«A distância em relação ao poder é a escola mais importante de Stuart .»
(António, Cartonista em Jornal de Letras, 28-08-89)
Stuart de Carvalhais (1887-1961)
José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais, mais conhecido por Stuart de Carvalhais, foi um pintor, e autor de banda desenhada. É considerado o pai da banda desenhada em Portugal. Para além de divertir o público com os desenhos que apareciam nos jornais, revistas ou livros, quem com ele privou é unânime em afirmar que na vida pessoal sempre foi uma pessoa de trato muito divertido, sendo mais que muitas as anedotas reais que se passaram consigo. Apesar de grande parte do meio intelectual do seu tempo o olhar com desdém, o grande escritor que foi Aquilino Ribeiro definiu-o na perfeição: "O grande e pobre Stuart". (In, infopedia.pt)
Coisas boas em jornais
STUART, A vida sem rede
por
Fernando Assis Pacheco
Stuart de Carvalhais. |
Filho de um engenheiro agrónomo e de uma senhora de
ascendência escocesa, ambos transmontanos, José Herculano Torrie Suta rt
d'Almeida Carvalhais nasce em 07.03.1887 na cidade de Vila Real, de onde, muito
pequeno, o pai o leva para Zalamea la Real, província do Huelva, ao ser ali
colocado nas minas de Rio Tinto. Aprende então Espanhol e mistura-o
generosamente com o Português enquanto aprende as primeiras letras.
Aos seis anos a família regressa a Portugal: Alenquer, mais
tarde Montemor-o-Novo e Lisboa. José Herculano faz parte do curso dos liceus em
Évora, apanhando um irónico chumbo em Desenho.
Lisboa, para onde os Carvalhais vêm em 1901 — o pai
contratado pelo Museu Etnográfico na qualidade de colector-preparador, por
empenho de Leite de Vasconcelos —, não parece vê-lo melhorar por aí além quanto
aos estudos. A mãe ainda alimenta o sonho de vê-lo cursar Belas Artes. Em vez
disso entra para o atelier de Jorge Colaço e inicia-se na técnica do azulejo,
ganhando como aprendiz 5$00 por metro quadrado. (Ao azulejo voltará em 1921,
com Francisco Valença, para decorar a escadaria do Diário de Lisboa.)
É Colaço que o inicia na ilustração e na caricatura,
acompanhando-lhe os primeiros passos, a estreia absoluta no Tiro e Sport logo seguida de uma colaboração regular n'O Século Cómico, em 1906. Até 1913, ano da partida para Paris,
Stuart faz a mão em tudo quanto é publicação de humor, dirigindo mesmo uma
folha, A Sátira (1911). Também
experimenta ser clown, com o nome
artístico de Mr. Billot, no Palácio Foz, então um local muito in da Lisboa
Alegre. E torna-se habitué do teatro
de revista. Da fama de Don Juan não se livra: traz uma girl por conta, ou vice-versa, que é ainda mais gratificante.
Evitemos a minúcia biográfica, mais próxima de uma obra de
fundo como Crónicas d'um Stuart, de
Osvaldo de Sousa, edição recente (Dom Quixote). Mas 1913 merece algumas linhas
largas.
«Usava os cabelos
soltos ao vento, um rolo de papéis debaixo do braço...», «contará a Vasco
Callixto. «E um desejo imenso de visitar
Paris...» A oportunidade surge-lhe à conversa com Carlos Franco, José
Pacheko e Valentim Talone, no Café Martinho. Entre o «queres vir?» e o «vou!» é
um sopro, do Rossio à Gare d'Austerlitz correm 34 horas zebradas — o verbo vai
estar na moda — de ânsia e premonição de triunfo. Entre as redacções, claro. E
uma delas promoverá mesmo Stuart a vedeta. Título, Ruy Blas.
"Lisboa numa roda só: aí vai Stuart de Carvalhais empurrado
rua fora, nos tempos em que viver era formidável".
Louise, aliás Louisette, haveria desempenhado um papel
importante no contrato do Ruy Blas,
isto segundo uma das versões do artista, que também avançará com uma outra não
coincidente. Pecha bastante sua: o passado retocado. A versão Louisette é digna
de romance, incluindo um encontro com a mulher de um cabeleireiro que arranja a
coiffure da mulher do director do Ruy Blas... Impagável. Mas, como quer
que seja, o todo-poderoso Muller, director da revista, gosta de Stuart e
propõe-lhe 500 francos por mês, sob exclusivo.
"Quatro tipos de Lisboa apanhados em flagrante nos bairros pobres, às vezes Stuart limitava-se a usr um pau de fósforo para dar vida às suas personagens" |
Reinaldo Ferreira, o Repórter
X das manchetes, ouvi-lo-á lamentar que foi «maluco em vir embora». Por cá a glória não excede as participações
nos Salões dos Humoristas (1912, 1913) e a estima dos seus pares, a vida sem
rede abre novo capítulo: aí está ele casado com D. Fausta Moreira, que lhe dará
o filho único, Raul, prometido também a uma carreira de desenhador, mas não na
faixa humorística. Lisboa. Uma paixão, uma cisma, um deambular entre a gente
modesta que lhe vale meia dúzia de tipos (a varina, o guarda do chanfalho, a
cocotte barata, a megera do carrapito, o ardina, o amigo, do briol) repetidos
até à exaustão.
"O outro Stuart, artista «tout court», sem necessidade de legenda, fez uma única exposição (de pintura) nos anos 30" |
«Era um galeriano como
o Camilo. Nas condições concretas da Lisboa do seu tempo, deu-se à preguiça,
mas de qualquer maneira comia do que trabalhava. E tem um prestígio ingrato:
alcoólico, boémio, artista à portuguesa. Parece que era um tipo de uma grande
bondade, coisa má nesta terra. Artisticamente facilitou, mas era um poderossímo
talento.»
Vasco acha que não houve apenas um Stuart, sim vários. E desses vários preza muito especialmente «o anarquista», colaborador d'A Batalha.
«O Stuart de que falo
aqui vem na tradição de Goya e Daumier: o desenho satírico de 'combate', o
estilo forte e agressivo. Mais tarde, vítima das circunstâncias, vai cair no
pitoresco e no picaresco, que é um equívoco nesta galáxia do desenho de humor.»
Dói-lhe «a vida
frustrada» do conterrâneo, o adivinhar que ele talvez não tenha sido levado
a sério no seu tempo. «Coitado do Stuart,
a vender bonecos pelas redacções. Agora não pode ser, passe mais logo... Tudo
isso não era nada nobilitante.» Para Vasco este «andar à trincha» foi a pior fase de Stuart.
Mas antes disse ele faz nome, cria imagem, poisa um decidido
pé no cimento fresco do átrio da fama. É o desenhador da moda, o cartoonista
requestado, e mais ainda pela facilidade do traço, a rapidez, a bonomia (não
faz exigências, acomoda-se ao que há). Na falta de outro material usa um pau de
fósforo aparado, ou o pincel careca, de dois pelos, que molha no seu frasquinho
de nanquim. Se necessário usa também graxa. E papel qualquer serve. Não havendo
branco, vá uma demão de guache. Colaborou n’A
Batalha? Ora, e os desenhos para o Papagaio
Real monárquico saudosista? Depois, é certo, chegou a chamuscar o coiro no
7 de Fevereiro (de 1927), conforme depoimento inquestionável de Aquilino, a
quem teria pedido «uma espingardinha»
para o que desse e viesse. Em 1934, porém, já está às sopas da Câmara Municipal
de Lisboa (cartazes para as festas da cidade), em 1937 ilustra um escrito
macaco editado pelo SNI, Le peuple
portugais et ses caractéristiques sociales, de Francisco Casanova. «Não passo de um fabricante de desenhos...»
José-Augusto França, a propósito: «O seu lápis não tinha ideologias». (Mas quem o conheceu, mesmo nos
piores anos, garante uma coisa: Stuart não era homem para andar com Salazar ao
peito. Sabia-lhe a vinho martelado?)
Recapitulemos. Sobre desenhador de humor, o vila-realense
pode ser considerado pioneiro da Banda Desenhada; mesmo a nível mundial não
houve muita gente de qualidade antes dele, poderia fazer-se a prova traduzindo
algumas tiras, aí estão as Aventuras de
Quim e Manecas, em 1915, n'O Século,
que igualmente passarão ao cinema em realização sua.
"Quim e Manecas, a banda desenhada de 1915, faz de Stuart um pioneiro no género" |
António dá-o como sendo a ponte entre a geração de
desenhadores de humor do fim da I República e os do pós-25 de Abril, José de
Lemos atribui-lhe dimensão europeia, Baltazar diz que ele «marcou várias gerações como personagem e como cidadão» (inquérito
de António Valdemar in Diário de Notícias, 2.3.1986).
Que intervenção foi a sua? Mais através da ironia do que da sátira,
embora em cartoons da primeira fase
atinja um alto grau de agressividade. Depois, implantada a censura
estadonovista, volta e meia tenta o drible em habilidade, mas há notícias (do Sempre Fixe) de que o lápis azul o não
deixa preopinar além do tacitamente estipulado. Nos dias de azebre Botelho
vinga-o com o célebre mocho Piu, sinal de que um alferes lateiro de má morte
cortou a eito nos bonecos. Com o andar dos anos perde gás e perde graça, tipifica,
estiliza, cede à facilidade do improviso. A terra é madrasta, o génio pessoal
displicente.
Quem o não ler com
vagar — vagar e simpatia — arrisca-se a tropeçar apenas no boémio. Mas para
tanto é necessário ir às bibliotecas e às hemerotecas, folhear A Sátira, O Século, O Século Cómico, o
Papagaio Real, A Situação, o ABC, o ABC a Rir, o ABCzinho, o Sportsinho, Os
Ridículos, A Ilustração, o Magazine Bertrand, o Diário Popular, o Fixe, o
Diário de Notícias, Ó Picapau, o Cara Alegre, passos achados e perdidos da
sua paixão.
« Stuart não era um
alcoólico, mas era o mais simpático dos bêbados que conheci e o mais autêntico
e abandonado dos artistas», defende Thomaz de Mello (Tom) no inquérito do Diário de Notícias.
Fará, não obstante, curas de desintoxicacão alcoólica, a
primeira quando tem 39 de idade. E é um facto que grande parte dos testemunhos
dos seus contemporâneos refere explícita ou implicitamente esse feitio laxista
e dissipador.
As histórias de Stuart são como as cerejas. Encomendam-lhe
um boneco urgente, fecham-lhe a porta da saleta à chave: na fase em que anda,
costuma pirar-se e ir ao tinto. Inútil, quando o chefe de redacção volta: está
a saleta vazia, e o papel em branco. Ou muda de casa, para um modesto piso .
desguarnecido de móveis, e como não tem despensa trata de desenhar presuntos e
salpicões numa parede. Ou quer fazer ,- diz — uma exposição, procura um amigo a
quem pede trabalhos seus, depois vende-os, o amigo refila, «Bolas, mas eu tinha-te comprado os bonecos!»,
e ele escarninho, sonso, «Ah sim? E para
que é que tu querias essa merda ?»
Lopo Lauer, empresário de teatro, justa com Stuart a
confecção de um pano de fundo para um quadro musical no Eden. Dá-lhe o material
preciso e diz-lhe que pode ir a um restaurante próximo - basta pôr na conta. O
artista deixa sair Lauer, corre à sala de mesa, deita abaixo uma lautíssima
ceia e entorna-se. Quando reentra no Éden, tem uma náusea e vomita sobre a tela
que está a pintar. Lauer, que o espreitava do balcão, viu a cena, irrita-se,
arrepela-se. «Tudo perdido!, i Não
está: disfarçando as manchas de vinho num cenário roxo, Stuart salva a estreia
do espectáculo. Bate as casas de penhores, as redacções, os amigos
endinheirados. quando lhe surge á oportunidade de fazer qualquer coisa na Feira
Popular, onde tem Leitão de Barros e José André dos Santos a abençoa-lo,
inventa uma barraca para ler a sina: é a Bruxa, uma moscambilha do alto
coturno. Muitas histórias suas abonam a falta de senso comum, mas perguntar se
em mais de uma ocasião não terá sido desfrutado. É a vida sem rede, a dez
metros de angústia sobre a pista.
João Abel Manta, que põe reservas a grande parte da obra
gráfica de Stuart, filia o seu estilo em Gousbofa, admitindo que os vagabundos
e os piteireiros do português descendam dos clochards
do francês Estes vegetam sous les pouts,
aqueles empinam copos de dois ou enxotam moscas na Feira das Mercês, excursão
anual do' desenhador. Por outro lado, diz Manta, os Quins,'os Manecas e outros
miúdos da galeria stuartiana evocariam Poulbot e o seu Poil de Garotte. «Era um intuitivo
que nunca teve grande preparação técnica. A coisa mais gira dele e a sua forma
de tratar o pretò e o branco, e o modo como faz os contornos. O seu preto e
branco seria depois muito usado na Banda Desenhada: por exemplo Hugo Pratt.»
"Um miligrama de chouriço ou a arte portuguesa de enganar a malvada" |
Em Junho de 1926, dias depois do golpe, Stuart publica, no Fixe um rápido cartoon figurando a Republica de barrete frígio a tocar tambor.
Legenda: «Mortos de pé!... Os vivos estão
de cócoras».
Tem para viver ainda 35 anos e um lápis, ou um pau de
fósforo. Bem pergunta o talhante ao homem do chapéu: «Então quanto quer de chouriço», E o outro, esquálido «Um miligrama...»
Artigo de Fernando Assis Pacheco em O Jornal 24-07-89
as fotos e as gravuras foram copiadas do próprio jornal.
Alguns exemplos de trabalhos
de Stuart Carvalhais
Outra Faceta do Fado, desenho de Stuart Carvalhais, anos 40
Contam-se por milhares os seus cartoons, sabe-se lá quantos perdidos para todo o sempre. Stuart de Carvalhais executava-os à medida das, encomendas e à cadência das necessidades próprias, mas um dia desabafou para Aquilino Ribeiro: «Há dezoito anos que almoço desenhos, que janto desenhos, que visto desenhos...»
(Fernando Assis Pacheco em O Jornal, 24-07-87)
(Fernando Assis Pacheco em O Jornal, 24-07-87)
(Fotos e desenhos encontrados na net)
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