, o ABC, o ABC a Rir, o ABCzinho, o Sportsinho, Os Ridículos, A Ilustração, o Magazine Bertrand, o Diário Popular, o Fixe, o Diário de Notícias, Ó Picapau, o Cara Alegre, passos achados e perdidos da sua paixão.
« Stuart não era um alcoólico, mas era o mais simpático dos bêbados que conheci e o mais autêntico e abandonado dos artistas», defende Thomaz de Mello (Tom) no inquérito do Diário de Notícias.
Fará, não obstante, curas de desintoxicacão alcoólica, a primeira quando tem 39 de idade. E é um facto que grande parte dos testemunhos dos seus contemporâneos refere explícita ou implicitamente esse feitio laxista e dissipador.
As histórias de Stuart são como as cerejas. Encomendam-lhe um boneco urgente, fecham-lhe a porta da saleta à chave: na fase em que anda, costuma pirar-se e ir ao tinto. Inútil, quando o chefe de redacção volta: está a saleta vazia, e o papel em branco. Ou muda de casa, para um modesto piso . desguarnecido de móveis, e como não tem despensa trata de desenhar presuntos e salpicões numa parede. Ou quer fazer ,- diz — uma exposição, procura um amigo a quem pede trabalhos seus, depois vende-os, o amigo refila, «Bolas, mas eu tinha-te comprado os bonecos!», e ele escarninho, sonso, «Ah sim? E para que é que tu querias essa merda ?»
Lopo Lauer, empresário de teatro, justa com Stuart a confecção de um pano de fundo para um quadro musical no Eden. Dá-lhe o material preciso e diz-lhe que pode ir a um restaurante próximo - basta pôr na conta. O artista deixa sair Lauer, corre à sala de mesa, deita abaixo uma lautíssima ceia e entorna-se. Quando reentra no Éden, tem uma náusea e vomita sobre a tela que está a pintar. Lauer, que o espreitava do balcão, viu a cena, irrita-se, arrepela-se. «Tudo perdido!, i Não está: disfarçando as manchas de vinho num cenário roxo, Stuart salva a estreia do espectáculo. Bate as casas de penhores, as redacções, os amigos endinheirados. quando lhe surge á oportunidade de fazer qualquer coisa na Feira Popular, onde tem Leitão de Barros e José André dos Santos a abençoa-lo, inventa uma barraca para ler a sina: é a Bruxa, uma moscambilha do alto coturno. Muitas histórias suas abonam a falta de senso comum, mas perguntar se em mais de uma ocasião não terá sido desfrutado. É a vida sem rede, a dez metros de angústia sobre a pista.
João Abel Manta, que põe reservas a grande parte da obra gráfica de Stuart, filia o seu estilo em Gousbofa, admitindo que os vagabundos e os piteireiros do português descendam dos clochards do francês Estes vegetam sous les pouts, aqueles empinam copos de dois ou enxotam moscas na Feira das Mercês, excursão anual do' desenhador. Por outro lado, diz Manta, os Quins,'os Manecas e outros miúdos da galeria stuartiana evocariam Poulbot e o seu Poil de Garotte. «Era um intuitivo que nunca teve grande preparação técnica. A coisa mais gira dele e a sua forma de tratar o pretò e o branco, e o modo como faz os contornos. O seu preto e branco seria depois muito usado na Banda Desenhada: por exemplo Hugo Pratt


"Um miligrama de chouriço ou a arte
portuguesa de enganar a malvada"
Compará-lo aos Forain, aos Gousbofa, é trabalho vão. A melhor homenagem que lhe podemos mostrar seria uma exposição de bonecos muito escolhida, da ordem das duas, três centenas. Dar-lhe dignidade implica pôr de lado a produção menor.
Em Junho de 1926, dias depois do golpe, Stuart publica, no Fixe um rápido cartoon figurando a Republica de barrete frígio a tocar tambor. Legenda: «Mortos de pé!... Os vivos estão de cócoras».
Tem para viver ainda 35 anos e um lápis, ou um pau de fósforo. Bem pergunta o talhante ao homem do chapéu: «Então quanto quer de chouriço», E o outro, esquálido «Um miligrama...»



Artigo de Fernando Assis Pacheco em O Jornal 24-07-89
as fotos e as gravuras foram copiadas do próprio jornal.






Alguns exemplos de trabalhos
de Stuart Carvalhais

Outra Faceta do Fado, desenho de Stuart Carvalhais, anos 40




Contam-se por milhares os seus cartoons, sabe-se lá quantos perdidos para todo o sempre. Stuart de Carvalhais executava-os à medida das, encomendas e à cadência das necessidades próprias, mas um dia desabafou para Aquilino Ribeiro: «Há dezoito anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos...»
(Fernando Assis Pacheco em O Jornal, 24-07-87)





(Fotos e desenhos encontrados na net)


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Cruzeiro Seixas

Surrealista?

"até à morte! Isso é uma coisa que não tem cura!"


Coisas boas em jornais

"(...) quando entramos num museu e vemos coisas como a «Vitória de Samotrácia», por aí fora. Coisas que nos fazem perder a cabeça. Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos cansamos de fazer amor. Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas." (Cruzeiro Seixas)


Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita : Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949. Foto de republicadassantasbicicletas.wordpress.com

Uma Grande Grande Grande entrevista a Cruzeiro Seixas



Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas nasceu na Amadora a 3 de Dezembro de 1920. Em 1935, matriculou-se na Escola de Artes Decorativas António Arroio, em Lisboa, onde conheceu, entre outros, Mário Cesariny, Marcelino Vespeira, António Domingues, Fernando José Francisco, Fernando Azevedo e Júlio Pomar. Com estes e outros artistas participou, em 1943, em tertúlias de carácter vanguardista. Depois de uma fase expressionista-neo-realista, as inquietações plásticas e os desejos de libertação estéticos e ideológicos levam Cruzeiro Seixas a abraçar o projecto perfilhado pelo Grupo Surrealista de Lisboa, tornando-se, uma das figuras de referência daquele grupo fundado em 1947. Desde que assumiu os preceitos surrealistas não mais os abandonou, mantendo-se fiel ao onirismo figurativo dessa poética que empregou também em colagens e objectos. Com Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Mário Henriques Leiria, Pedro Com, Fernando José Francisco, Risques Pereira, Fernando Alves dos Santos, Carlos Eurico da Costa, Carlos Calvet e António Paulo Tomás, organiza a Primeira Exposição dos Surrealistas na cidade de Lisboa (Janeiro de 1949, entre a Sé e o Aljube). No ano seguinte, participa na segunda exposição de “Os Surrealistas” (Lisboa, Livraria Francesa) e assina diversos manifestos e folhas volantes. Em 1951, Cruzeiro Seixas alista-se na Marinha Mercante, viaja até à Índia e Extremo Oriente, acabando por se fixar em África, Angola, durante doze anos. Em 1964, com o intensificar da Guerra Colonial, Cruzeiro Seixas vê-se constrangido a regressar à Europa. De volta a Portugal, participa em inúmeras exposições. Na década de 70, participa em inúmeras colectivas do movimento surrealista internacional, principalmente aquelas ligadas ao Grupo Phases (liderado pelo poeta e ensaísta Édouard Jaguer, ao qual havia, entretanto, aderido). Em 1999, doa a totalidade da sua colecção à Fundação Cupertino de Miranda, com vista à constituição de um Centro de Estudos e Museu do Surrealismo. Artista Versátil, explorou, ao longo de décadas, as infinitas poéticas do surrealismo. Animou a renovação da arte portuguesa, propiciando exposições de artistas novos e a divulgação de artistas e movimentos internacionais nas galerias onde colaborou. Actualmente vive e trabalha em Lisboa. (fonte: www.circuloarturbual.com)




Cruzeiro Seixas.
Foto de www.circuloarturbual.com
Ainda é surrealista, Cruzeiro Seixas? 

- Ah, isso até à morte! Isso é uma coisa que não tem cura.

A pergunta, se calhar, devia ser outra: ainda se pode ser surrealista no século XXI? 

- Eu acho que cada vez vai haver mais. E isso é uma coisa que se está a notar aqui em Portugal: de um momento para o outro, houve um interesse súbito pelo surrealismo.

O surrealismo ainda faz sentido como fazia há cinquenta anos? 

- Acho que sim. O surrealismo ainda vai ser descoberto. Ou redescoberto. Foi a maior filosofia - ou uma das maiores, para além do comunismo ou do existencialismo... Mas parece que tem pernas para andar, mais tarde, quando for redescoberta.

Mas pode ser-se surrealista, ainda hoje, como se poderia ser, sei lá!, cubista, Impressionista, gótico (para falar noutras correntes na área das artes plásticas)? 

- Simplesmente, essas correntes, a maior parte delas, tinham um factor que era o mais importante: o estético. O surrealismo tem, além do estético, uma filosofia de vida que é muito importante e que vai mais longe.

Não estamos a falar, portanto, apenas de estilo ou de técnicas artísticas mas de algo mais do que Isso.

- Há muito mais do que isso no surrealismo. O pensamento que está por dentro disso é muito mais importante, até, do que essa própria opção.

Falou de uma filosofia de vida: é o mergulho no Inconsciente? 

- É por aí que nós temos que encontrar o caminho. O caminho do futuro vem por aí, com certeza.

Vem do Inconsciente? 

- Do inconsciente no consciente, evidentemente. Vamos supor, por exemplo, que o Homem se divide em partes iguais: uma delas será inconsciente e a outra consciente. Realmente, temos que admitir, pelo menos, que existem as duas e que são ambas muito importantes.

Explique-me o que é o seu surrealismo. Cruzeiro Seixas? 

- Cada um tem o seu, de facto. É engraçado o modo como você põe essa pergunta. Tenho impressão que cada um faz o seu surrealismo, diferente dos outros.

E o seu...

- O meu é um surrealismo que assenta principalmente numa ideia de liberdade louca.

Louca! 

- Louca. Porque é tanta. E o desejo dela ultrapassa tanto a loucura, mesmo! E depois, posso-me gabar de ter realmente conseguido, de certa maneira, realizar essa loucura...

Viveu-a? 

-... e de tê-la vivido. Acho que sim. Hoje, com 84 anos, tenho já uma visão enorme da vida e posso espantar-me a mim próprio, não é? 

Pela liberdade ou pela loucura? 

- Pela liberdade e pela loucura que meti dentro dela. Consegui! Consegui realmente viver.

O que é que a sua vida teve de mais louco? 

- Bom, para não lhe falar nos amores, esta liberdade que nós sentimos no dia-a-dia. Sermos capazes de passar pelos perigos. Estarmos à beira do abismo e não cairmos nele.

A vertigem atrai? 

- A vertigem atrai imenso. Estive muitas vezes no abismo, enfim, à beira dele, com um pé mesmo nele. Mas sabemos realmente ultrapassar isso.

O que é artístico é conseguir acabar por não cair no abismo.

- Cair não me apetece muito. Realmente é muito bonito mas para isso acho que é preciso ser-se genial. Eu não sou genial. Ou então fica-se um desgraçado que anda a dormir pela rua.

Alguma vez correu esse risco? 

- Eu julguei que era isso que me ia acontecer na vida. Aqui há uns 30,40 anos eu supunha que o meu destino era ser um vadio.

Cruzeiro Seixas. Projecto para um Tejo à nossa medida, 1966
Serigrafia, 15 x 20,5 cm, foto em www.fcm.org.pt
Por desadaptação? 

- Por desadaptação. Por não ter o mínimo jeito para fazer contas, por exemplo. E isso é uma coisa absolutamente necessária. Se me perguntar quanto são sete vezes nove eu não sei 

Nunca chegou a saber ou esqueceu, entretanto? 

- Nunca soube. Apanhei pancadaria quando era miúdo porque isso era uma das coisas principais, nas escolas. E davam reguadas! Os outros todos saíam da aula e eu ficava mais uma hora a apanhar. Na-na-na-na-na-na... Pumba, apanhava. Nunca fui capaz de aprender.

Diz com um certo orgulho.

- Sim, sim, com muito orgulho. E com orgulho porque acho que é uma coisa absolutamente desnecessária.

O quê, fazer contas? 

- Fazer contas! Fiz a minha vida sem fazer contas e não morri à fome. Quer dizer, é estranho. Eu próprio me espanto imenso, como é que foi possível. Mas estou aqui, você vê: isto não é propriamente uma barraca! Não, pelo contrario: é uma excelente casa, no centro de Lisboa...

- É engraçado, não é? 

Não sei como é que isso foi.

Alguém lhe fez as contas? 

- Não, não. Nunca.

Não teve contabilista a zelar pelas suas contas? 

- Não. Esses só aparecem para roubar. Isso é muito perigoso. Mas a minha experiência foi esta. Mais: posso dizer-lhe que sou das poucas pessoas em Portugal que não recebeu herança nenhuma. Os meus pais deixaram-me dívidas. Quer dizer, eu não tinha nada, nada, nada. Tinha-me a mim, apenas. E com a grande dificuldade de não ter vontade nenhuma de ser um pintor a sério.

Faz até questão de dizer que nunca foi profissional das artes, profissional da pintura.

- Nunca. Felizmente não. Isso era horrível.

Mas foi da pintura que viveu a vida toda ou não? 

- Não. Durante anos e anos - e era esse o meu projeto de vida mas, depois, as coisas tomaram outro caminho - vivi de empregos. Tinha empregos sempre o mais baixos possível.

Empregos de que tipo? 

- Olhe, em África trabalhei em seguros, fiz publicidade de uma empresa de cervejas. Sabe como era? É engraçado. Realmente, o que eu queria era andar pelo interior de África. Luanda não me interessava. O que me apaixonava era, realmente, o interior. A aventura. Não havia estradas. Portanto, tudo o que acontecia era com umas campanas velhas, com lama, com areia, com rios sem pontes, a passar em jangadas que eram arrastadas pelas chuvas e que desapareciam... Tudo isso, toda essa cobóiada.

Privilegiou sempre a Liberdade ao bem-estar? 
André Breton por Man Ray, 1935.
foto em chagalov.tumblr.com

- Sim. E acho que soube tirar partido desse mal-estar. Aqui há tempos dizia que, se o Breton, o pai do surrealismo, cá voltasse, cairia para o lado de espanto por ver o que se faz hoje da Liberdade. 

Um espanto satisfeito ou insatisfeito? 

- Acho que insatisfeito. E muito decepcionado, com certeza. O mau uso que hoje se faz da liberdade é uma coisa que a mim também me decepciona muito.

A que uso da Liberdade é que se refere? 

- A todos. Eu, que não sou com certeza um moralista, acho que este caminho que a liberdade deu à moral está completamente errado.

Não é um contra-senso prescrever quais são os bons e os maus usos da liberdade: isso não será uma forma já de a pôr em causa? 

- Pois, quer dizer, eu não lhe vou contar pelos dedos quais são as coisas e apontá-las...

Mas pode dar-me um exemplo.

- Acho que uma certa loucura que há hoje... Nós vemos, por exemplo, a nível da política: isto é uma vergonha. Acho que hoje há um grande fracasso no mundo. Um dramático fracasso que, de uma maneira geral, as pessoas estão a pagar caro e, particularmente, aqui em Portugal que é um país com pouca força, sem dinheiro. Não vemos, em absoluto, o que vai acontecer amanhã. As coisas só tendem a piorar.

Teme o futuro? 

- Eu já não tenho futuro. O meu futuro é o cemitério. Com oitenta e quatro anos já não há futuro. Agora, gostava de me ir embora com uma visão melhor das coisas e do mundo. Do amanhã. E isso é muito difícil.

Não viu as coisas melhorarem, apesar de ter vivido uma época de dificuldades em termos sociais, de repressão, uma época em que não existia a Liberdade que há hoje? 

- Entre as duas liberdades, a outra era muito doente, esta é doentinha. Se corresponde ao meu ideal e ao ideal de um Breton e dessa gente? Também não.

Defina-me o seu Ideal.

- O meu ideal!? Coisa complicada. É muito difícil. Mas digo-lhe que ele assenta, principalmente, na liberdade. A liberdade das pessoas. A liberdade do indivíduo é, realmente, a coisa mais bonita. Arranjarmos maneira de, todos os dias, termos consciência de que ultrapassámos as barreiras que nos queriam pôr. Se estivermos no labirinto, que conseguimos sair do labirinto. Que pusemos, pelo menos, um pé de fora. Isso é realmente o principal.

Que herança, para lá da herança artística, lhe parece que o surrealismo terá deixado? 

- É essa. O espírito de liberdade e a possibilidade de entendimento. Essa possibilidade do surrealismo vem de imensas coisas. Por exemplo, dos jogos que eles faziam uns com os outros.

Diz eles, não diz nós.

- Eles, os grandes surrealistas, os que inventaram a coisa. Quer dizer, o grupo do Breton, que surgiu logo após a guerra de 14. Eram gente genial que ainda não foi substituída.

Acontece que a palavra surrealismo, o adjectivo surrealista entrou na linguagem comum como sinónimo de disparate, de coisa sem pés nem cabeça. Incomoda-o esta vulgarização do termo? 

- Incomoda-me só deste ponto de vista: as pessoas, realmente, mostram ser incultas. Se tivessem o mínimo de cultura sabiam que o surrealismo era uma filosofia e não um sinónimo de disparate. E, depois, é gente na Assembleia da República, são ministros que usam o surrealismo como se fosse sinónimo de loucura. Ora, se forem ao dicionário não está lá como sinónimo de loucura. Em todos os dicionários está uma explicação do surrealismo como sendo um movimento intelectual. E dos mais extraordinários que o nosso século teve.

Já uma vez disse que nunca lhe interessou ser um intelectual ou um artista. O que é que desejou ser então? 

- Um homem. Acho que é a coisa mais difícil de todas. E a mais apaixonante. Ser uma pessoa, um ser humano.

Homenagem a António Maria Lisboa
foto em www.circuloarturbual.com
Qual era o seu grande sonho de infância? 

- Não sei. Acho que nunca tive sonhos de infância.

Não se recorda de querer ser qualquer coisa quando fosse grande? 

- Não. Contava-se que o meu avô, quando era pequeno e lhe perguntaram o que é que ele queria ser, respondeu: bombeiro. Naquele tempo em que as famílias todas, claro, queriam que os meninos fossem outra coisa, não é? Esta história contou-se sempre.

Não há nenhuma história familiar, dessas, a seu respeito? 

- A meu respeito não.

Teve uma infância feliz? 

- Tive uma mãe e um pai extraordinários. Sem dinheiro. Nunca havia dinheiro nenhum lá em casa. Mas realmente com um ambiente de concórdia e de respeito de uns pelos outros, de respeito por mim e pela minha liberdade. Isto claro já não é só uma recordação de  infância , é uma recordação de adolescência e por aí fora: os meus pais nunca me perguntaram o que é que eu queria fazer na vida. Tendo muito interesse por mim. Um interesse de todos os segundos. Nunca me perguntaram esta coisa que é costume os pais perguntarem: quando é que casas? quando tens uma namorada? 

Nunca lhe perguntaram esse tipo de coisas? 

- Nunca. Nunca, nunca, nunca. E isso é uma coisa que enche de luz a minha vida. É uma coisa linda. Acho uma estupidez extraordinária estarem a querer impingir uma mulher ou um homem a um ser humano. Nunca me fizeram isso.

Continua a tentar guardar uma certa ingenuidade da  infância, Já o disse.

- Eu sou um naïf.

Por opção? 

- Por opção.

O que demonstra já uma certa consciência da ingenuidade, ou seja, um pouco menos de Ingenuidade.

- Sim, você vê muito bem o problema.

Naïf ou ingénuo é aquele que não se dá conta de o ser.

- É, claro. Mas isso é tão difícil. Ainda haverá hoje alguém que seja ingénuo? Já não há. Ninguém, creio eu.

Porque é que diz ter tentado guardar sempre a sua ingenuidade com unhas e dentes? 

- Olhe, porque tenho a maior admiração pelas pessoas ingénuas. Claro que a própria pintura ingénua... Há o caso maravilhoso de um francês que construiu o palais ideal. Ele era carteiro, andava a pé, fazia quilómetros e quilómetros, fazia uns 70 quilómetros por dia a distribuir correio na província | francesa. E ia guardando pedras no saco. Para lá levava o correio e para cá trazia pedras bonitas. Com essas pedras bonitas que trazia construiu um palácio - que ele chamava o «palais idéale» - que hoje é um monumento de invenção, de imaginação de um homenzinho qualquer que era simplesmente carteiro numa terrinha de província.

É esse tipo de ingenuidade que o motiva, que o comove? 

- Se eu tivesse de invejar alguém, invejava esse homem. Quem me dera ter construído aquilo.

Qual é a principal utilidade (para usar uma palavra muito presente no nosso quotidiano, hoje) que encontra na ingenuidade? 

- Não tem utilidade nenhuma a não ser satisfazer-se a si própria. Uma pessoa ingénua, hoje, em princípio, só vai ser esmagada pela vida, pelo quotidiano.

Nunca temeu vir a ser esmagado pela vida e pelo quotidiano ao tentar manter essa dose de ingenuidade? 

- É realmente essa luta que é apaixonante. É como a formiga a fugir da pata do elefante. Claro, o elefante não sabe que vai pisar a formiga mas a formiga, naturalmente, foge, esquiva-se e depois ri-se quando o elefante passou: desta livrei-me eu! 

No dia a seguir ao nosso casamento, 1967.
foto em oeiraslocal.blogspot.pt
Sentiu muitas patas de elefante sobre si? 

- Muitas vezes. Fui muitas vezes a formiga por baixo do elefante.

Teve uma infância lisboeta...

- Eu, quando era miúdo, era muito doentinho, muito fraquinho. O médico disse aos meus pais que eu não ia passar dos sete anos. De maneira que saímos de Lisboa, ou melhor da Amadora, e formos viver para o Estoril, para S. Pedro do Estoril. Que, nessa altura, não era chique como é hoje.

Foi uma infância com muita praia.

- A mãe ia todos os dias comigo para a praia. Tomava banhos de sol e essas coisas todas que faziam bem, que se dizia que faziam bem aos meninos.

Estava-se pelos anos 20...

- Vinte e poucos, devia eu ter uns seis anos ou coisa assim.

... que não eram em Portugal os famosos «roaring twenties", não eram, por cá, «os loucos anos vinte».

- Não, nada. Lembro-me de um ventinho que passou pela minha mãe, pelas minhas tias, quando as senhoras cortaram os carrapitos.

Lembra-se disso como uma cena de liberdade? 

- Lembro-me. Era o cabelo à garçonne. Lembro-me, por exemplo, de uma anedota que vinha nas revistas. Era daquelas anedotas que ficam mais em desenho do que propriamente em palavras. Era um homem e uma senhora com o cabelo já cortado à garçoime, como se dizia, numa cama. Então, a criada entrava no quarto com o tabuleiro do pequeno-almoço e dizia: qual dos senhores é a senhora? Isto, para a época, era extraordinário.

Lembra-se disso num desenho? 

- Era um desenho do Stuart Carvalhais.

Quer dizer que os desenhos desde cedo lhe chamaram a atenção? 

- Eram muito bonitos.

Começou cedo a desenhar? 

- Sim. Como não tinha brinquedos, a minha mãe dava-me papel e lápis. De maneira que era o meu grande entretenimento. O meu brinquedo principal foi sempre fazer desenhos. Que eram iguais aos das outras crianças. Não tinham nada de extraordinário.

Recordação de Lisboa em forma de postal, 1970.
Cruzeiro Seixas. Foto em www.fcm.org.pt
Não lhe gabaram logo o talento desde pequenino? 

- A mãe gabava mas...

Em que momento, então, é que começaram a incentivar-lhe o talento? 

- Nunca acreditei muito nisso, sabe.

Nunca acreditou muito no talento ou no seu talento? 

- Não, nos elogios das pessoas. Nunca acreditei muito. Claro que passei a tornar isso um bocadinho a sério quando isso veio, por exemplo, da parte de um Cesariny. Éramos colegas.

Na António Arroio, ainda? 

- Na António Arroio. Fez-se uma grande camaradagem entre nós, tínhamos uns 17,18 anos. E realmente ele ficava... E depois levava a minha casa outros: o António Maria Lisboa, o António Domingues... Enfim, essa gente toda. Para verem as minhas coisas. Eu ficava com uma certa vaidade mas não percebia nada do que estava a acontecer à minha volta.

O Cruzeiro Seixas foi para a António Arroio por iniciativa própria ou por incentivo de alguém? 

- Como eu fazia os tais desenhos e os pais não tinham dinheiro para me meter num liceu, acharam que aquilo era o mais barato. E também como tinha a tal habilidadezinha para o desenho, talvez conseguisse alguma coisa ali.

Foi lá na António Arroio que conheceu boa parte desses seus companheiros de percurso surrealista.

- Sim. Lá andava o Pomar, o Vespeira, lá andava toda a gente.

Quem é que o iniciou nas lides surrealistas? 

- Talvez, em grande parte, o Cesariny. Era com quem me dava mais. Era o grande camarada.

Era ele o maior conhecedor desse vento surrealista que estava a chegar cá? 

- Sim. Mais tarde, claro. O Cesariny, quando era jovem, aos vinte e tantos anos, era completamente apaixonante. Apaixonante e apaixonado. Sempre muito inteligente e muito culto. Sabia sempre muito mais do que eu.

Cruzeiro Seixas. Finalidade sem fim, 2004.
Tinta-da-china x Papel. Foto em www.guarda.pt
Sublinha «quando ele tinha vinte anos». Quer dizer que, com o tempo, ele foi perdendo esse lado apaixonante? 

- Acho que toda a gente sabe que o nosso relacionamento cessou. De maneira que hoje o que me chega é através de outros relatos que são sempre tendenciosos: uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Como os que lhe chegam a ele também o são, com certeza.

Esse relacionamento cessou com mágoa? 

- É triste. Não me dá alegria nenhuma. Não se percebe. Para além de desentendimentos que possa haver entre nós - e que são saudáveis, acho eu - o que é bom é que as pessoas não pensem todas como carneiros.

Desentendimentos de ordem estética ou de outra ordem? 

- De ordem filosófica. À volta de tudo. À volta da vida de todos os dias, do dia-a-dia. Mas acho que, realmente, o que é bom é haver desentendimentos. As coisas ficaram assim e pronto. Agora já não há remédio.

Foi pelo lado dele que se deu esse desentendimento? 

- Não. Se calhar foi por parte dos dois. Se calhar ficámos decepcionados porque, em dada altura, quando éramos novos, a verdadeira paixão era tão grande, o entendimento era tão grande que, quando se é novo, se supõe que aquelas coisas vão durar toda a vida. Depois, começa-se a envelhecer e começa-se a ver que há grandes abismos entre as pessoas. Que somos completamente diferentes. Claro que a sabedoria está em saber ultrapassar esses abismos.

Esses abismos entre as pessoas são uma lei universal? 

- Eu creio que sim. A maior parte das pessoas não sabe ultrapassar esses abismos.

Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny.
Foto sem data encontrada na net.
Ainda recorda o primeiro impacto que o manifesto de Breton lhe provocou? 

- Não. Não tenho memória nenhuma. A minha memória não é nada do género intelectual: o número da página, saber que no livro tal está isto assim-assim. Não é nada disso. Tudo fica a fazer parte da minha própria carne.

Mas não se lembra sequer da circunstância em que o descobriu? 

- Lembro-me. Quer dizer, essas coisas entravam com muita dificuldade dentro de mim porque era nos anos 40 e, por um lado, não tinha dinheiro para comprar as coisas, para comprar livros. Por outro lado, as livrarias também estavam muito mal fornecidas. Livros desses, a PIDE não os deixava chegar cá, de um modo geral. Hoje não se pensa como tudo isso era difícil. Qualquer coisinha que chegava, nós corríamos os cafés - Lisboa estava cheia de cafés - a participar uns aos outros, de café em café.

E ainda tem memória da circunstância em que, pela primeira vez, tomou contacto com o manifesto surrealista? 

- Acho que foi através do Mário. Do Cesariny, quer dizer. Ele também o tinha conhecido acho que através do 0'Neill, que tinha trazido de Paris os manifestos do Breton. Parece-me que é isso.

Uma vez descreveu o André Breton como «a bruxa que abriu portas». Por que é que lhe chama bruxa? 

- Quer dizer, a bruxa que sabe muita coisa. É nesse sentido, não é no outro sentido do horrível. Realmente, ele sabia muita coisa. Era um homem que tinha um poder de adivinhação e uma sensibilidade extraordinárias. Poucas pessoas conhecemos no mundo com uma sensibilidade tão grande e tão autêntica para a pintura.

Mas depois aquilo também se tornou uma ortodoxia, a certa altura.

- Eu acho que quando uma pessoa ama uma coisa cegamente é ortodoxo.

Mas com expulsões e tudo - ou seja contrariando a ideia de liberdade.

- Fez muitos disparates, claro. Enganou-se muitas vezes mas toda a gente se engana. Mas tinha uma coisa espantosa. É que realmente, quando se enganava, sabia voltar atrás - um ano ou dois, ou meses depois - e emendar. Aqui é muito mais difícil. As pessoas não sabem fazer isso.

Cruzeiro Seixas Auto-retrato, 1975.
Foto em www.guarda.pt
Aqui em Portugal? 

- Aqui em Portugal tudo é muito difícil.

Considera Breton um génio, claro.

- Sim. Toda aquela geração. É isso que nos falta hoje, sabe.

O génio? 

- Em absoluto. A todos os níveis.

O que é que define o génio? 

- Isso é muito difícil. Naturalmente, é aquele que nos espanta por aquilo que faz e que diz. Que é completamente diferente daquilo que estava antes dele. E depois, que isso que ele diz e que faz não seja apenas uma gracinha para nos espantar. Que seja, realmente, uma coisa que vá tocar e interessar a todos os homens de uma maneira geral.

Disse uma vez: «é pelos olhos que quase tudo penetra em mim». Dá mais importância à sua obra plástica do que à sua obra escrita? 

- Ora aí está uma pergunta que não me tinha ocorrido. Eu creio que sim.

Pergunto-lhe isto porque o sentido mais forte associado à poesia não é o da visão.

- Pois. Eu creio que as coisas se encontram, sabe. Na minha poesia há muita arte plástica, se quiser, e naquilo que se considera arte plástica há muito da minha poesia escrita. As imagens dão saltos de uma coisa para a outra. Para mim é tudo a mesma coisa.

Já houve até alguém que disse que a pintura é poesia muda.

- Sim, isso é uma frase que está dita por muita gente. Aliás, também entre essa gente genial houve imensos que não se sabe bem ao certo se foram poetas se foram pintores.

No seu caso também as duas coisas se misturam.

- Acho que sim. Acho que é a mesma coisa, ao fim e ao resto. É o caso de um Henri Michaux, por exemplo, que fez poesia tão boa como fez boa pintura. Sem ser um pintor. O que há em mim que considero quase a minha coroa de glória é realmente não ter andado em escolas superiores. Não saber desenhar. Ter uma inabilidade natural.

Inabilidade?! 

- Uma inabilidade natural para o desenho e para essas coisas todas. Chumbei durante três anos em desenho, na António Arroio. De maneira que é muito engraçado! Durante três anos com notas negativas: cincos e seis.

Então e aquele talento de infância que o levou para a António Arroio foi contrariado pelos professores? 

- Sim. Os professores eram ainda mestres, com laçarotes e com pera. Ainda com todo aquele aspecto que era próprio do artista. O artista tinha que ser diferente. Hoje, também há outros. Só que é completamente diferente: as grandes cabeleiras, o andar quase que em farrapos. Também há essas coisas que distinguem as pessoas.

Cruzeiro Seixas - A Grande Refeição, 1972.
foto em ofuncionariocansado.blogspot.pt
E, no seu caso, nunca quis distinguir-se por nenhum desses adereços de artista? 

- Não. Não estou nada interessado. Acho uma boa idiotice as pessoas usarem esses estratagemas. Acho pouco honesto. O andar com os sapatos desapertados ou com as orelhas sujas ou a fumar muito... Quer dizer, há pessoas que se agarram a pequeníssimas coisas: falar muito baixinho ou falar muito alto. Coisas que, para mim, realmente, são desconsoladoras. São tristes.

Pergunto-lhe se dá mais importância à obra plástica do que à poesia porque os seus poemas estiveram muito tempo escondidos. Porquê? 

- Só no ano passado é que começaram a ser editados. E foi uma editora que se ofereceu. Nunca pedi nada a ninguém. Foi uma amiga minha que vive em Paris, a Isabel Meyrelles, que se encarregou de pôr ordem aos milhentos poemas que estavam todos a monte dentro de gavetas.

Porque é que os escondeu durante tanto tempo? 

- Porque julgava que não tinham interesse nenhum. Tinha havido um vago interesse do Cesariny, quando éramos muito novos, e que tinha cessado. Foi, depois, a Isabel Meyrelles que se interessou e que deu a ordem àquela papelada toda que eu nunca seria capaz de lhe dar. Já saíram três volumes, grossíssimos, e ainda está mais um para sair. Coisa que me espanta imenso.

Não sabia que tinha escrito tanto? 

- Quando recebi aquele volume pus-me a olhar para aquilo e a pensar, não tenho a menor recordação de estar sentado a uma mesa a escrever poesia. Não me lembro de ter feito nada daquilo. Claro que, se leio os poemas, encontro num e noutro alguma coisa que me vem à memória. Agora, a maior parte são surpresa mesmo para mim. Quase podiam ser de outra pessoa.

Quais são os seus versos que melhor o retratam? 

- Por muito impossível que lhe pareça, não sei um único verso meu de cor. E isto também não é tão impossível como isso porque, por exemplo, da poesia do Cesariny, que foi feita quase toda ao meu lado, eu também não sei versos de cor. Ou sei duas coisas muito antigas e que, possivelmente, ele até já esqueceu.

Por que é que põe datas fictícias nos seus poemas? 

- É para transtornar o caminho aos académicos.


Cruzeiro Seixas, sem titulo, 1960. Foto em saomamede.com e 
Cruzeiro Seixas. Sonho, 2001. Foto em divasecontrabaixos.blogspot.pt


Deliberadamente? 

- Deliberadamente. Fazê-los tropeçar e nunca escreverem um estudo sobre mim a dizer na época tal ele fazia não sei que mais.

Quer dizer, baralhou os papéis todos para aquilo sair com uma ordem que não tem nada a ver com a ordem pela qual os poemas foram escritos.

- Nada. Que eles não possam fazer isso. Ou se fizerem têm de ter muito trabalho. Mas realmente não estou nada interessado nesses estudos.

Grande parte dos seus poemas tem como legenda «África» ou «Áfricas» e depois, à frente, o ano. É só a data que é fictícia ou também, nalguns casos, a indicação da origem? 

- O ano é sempre fictício. «África» poucas vezes aparece. Aparece muito mais «Áfricas». E Áfricas era realmente um jogo. Eu tinha a consciência de que Africa era um sitio de grande infelicidade e de grande horror. Desde as Descobertas que aquela gente era escravizada. Depois, quando o colonialismo assentou bases, continuavam a ser escravizados e depois da liberdade viu-se a desgraça que aquilo tem sido. Vendo tudo isso e tendo o conhecimento das minhas próprias desgraças, eu realmente ligava as coisas e a «Áfricas». Era a África África e a minha própria África. Aquela que vive dentro de mim.

As suas desgraças pessoais, também? 

- Sim. Comparo-me, de certa maneira, a África. Porque a liberdade é sempre insuficiente. É sempre pouca.

Há poemas onde coloca essa designação, Áfricas, que podem ter sido escritos aqui em Lisboa, na Europa? 

- Alguns já foram escritos aqui. Mas África continua dentro de mim. Por paixão, também.

Por que é se veio embora ao fim de 14 anos em Angola? 

- Foi a guerra. E quiseram-me meter uma arma na mão para eu combater.

O Exército quis mobilizá-lo? 

- Não era o Exército. Era a própria população branca que estava aterrorizada - e tinha razão - e fizeram-se milícias que defendiam Luanda. Essas milícias eram senhores doutores, senhores engenheiros, pais de família, mas matavam tudo quanto mexia.

Anuncio da galeria São Mamede em 1972.
Exposição de Cruzeiro Seixas entre outros.
Isso em que ano: em 64? 

- Eu para datas sou muito mau. Vim-me embora, mais ou menos um ano depois daquilo ter começado. Quando vi que não podia fugir a ser mobilizado numa dessas milícias. Era insuportável.

Ainda chegou a pegar em armas? 

- Não. Neguei-me desde logo.

Quando partiu para África, em 1950, já saiu de Lisboa com um destino definido? 

- Ia com o destino de ficar lá para sempre.

A meta já era Angola, logo à partida? 

- Era África toda. Toda a África me parecia apaixonante.

Saiu de Portugal como marinheiro.

- Sim. Não tinha ganha-pão e não tinha dinheiro para viajar. Apareceu uma pessoa no mesmo prédio onde nós morávamos - eu morava com os meus pais - que era da Companhia Nacional de Navegação. Um dia encontrei-o na escada e pedi-lhe se me arranjava um emprego lá na Companhia. Ele disse: sim, senhor, vá lá. E pronto.

Andou muito tempo embarcado? 

- Andei quase dois anos. Foi uma coisa realmente muito interessante por toda a aprendizagem. Bem distante daquilo em que eu tinha sido educado pelos meus pais. Era uma vida muito dura. Mas para além disso tudo tive a oportunidade de conhecer todas as colónias portuguesas ainda com ligações a Portugal: a Índia, Macau, Timor. Tudo isso. O que era realmente a revelação da loucura daqueles tipos que tinham chegado ali nos anos das Descobertas.

Já era surrealista quando se fez ao mar? 

- Sim. A minha visão foi sempre, ao meu nível, tanto quanto possível, surrealista.

Essa viagem, a aventura, adensou esse lado surrealista? 

- Ficou para sempre ligada a mim. Há qualquer coisa que eu sentirei sempre, enquanto viver, que falta fazer em Goa. Essa coisa seria algo que estava ligado à nossa permanência aqui e ao surrealismo. Não sei como é. Claro que era algo completamente impossível de realizar. E continua a ser. Cada vez mais. Mas há qualquer coisa para ali, naquele lado, que me continua a atrair.

A sua vida foi sempre assim, ao sabor do improviso? 

- Sim. Completamente. Sei sempre vagamente o que vai acontecer amanhã.

Já disse uma vez que foi uma vida, toda ela, «um disparate». Em que sentido é que o diz? 

- Disparate porque fiz muito poucas das coisas que as outras pessoas fazem todos os dias. Apenas o que é absolutamente necessário para subsistir. Foi muito complicado, sabe.

Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique Leiria, Natália Correia e
Mário Cesariny. Foto sem data, (talvez do fim dos anos 70,
M. Henrique Leiria faleceu em 1980) encontrada na net.
Há alguma coisa de que se arrependa? 

- Naturalmente não fui sempre, tanto quanto possível, amante, próximo, das pessoas de quem o devia ter sido. Nessa perspectiva vejo que errei, às vezes. Quem me dera que não tivesse acontecido. Aconteceu com certeza algumas vezes.

Hoje diz que se sente ofendido, é a expressão que usa, pelos seus próprios sinais de velhice. É-lhe difícil aceitar a idade? 

- Muito. Acho que é uma coisa horrível. Não há nada a fazer, mas realmente é revoltante envelhecer e sentirmos que já não temos a mesma força para resolver os problemas. Felizmente, julgo que ainda estou lúcido. Deixar de ficar lúcido é uma coisa que me mete um medo atroz.

Como é que encara a ideia de morte? 

- Agora, nesta altura e a qualquer momento em que este estado se agrave, acho que é um alívio. Desejava-a imenso. Mas ainda estou vivo e ainda tenho que me mexer como um tipo que está vivo, claro. Mas já estou meio como a formiga pisada pelo tal elefante. Só uma parte de mim a remexer. Há muita coisa que já pertence à História, que já não me pertence a mim. Por exemplo, o viajar. Amar nós nunca nos cansamos de amar, não é? E isso realmente é uma coisa de que se tem muita saudade quando se chega a velho. Pelo menos no meu caso. Mas as coisas não podem ser como nós queremos, claro.

É um homem desencantado, de alguma forma? 

- A vida tem duas partes iguais. Há uma que é realmente apaixonante e outra que é decepcionante. O desencanto também é muito forte. E, claro, numa vida vivida intensamente há as duas partes muito intensas, também.

Qual foi o maior encanto que viveu ao longo da sua vida já de 84 anos? 

- Bom, eu sou um apaixonado pela pintura. Mas também recordações de amor pessoas que amei, duas ou três pessoas extraordinárias que não esqueço mais. O encontro, o coup de foudre, como dizem os franceses. Aquela coisa espantosa que é encontrarmos uma pessoa, cruzarmos o olhar e, daí a bocado, estarmos na cama, por exemplo, como acontecia na Lisboa de aqui há uns anos. Isso são coisas muito bonitas. Quer dizer, há tanta coisa admirável. A Natureza. Ou quando entramos num museu e vemos coisas como a «Vitória de Samotrácia», por aí fora. Coisas que nos fazem perder a cabeça. Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos cansamos de fazer amor. Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas.

(Entrevista de Carlos Vaz Marques a Cruzeiro Seixas para o Diário de Notícias em 1 de Abril de 2005)


Cruzeiro Seixas. Foto encontrada na net.


 A Vitória de Samotrácia em fotos de Dmitri Kessel (1950) e Gjon Mili (1962) da LIFE Archive.




"Coisas que não nos cansamos de olhar e com que não nos cansamos de fazer amor. 
Porque fazemos amor, violentamente, com essas coisas." 
(Cruzeiro Seixas)