segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Jerry Lewis (Sketch)

Bom Ano 2013
para quase todos


Sketch de Jerry Lewis, retirado de um programa da série "The Jerry Lewis Show" de 1967, em que colabora Frank Gorshin, entre outros, que se juntam a Jerry Lewis em um sketch, sobre uma casa mal-assombrada habitada por monstros. BOM ANO 2013.





quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O Belo e a Consolação - George Steiner

«Somos aquilo que são as nossas memórias. Não nos podem tirar aquilo que temos dentro de nós. Vou explicar melhor: Neste século aprendemos que nos podem tirar tudo, a nossa casa, a nossa família, os nossos meios de subsistência. Somos todos errantes. Somos presas neste mundo. É a história deste século. Milhares de pessoas em África, nos Balcãs, no Sudeste da Ásia e em breve noutros lugares. São como "judeus" ou melhor, são caçados ou andam à caça. O que temos dentro de nós os malvados não podem tirar-nos.» George Steiner




Como escreveu alguém num blog: «A uma dada altura a SIC passou aquele que talvez tenha sido o melhor programa de televisão alguma vez feito». Entre 1 de maio de 2001 e 15 de maio de 2002 e depois repetido em 2006 a SIC, na rubrica (quinzenal) "Noites Longas", apresentou um programa de entrevistas que tinha como título holandês “Van De Schoonheid en de Troost” no original; "Of Beauty and Consolation” na versão inglesa e "O Belo e a Consolação" na tradução portuguesa, que em alguns programas mudou para, “Da Beleza e Consolação”, deve ter tido a ver com os vários tradutores envolvidos, já que traduziam de ouvido. A ordem por que passou na Sic foi: Richard Rorty, filósofo; Simon Schama, historiador; Martha Nussbaum, filósofa; George Steiner, escritor e filósofo; Roger Scruton, filósofo; Stephen Jay Gould, zoólogo e paleontólogo; Edward Witten, cientista e matemático; Steven Weinberg, cientista; Gary Lynch, neuropsicologista; Leon Lederman, cientista experimental; Vladimir Ashkenazy, pianista e maestro; Catherine Bott, soprano; Rudi Fuchs, director de museu; Karel Appel, pintor; John Coetzee, escritor; Elizabeth Loftus, psicóloga; Germaine Greer, escritora; Wole Soyinka, escritor; Yehudi Menuhin, violinista e maestro; Dubravka Ugresic, escritor; Grand Finale (debate em Amesterdão entre alguns dos participantes); György Konrád, escritor; Jane Goodall, escritor e etóloga; Tatjana Tolstaja, escritor e Rutger Kopland, poeta e psiquiatra. Esta ordem devia ser igual à que passou na televisão holandesa VPRO, já que é costume vir uma "running order" a acompanhar os programas. A série constava de 24 conversas (deviam ser 26 mas dois; Freeman Dyson, cientista e Richard Dufallo, maestro, nunca chegaram a vir, não se sabe a razão) com vinte e quatro pessoas extraordinárias com diferentes percursos e visões da vida: artistas, cientistas, músicos e filósofos. Apresentada por Wim Kayzer e produzida por Vera de Vries, foi pela primeira vez transmitida pela televisão holandesa VPRO, em 2000. No site da VPRO (Aqui) existe documentação áudio e vídeo em inglês sobre a série. Irei colocando aqui e no youtube todos os programas, seguindo a ordem que me der na gana e hoje deixo aqui, para quase todos, o programa "O Belo e a Consolação" com George Steiner, legendado em português.


George Steiner and his dog. Foto www.terra.es


George Steiner - Breve Biografia

Filho de pais austríacos, George Steiner nasceu em  Paris em 1929. Tem uma educação trilingue – francês, inglês e alemão. Mudou-se em 1940 para os Estados Unidos, tendo obtido a sua licenciatura em Letras, na Universidade de Chicago, em 1948. Em 1950, conclui o mestrado na Universidade de Harvard, onde foi agraciado com o “Bell Prize in American Literature”. De 1950 a 1952, foi bolseiro da Fundação Cecil Rhodes na Universidade de Oxford, onde se doutorou com uma dissertação que, após uma primeira rejeição, se viria a tornar em The Death of Tragedy (1961). Juntou-se à redacção do Economist, em Londres, sendo depois membro do Institute for Advanced Studies, em Princeton. Em 1959, recebeu o prémio O. Henry Short Story. Foi professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Genebra de 1974 a 1994 e membro do Churchill College em Cambridge. Actualmente é professor de Literatura Comparada na Universidade de Oxford e professor de poesia em Harvard (em aposentação). Colabora no The New Yorker, no The Times Literary Supplement, no Guardian e no Salmagundi. Foi ainda galardoado, a nível mundial, com múltiplas e diversas distinções, e agraciado com o grau de Doutor Honoris Causa por prestigiosas Universidades.  (In, www.ul.pt)




segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ernest Hemingway e George Steiner




Ernest Hemingway em Cuba, à conversa com pescadores e marinheiros.1952. Alfred Eisenstaedt.
Foto LIFE Archive.


Ernest Hemingway e a modelo Jean Patchett por Clifford Coffin para a revista Vogue. 1950.
Foto encontrada em trovegeneral.com


Mesmo grande escritores não conseguem alterar a força de palavras simples. O nosso grande exemplo é Ernest Hemingway. Nunca mais ninguém utilizou da mesma forma a palavra "e", como Hemingway o fez. Uma das suas passagens ilustra bem as minhas preocupações. As pessoas não ligam à literatura mais impressionante. Estou a pensar num trecho do romance "The Sun Also Rises". Este título vem, obviamente do Livro de Eclesiastes. na Bíblia. Chamava-se "Fiesta" na edição inglesa. Dois amigos estão sentados no autocarro e julgam amar-se. Julgam ser inteiramente honestos um com o outro. «Atravessámos a floresta para depois subir a encosta, um prado verde e ondulado à nossa frente e montanhas escuras por trás, muito diferentes das montanhas queimadas donde viemos. Eram montanhas arborizadas das quais as nuvens escorregavam. O prado verde estendia-se, separado por vedações, com o branco da estrada a brilhar por entre as árvores, cruzando o prado para Norte. No cimo da encosta vimos os telhados vermelhos e as casas brancas de Burguete dispersas pelo prado. Ao longe, no espinhaço da primeira montanha escura, encontrava-se o telhado cinzento do mosteiro de Roncesvalles. Ali é Roncevaux, disse eu. Onde? Lá ao longe. Onde começam as montanhas. Está frio aqui, disse Bill. Estamos muito alto, disse eu. Pelo menos a 1200 metros. Está um frio horrível, disse Bill.»
Roncevaux é um lugar onde, na canção medieval de Rolando,  Rolando e os seus amigos traídos por um deles, são mortos na emboscada dos Sarracenos. A genialidade de Hemingway está no facto de não chegar a dizer isso. Só a palavra "Roncevaux" nos diz que os dois amigos se trairão. A amizade está a chegar ao fim. Depois a repetição. «Está frio, disse o Bill. Está um frio horrível.» Naturalmente, está a falar-se do frio no coração deles. Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada. A questão é que os meus alunos de Oxford, de Cambridge, os de Genebra e os de Harvard, já não sabem o que significa "Roncevaux". A próxima edição terá de trazer uma nota de rodapé, que liquida tudo. Enquanto no tempo de Hemingway, com o seu vasto público, era um romance muito popular e partiam do princípio que o nome "Roncevaux"... não era preciso explicar. Dentro de pouco tempo o nome "Elsinore" precisará de uma nota de rodapé. Não saberão nada, nem o que é "La Mancha". Isto é assustador.
George Steiner
In, «Of Beauty and Consolation». 2000


Ernest Hemingway e Yousuf Karsh em Cuba e Hemingway por Yousuf Karsh. 1957.
Foto de www.collectionscanada.gc.ca



Ernest Hemingway em Cuba.1952 e 1953. Alfred Eisenstaedt.
Fotos LIFE Archive.


Ernest Hemingway lendo um manuscrito. Sun Valley, Idaho, 1940. Robert Capa.
Foto encontrada em www.tomorrowstarted


Ernest Hemingway com Antonio Ordonez em Malaga, Espanha. 1960. Loomis Dean.
Fotos LIFE Archive.


Ernest Hemingway e Fidel Castro. 1960. Osvaldo Salas.
Foto encontrada em trovegeneral.com



domingo, 23 de dezembro de 2012

LUIS BUÑUEL SURREALISTA E SANTO

 por

Mário Cesariny

Jornal A Capital 22 Abril 1970

Luis Buñuel, carregando a cruz durante a rodagem do filme A Via Láctea. 1970.
Foto encontrada em www.dga.org


«Detesto o pedantismo e o jargão. Já me aconteceu rir até às lágrimas ao ler alguns artigos dos Cahiers du Cinéma. Na Cidade do México, tendo sido nomeado presidente honorário do Centro de Capitacion Cinematográfica pela Escola Superior de Cinema, um dia fui convidado a visitar as suas instalações. Apresentam-me quatro ou cinco professores. Um deles é um jovem bem vestido, corando de timidez. Pergunto-lhe que disciplina ensina. Ele responde: " A semiologia da imagem clónica." Apeteceu-me assassiná-lo.» Luis Buñuel em O Meu Último Suspiro.

Coisas boas em jornais

     Há muitos anos já foi-me perguntado, passavam uma cópia ultradeficiente, não haveria outra, de Las Hurdes — Tierra Sin Pan, de Buñuel, se achava este filme mais ou menos surrealista do que Un  Chien Andalou, fita cujo guião teve, como é sabido, a colaboração de Salvador Dali. Pela maneira como perguntava (José Ernesto de Sousa) ouvi que era a uma escolha que se incitava, que era para se escolher entre o que todo o mundo admitia como um clássico surrealista (Un Chien Andalou) e um clássico também «ista» mas talvez não surreal, considerada, embora com alguma dificuldade, a qualidade documental de Las Hurdes. A pergunta viciosa, resposta viciada: respondi que no meu entender este último era um filme muito mais surrealista do que Un Chien Andalou e, mesmo, do que L'Age d'Or, e o dilema ficou em suspenso na tábua liceal em que fora posto. Aliás, era impossível responder a direito: era a segunda vez que via em Lisboa essa cópia infernalmente deteriorada do documentário de Buñuel, e creio que pode dizer-se de ambas as passagens o que uma vez dizia Lopes Graça depois de ouvida em S. Carlos uma versão nacional da 9.ª Sinfonia de Beethoven: «Eles (referia-se ao público aplaudidor) julgam que ouviram a 9.ª Sinfonia de Beethoven»... Bastos anos depois vi realmente pela primeira vez Las Hurdes, seguidas e antecedidas de L'Age  d'Or e de Un Chien Andalou, também em cópias novas, e não pude deixar de lembrar-me da  pequena sala cheia da  S. N. B. A., da pergunta de Ernesto de Sousa, da resposta evasiva e da qualidade nula da cópia em julgado.


Os primeiros filmes de Buñuel: Um Cão Andaluz (1929), A Idade do Ouro (1930) e Las Hurdes (1933) 
Fotos encontradas na net.


     Um dos grandes méritos da biografia crítica de Buñuel agora publicada por Francisco Aranda (1) é precisamente a arrumação definitiva deste tipo de questão. Em páginas revistas pelo próprio Buñuel, revela-se-nos um surrealismo espanhol tão forte e independente do parisino que se afirma antes e prossegue depois. Também a este propósito será bom notar e fazer  notar que já em 1950 Breton publicava considerar aberrante a própria noção de Grupo Surrealista (2). São verdadeiramente notáveis, no poder  objectivo da sua agressividade, os poemas e textos inéditos ou esparsos agora reunidos por Francisco Aranda, alguns dos quais antecedem a actividade cinematografica e realmente a anunciam, como o poema em prosa «Palácio de Gelo», publicado em Madrid em 1924, ou o versi-poema «O Arco-Íris e a  Cataplasma», parte de um livro inédito que tem o significativo título de «Cão Andaluz»,  como notáveis são os apontamentos críticos e as respostas a tempo na série de entrevistas e de conversações insertas num tipo de sequência que tem muito a ver com o sistema da colagem surrealista, ou com a possível rodagem de um filme que se chamaria Luís Buñuel... A mais, porém, que estas meras questões de anterioridade original com relação ao surrealismo parisino, o trabalho de F. Aranda permite-nos ver com que actualidade máxima Buñuel pertence a esse surrealismo espanhol profundamente caracterizado, no passado, pela heterodoxia de um Abade Marchena, pela arte militante de um Goya e de um Gaudi, ou, entre os contemporâneos, pela órbita original em que circulam diversos um J. V. Foix, que em 1918 escreve algures dos primeiros textos oníricos surrealistas, um Juan Larrea, um Luís Cernuda; um Rafael Alberti, um José  Maria  de Hinojosa, para nos determos na geração de 27. 


Luis Buñuel durante a rodagem de Tristana, Toledo, Espanha. Foto de Mary Ellen Mark, 1969.


Realmente, se existe complexo cultural que grite desde há séculos e desde as próprias entranhas o conflito desgarrador de Eros é a morte da Vénus Celeste e a de exasperação dos sentidos, é este que bem poderia  ter nas suas fronteiras como  sentença dantesca o lema do «Amor Doido»,  de André Breton: «A beleza convulsiva será erótica-velada, explosiva-fixa, mágica-circunstancial, ou perecerá.» Nos heterodoxos e nos heréticos espanhóis não haverá porém a doce alternativa que apesar de tudo Breton oferece à revolução da vida. A beleza convulsiva será tudo isso e mais ainda, aterradora e embriagadora, mas conhecerá o destino de todas as coisas, que é perecer, e esta visão materialista não destrói, antes aumenta, à maneira dos primitivos, a disponibilidade poética. Buñuel: «Há pessoas muito inteligentes que acreditam em Deus. Porque não, no fim de tudo?  É da natureza humana a procura de uma esperança. Quanto a mim, não  posso deixar de ser como sou. Não recebi a Graça que dá a fé. Interessa-me uma vida com ambiguidades e contradições. O mistério é belo. Morrer e desaparecer definitivamente não me parece horrível, parece-me perfeito. Em contrapartida, a possibilidade de eternidade aterra-me. Escuta: se o meu  melhor amigo tivesse morrido liá muito e me aparecesse, me tocasse numa 'orelha e lhe pegasse fogo instantaneamente e eu não pensaria que ele tivesse saído do inferno. Nem por isso acreditaria em Deus, nem na Imaculada Conceição, nem que a Virgem me pudesse ajudar nos exames. Pensaria sómente: Luís, aqui tens outro mistério que também não entendes» (3)


Luis Buñuel tocando tambor em Calanda, Espanha.
Foto encontrada em flickr.com


     Neste contexto também me parece importante saber, na bela introdução ao conflito geral colocada nas páginas iniciais do livro, que os vinte e dois anos de exílio de Buñuel, e quiçá não apenas eles, moveram a mãe do realizador, fautora primordial da rodagem de Un Chien Andalou, a promover o filho ã categoria de santo, colocando-lhe  o retrato no oratório da casa, ao lado das imagens dos patronos milagreiros e das fotografias do Papa. De maneira nenhuma um intento de recuperação, explicável em força de amor materno, mas a razão outra e louca que pode caracterizar o complexo hispânico. O que assusta em Buñuel, é sua modernidade integral, é a coisificação que em tantos dos seus filmes  sofre o aparato católico. Tal herança chega ao  plateau em estado de madeira, pedra, sombra ou luz, coisas de que se fazem fotografias. Raramente haverá ironia, teria de apoiar-se num significado, num mobiliário útil, e Buñuel «realista» revela-nos um mundo de onde o verbo se ausentou há muito, onde os próprios actores, os personagens, são isentos de significação, movem-se a custo através de sistemas que já não coincidem com o mundo humano. Todo o lirismo foi cuidadosamente estirpado, e, como o tempo vai longe da epopeia, a imagem natural é fornecida pelo escorpião. No que tem eminentes precursores. Não é o poder erótico e blasfematório, transplantado para o «naturalismo» Buñuelesco, de um António Gavin, que surge em tantas cenas de  Viridiana, de L'Age d'Or,  de O Anjo Exterminador? A cinco séculos de vista, não será A Celestina,  de Fernando de Rojas, um primeiro argumento de  Belle de Jour? (4).
     Uma filmografia exaustiva, de 1926 a «Tristana», que ia sendo rodada em Portugal nestes últimos meses, faz-nos saber que Buñuel, nascido com o princípio do século, realizou ou foi co-realizador de cerca de quarenta filmes, dos quais apenas quatro, ao que recordo (Un Chien Andalou, Las Hurdes, O Monte dos Vendavais, La Mort dans Ce Jardin) surgiram em Portugal. Deixo às gentes de cinema, de distribuição de cinema, de técnica de cinema, de crítica de cinema, de gosto pelo cinema, a possível avaliação de causas e efeitos de tal catástrofe.

(1)  «Luís  Bunuel,  Biografia Crítica». por  J.  Francisco Aranda, Editorial Lumen. Barcelona, 1970.
(2) «Entretiens». com  ,André Parinaud. Ed. Gallimard. Paris.  1952.
(3) «Conversações com  Francisco  Aranda». pág. 255.  da Biografia citada.
(4) Ver  no  ensaio  de Xavier Domingo, «Erotique de L'Espagne», Ed. J. J. Pauvert, Paes.  1967

Mário Cesariny
Jornal A Capital 22 Abril 1970


Mário Cesariny no dia 25 de Abril de 1974. Foto de Ana Hatherly.
Fotod o Arquivo Fotográfico da CML.




quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Vida, paixão e arte de Chianca de Garcia


«O mais belo grande plano de mulher no cinema português é esse em 
que ela (Beatriz Costa) apareceu com as três camisas de um enxoval»
João Bénard da Costa a propósito de Aldeia da Roupa Branca

Chianca De Garcia - Entrevista (excertos). Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira. «Em 1982, Luis de Pina esteve com Chianca no Rio, onde participou, como entrevistador, (...) juntamente com Reinaldo Varela e José Manuel Coelho, filmes que a RTP transmitiu no Verão do ano passado.» M.J.D., em jornal Se7e 01-11-1983.


«Não se deve procurar no cinema nacional aquilo que existe no cinema estrangeiro, isto é, os seus problemas, os seus recursos, a sua expressão. No cinema nacional procura-se aquilo que tiver carácter e realidade nacional. Só isso interessa. O cinema português deve contar-nos histórias que o povo sinta, compreenda e viva.» (Chianca de Garcia)


Chianca de Garcia

Entrevista conduzida por José Alberto Braga

Expresso - 30 Dezembro 1977


Coisas boas em jornais

Beatriz Costa e Chianca de Garcia. Durante a rodagem do filme, O Trevo de Quatro Folhas, de que não existe cópia..
Foto encontrada em datasnahistoria.blogspot.pt


AUTOR teatral, realizador de cinema, encenador, director artístico, Chianca de Garcia foi tudo isso. Algumas peças suas foram êxito nos palcos lisboetas, nos anos 20 e 30, e alguns filmes por ele realizados tiveram igualmente sucesso. Mas ele é, sobretudo, o realizador desse grande êxito popular que se chama "A Aldeia da Roupa Branca". Um dia, em 1939, disse que ia ao Brasil por duas semanas. Nunca mais voltou. Lá ganhou maior nome, fama e prestígio.


«Chianca de Garcia: o ontem e o hoje». Copiado do Expresso 1977.

Em busca do ser humano

Expresso — Para começar, fale-nos da sua juventude. Enfim, suas primeiras memórias, curiosidades, etc.
Chianca de Garcia — Durante os meus primeiros anos fui contemporâneo de factos espantosos. O assassinato do rei D. Carlos, na rua do Arsenal, em 1908, fez-me descobrir o lado trágico da vida. Há coisas que acontecem quando algo está errado. Foi desde então, com constantes reprimendas familiares, que passei a acompanhar os acontecimentos que estavam conduzindo à queda da monarquia. Frequentei comícios. Uma vez, por acaso, vi Afonso Costa empolgar o povo com palavras de dinamite. Aquilo era bonito. Retórico. A multidão delirava. Foi quando de repente, um agente policial fulminou com dois tiros um velho operário que dava vivas à República. Fugi no meio da pancadaria geral. Também aplaudi António José de Almeida, que quinze anos mais tarde, assistiu, no camarote presidencial do Teatro Politeama, à peça "Filha de Lázaro", que eu escrevera com Norberto Lopes. Agora, era ele quem batia palmas. Mas a nós dois, no palco. No entanto, o Norberto, nunca tinha assistido a comícios, como eu. Também quero lembrar certa manhã em que indo com minha irmã para o colégio, vi o sorridente Bernardino Machado debruçar-se do seu carro, sorrir, e jogar para nós uma rosa que caiu a nossos pés. Minha irmã que era, e sempre foi, terrivelmente monarquista, calcou a rosa, e virou costas. Eu apanhei do chão as pétalas e guardei-as num livro de poesias de Gomes Leal; que levava debaixo do braço.

Ver e Amar, de 1930. O primeiro filme de Chianca de Garcia.
Foto de www.amordeperdicao.pt

EXP. — O que lia nesse tempo?
C.G. — Lia tudo. Até os anarquistas, Kropotkine e Bakunine. Mas o que eles pregavam sempre me pareceu uma utopia. Meu sentido lisboeta levava-me com mais facilidades para a leitura e releitura das "Farpas", do Eça, das pasquinadas do Fialho. Também me empolgava o jeito espectacular da prosa do Oliveira Martins. Ainda hoje gostaria de reler a fuga do Príncipe Regente, e da Rainha Louca, para o Brasil, quando da invasão francesa. Enfim os grandes desesperos.

EXP. — O que procurava, então?
C.G. — Encontrar alguém que me ensinasse o que era, afinal, o ser humano.

EXP. — E encontrou?
C.G. — Anos mais tarde. Foi quando, creio que o José Gomes Ferreira, colocou nas minhas mãos o primeiro volume, em edição francesa, das obras de Dostoiewski. Dostoiewski foi para mim a revelação. Desvendou-me nossos anjos e nossos demónios. Li tudo que dele saiu então na França. Nunca mais quis voltar a lê-lo. Eu não nascera para personagem "dostoiewskiano". Era apenas um pequeno burguês ambicioso e que não queria ficar desconhecido.

O Trevo de Quatro Folhas de 1936. Filme de Chianca de Garcia, de que não existe qualquer cópia: cena com Beatriz Costa e Procópio Ferreira. Foto Estúdios Novais e Fundação Gulbenkian.

EXP. — Que carreira pretendia, seguir nessa época?
C.G. - Não consegui sequer chegar a matricular-me em Direito, como todos os meus companheiros. Com diplomas, eles tinham lugares marcados na sociedade. Eu, sem diploma, procurava o meu destino. Aprendi a gostar de um verbo. O verbo fazer. Sim, tinha de fazer coisas para ser alguém, para não ser um anónimo, um João Ninguém. Sim, fazer coisas, inventar, criar, mas o quê?  
Parava, às vezes distante das portas do teatro, lia os cartazes, e pensava: aí está uma coisa que eu gostaria de fazer, comédias. Os personagens, bons ou maus, tinham de sair da minha cabeça...

Crítico teatral: uma vez bastou

A Rosa do Adro de 1938. Realizado no mesmo ano de Aldeia da Roupa Branca. Foto de jcabral.info e Chianca de Garcia visto por Amarelhe. 1939. Copiado de O Jornal da Educação,1983.

EXP. — E veio então o teatro?
C.G. — Não tão fácil. Mas a vida dá sempre um jeitinho. Fora do meu grupo habitual, no Martinho, tinha há muito um grande e generoso amigo, o jornalista Artur Inês, que sempre me deixava escrever crónicas nos inúmeros jornais que então fundava. Era um grande e popular jornalista, o Artur Inês. E gostava de mim. Foi quando ia iniciar a publicação de um novo jornal, creio que "O Rossio", que consegui que me escolhesse para crítico teatral. "O quê, tu crítico teatral? Porquê?". "E porque não posso?" — respondi. "Até hoje eu assisto a todas as peças, mas lá do alto das torrinhas, que é barato. Agora como critico, irei de graça e assisto às peças nas primeiras filas. É isso que eu quero!" Ele riu. O teatro, na Imprensa, não era levado muito a sério e fui ver a minha primeira peça como crítico.

EXP. — E foi crítico durante muito tempo?
C.G. — Nada disso. Só fiz uma única crítica, no jornal do Artur Inês. Fui assistir a uma comédia elegante entre damas e adultérios na alta sociedade. Ridiculizei a peça e o seu autor. No dia seguinte, ia entrando no Martinho cheio de prosopopeia, quando fui cercado por três ou quatro companheiros do autor que caíram sobre mim às bengaladas. O autor, além de monárquico, era integralista, e isso foi a minha sorte pois meus amigos republicanos que faziam da Brasileira, do Rossio, o seu quartel-general, mal souberam do caso correram para iniciar uma caçada aos adeptos de D. Duarte. O assunto saiu nos jornais. Nossos nomes foram falados, discutidos. Passei a ser conhecido. Mas prudentemente, o Artur Inês tirou-me a carteira de crítico teatral.
Passei a ser comentarista de futebol. Deveria ter então 19 anos de idade. Mas não desistiria do teatro. Pelo contrário. Poucos anos depois subia à cena, no Politeama, como já contei, a peça "Filha de Lázaro", de que era co-autor comigo o também jornalista Norberto Lopes, esse de facto doutor em Direito.

O nascimento da «Aldeia da Roupa Branca»

 Cartaz, cena do filme Aldeia da Roupa Branca e entrevista com Chianca de Garcia em 1939, aquando da estreia do filme no Tivoli. 
Fotos encontradas em cine-portugues.blogspot.pt

EXP. — E como é que você passou do teatro para o cinema?
C. G. — Eu queria tentar tudo. Desejava ser, se pudesse, um homem dos sete ofícios. Agora estava disposto a conhecer os segredos do cinema, pois já conhecera a experiência do palco. Não era doutor em nada, mas queria formar-me em espectáculos.

EXP. — Qual era, nessa época, o melhor cinema de Lisboa?
C.G. — Sem dúvida nenhuma, o Tivoli. Então pensei: "E se eu pudesse bater o Tivoli?" Como?
Bem, eu vim a saber que o teatro República, ou seria vendido, ou passava a sala exibidora de filmes, mesmo de segunda classe. Eu conhecia vagamente o seu administrador, o advogado Ricardo Jorge, filho do escritor e professor Ricardo Jorge, que foi médico de Camilo Castelo Branco quando velho e quase cego. E eu disse-lhe: "Consta-me que vai transformar o teatro em cinema, é verdade?" E ele disse-me: "Não sei. Pensamos nisso. Mas a verdade é que eu não percebo nada de cinema". Era a minha chance, e tive que mentir: "Não? Mas eu sei tudo. Chame-me para o seu lado, e nós podemos fazer do República o mais importante cinema de Lisboa". A conversa prolongou-se durante horas. A ideia foi lançada. E ninguém queria acreditar. Mas a verdade é que um ano depois, sob o nome de São Luís, nascia o mais importante cinema da capital portuguesa. Foi assim que eu passei a ser um homem da indústria cinematográfica. Mas tive que aprender tudo. Principalmente a ter o faro necessário para saber exigir e escolher grandes filmes. Passei a ser uma personalidade na Rua do Tesouro Velho. Tive que lutar com os homens da Metro e da Paramount. E vencê-los.


Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil, com Procópio Ferreira no protagonista.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

EXP. — E como surgiu o seu interesse pelo cinema português?
C.G. — O som e a palavra tinham chegado ao cinema. Eu, é claro, fui dos primeiros a querer cinema na nossa língua, mas feito em Portugal. O Leitão de Barros, o António Lopes Ribeiro, o Brum do Canto, também. Mas falar era fácil. O difícil era convencer um homem inteligente e culto que, conhecendo a Lisboa dos banqueiros e dos magnates, conseguisse convencê-los a serem úteis ao cinema nacional. Ora, esse homem estava ao meu lado. Era Ricardo Jorge. E foi com tacto e diplomacia que ele conseguiu esse milagre que foi a construção da Tóbis Portuguesa. Primeiros filmes. Indecisões. Até que um dia eu lhe disse: "Eu creio que o público está cansado de ver a toda a hora a cara da Greta Garbo e da Norma Shearer. No fundo, o que se deseja é ver e ouvir no cinema o alegre riso de um rosto feminino e lusitano.".
Mas foi preciso que eu inventasse ali mesmo uma história bem quotidiana dos costumes lisboetas, com lavadeiras, carroças de hortaliças, esperteza saloia, burricos, morangos de Sintra, coisas assim, para que nos campos do Lumiar surgisse o filme "Aldeia da Roupa Branca".


Fotos de actores do filme Pureza de 1940, um dos dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Fotos encontradas em www.bcc.org.br

«Só duas semanas»

EXP. — Como se explica que, logo após o sucesso da "Aldeia da Roupa Branca", viesse  para o Brasil?
C.G. — Nós, em Portugal, não éramos felizes. Hitler queria tomar conta do mundo. Na Espanha, Franco, batia-se contra os republicanos de Madrid. Foi quando o então grande empresário José Loureiro me convidou para ir com ele ao Brasil. São duas semanas só, disse eu ao querido amigo Frederico de Lima Mayer, com quem estava trabalhando no Tivoli, depois de ter saído do São Luís, com Ricardo Jorge. "Mas só duas semanas, é?" "Só, garanto". E ele: "Então vá". Pois é, já lá vão quarenta anos, ou quase. Frederico de Lima Mayer não é mais deste mundo. Nem Ricardo Jorge. Ramada Curto, que escreveu os diálogos da "Aldeia", desapareceu há muito. Enfim, vivos, bem vivos, bem conhecidos e famosos, só o José Gomes Ferreira e a nossa Beatriz. E ainda alguns amigos, como o Augusto Fraga que acompanhou todas as fases das filmagens.


Dezoito anos separam estas duas  fotos:  em cima Chianca com o actor brasileiro Fregolente (1952); em baixo, falando de teatro com os seus alunos (1970). Copiado do Expresso 1977.

EXP — Fale-nos destes seus quarenta anos brasileiros. O país correspondeu à sua expectativa?
C. G. — Sim. O que me surpreendeu desde a primeira impressão foi a sua grandeza, as suas possibilidades. O Brasil ensinou-me a ver e a compreender em grande. O Brasil é, em si mesmo, um grande espectáculo. E eu, como creio que já lhe disse, sempre tive a paixão dos grandes espectáculos. Durante anos pensei em recriar, no teatro, toda a violência do Velho Testamento. Mas no Brasil, entre outras oportunidades, tive a de contar a verídica história da velha cidade do Salvador; na Bahia, num desfile monumental comemorativo dos quatro séculos da sua fundação...

EXP. — Sim, mas antes há os famosos espectáculos do Casino da Urca, aqui no Rio.
C. G. — Certo. Durante cinco anos idealizei e dirigi, com alto luxo, espectáculos por certo mais ricos dos que eram apresentados na Broadway, em Nova Iorque. Mas quando o Governo proibiu o jogo no Brasil, levei para a Praça Tiradentes, os mesmos espectáculos que até aí tinham sido vistos apenas pelas elites. E junto do público da classe média, e francamente popular, o êxito foi até muito superior.


Cartazes dos filmes Pureza de 1940 e 24 Horas de Sonho de 1941, os dois filmes realizados por Chianca de Garcia no Brasil.
Cartazes encontrados em www.bcc.org.br

Da fase heróica à profissional

EXP. — Procure dar-nos um resumo de suas actividades artísticas nestes 40 anos de Brasil.
C. G. — Posso dividir em duas fases. A primeira é a histórica. Grandiosidade. Nela reúno os espectáculos da Bahia, mas a inauguração de Brasília, e a encenação, no Maracanãzinho, de uma evocação do antigo Rio de Janeiro, espectáculo em que o palco ocupava metade do tamanho daquele conhecido estádio. Nunca voltou a fazer-se nada igual. São três momentos que marcaram para sempre a minha vida. Ou o meu estilo. Como tentar prová-lo, não sei. Mas na edição das obras completas do escritor e académico Josué Montello, lá está no capítulo "Teatro: — Alegoria das Três Capitais, espectáculo encenado no alto do palácio do Congresso, em Brasília, de colaboração com Chianca de Garcia". Por sua vez, na Bahia, 13 anos antes, creio também o escritor e académico Pedro Calmon, foi autor de um folheto onde explicava o desenvolvimento que eu dera ao desfile, que era da graça e glória da Bahia. E ainda a propósito dessa comemoração, quero lembrar o nome do grande Assis Chateaubriand, que em artigo divulgado por todos os 50 jornais de que era então dono e senhor, no Brasil, escreve: "Chianca apresentou a coisa mais bonita que os portugueses fizeram desde o descobrimento do Brasil…”



 Fotos do último filme Chianca de Garcia, 24 Horas de Sonho de 1941.
Fotos encontradas em www.meucinemabrasileiro.com

EXP. — Também não era para menos, Chianca. A cidade de São Salvador (Bahia) Inteira ficou fascinada com o desfile dos seus dois mil participantes. Mas, e a outra, a segunda fase?
C. G. — Essa é meramente profissional. Mais activa. Teatro musicado ligeiro, cinema, televisão nos seus primórdios, viagens através dos estados com peças alegres, de humor, e mulheres bonitas, sem esquecer a fase jornalística, que por sinal ainda perdura, na "Revista de Teatro".

EXP. — Os jornais andam anunciando a sua ida a Lisboa, iniciativa do empresário Vasco Morgado, creio.
C.G. — Ele de facto, numa das suas visitas à SBAT — Sociedade Brasileira de Autores Teatrais — em plena assembleia de sócios, disse que estava ali para me convidar a ir a Lisboa, onde, no seu teatro, seria apresentado aos espectadores como o filho pródigo do cinema português. Foi muito aplaudido. E eu, naturalmente fiquei emocionado. Em carta, mais tarde, Morgado sugeriu que eu fosse a Lisboa neste Natal de 1977. Expliquei-lhe que estava sendo convidado, para, de novo, na Bahia, ajudar a criar, em Porto Seguro, um pólo cultural e turístico que ficasse como marco do descobrimento do Brasil, tendo eu sugerido a reconstituição da chegada das naus, que seria completado com a encenação teatral da carta de Pero Vaz de Caminha. Por isso, respondi-lhe que não poderia ir Lisboa antes de Abril de 1978.
Desculpem os meus amigos de Lisboa, mas eu tinha de dar preferência ao pedido dos baianos. Fiquei no Brasil. Mas se ele quiser, em 1978, irei a Lisboa representar, com o maior prazer, o meu pequeno papel bíblico de filho pródigo. Neste caso, só espero que o meu coração resista, à reconstituição de alguns dos momentos mais caros da minha juventude.

Entrevista de José Alberto Braga
Títulos e texto em Expresso, 30 Dezembro 1977


Chianca de Garcia (1898 - 1983)
Foto encontrada na net


José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia


«... Eduardo Chianca de Garcia, como já disse, partiu para o Brasil e só nos anos sessenta, suponho, voltou a Portugal desfeito em palavras das suas crónicas publicadas semanalmente no «Diário de Lisboa» sob o título de Cartas do Brasil. Nem calculam o pasmo das gentes novas lisboetas que de repente viam surgir, num dos melhores jornais de Lisboa, um escritor desconhecido mas tão pujante, com imaginação de mestre e uma linguagem preciosa propositadamente portuga-brasuca, sem no entanto perder a raiz bem portuguesa de lei que aprendera nos livros de Camilo, Garrett, Herculano, etc., que a avó, Dona Amélia Carvalho Chianca, guardava em três baús e lhos dava a ler em miúdo, às escondidas, conforme o Eduardo nos conta no seu relato de memórias inventadas, insertas também, mais tarde, no «Diário de Lisboa»: «Os Verdes Anos da República de 1910». O talento literário de Chianca (cujo apelido materno jurávamos então provir de um príncipe genovês) sempre nos pareceu de evidência total.»
(José Gomes Ferreira, citado no jornal se7e em 01-11-1983)




José Gomes Ferreira sobre Chianca de Garcia. Imagens de Arquivo da RTP, retiradas da série "Sonhar 
era Fácil". Série de cinco episódios dedicada ao humor português, realizada por Leandro Ferreira.




Beatriz Costa sobre Chianca de Garcia

.... Chianca mantém no «Diário de Lisboa» uma página semanal, Cartas do Brasil, que já fez escola... Nessas cartas ele fala de tudo e de todos com amor, verve e inteligência, a ponto de certos termos cariocas já se terem popularizado em Portugal. Gosta tanto do Brasil como eu gosto de um e de outro... Sou amiga desse homem desde que entrei para o teatro. Hoje somos parentes honorários, por minha vontade e seu consentimento. Já o pedi em casamento, mas ele desatou a rir e não tomou a sério. Este poço de inteligência faria a felicidade de uma rainha, que em geral é sempre uma mulher mal amada...» 
Beatriz Costa, em 1975, no seu livro «Sem Papas na Língua». In, se7e 01-11-1983




 Chianca de Garcia: o cinema-espectáculo (excerto)
por Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


«Chianca de Garcia pertenceu a uma geração que, caldeada no modernismo, na cinefilia e na ambição de uma sociedade nova, revelava também uma clara aristocracia de gosto, de inteligência e sentido cívico, obviamente participativa mas colocada numa meia distância amável entre o intelectual e o popular. 
Sabia também defender-se, ao defender as suas preferências em termos estritamente cinematográficos, do melodrama convencional e da tentação folclórica. Basta ver como são postos em causa, na «Canção de Lisboa», o fado, o bairrismo pequeno-burguês e a hipocrisia social ou como na «Aldeia da Roupa Branca», se esconde, por detrás do aparente folclorismo saloio, o conflito do velho e do novo que, segundo Chianca me disse no Rio, confirmando uma tese por mim aventada, procurava seguir a ideia traçada em «A Linha Geral», de Eisenstein: a camioneta deste filme assemelha-se em tudo ao tractor do filme russo, na sua capacidade de resolver o conflito superando a situação antiga.»
Luis de Pina, O Jornal 18-02-1983


O Trevo de 4 Folhas (excerto de 4 minutos). Noticia em O Jornal. 12-12-1986.



quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A ‘IDA’ AO POVO


AS CAMPANHAS DE DINAMIZAÇÃO CULTURAL (1974-75)



Por
Cláudia Lobo
Revista Visão História 01-07-2010

Coisas boas em jornais

«ALDEIA DE MÓS, CASTRO DAIRE, MAIO DE 1975 - A Operação Beira-Alta seria a mais longa e mais completa de todas as Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA. Em Mós os militares procederiam à vacinação de bovinos com a ajuda de uma equipa de veterinários dirigida pelo tenente-coronel Ribeiro (ao centro) e pelo capitão-veterinário Sá Dantas.» 1975. Guy Le Querrec. Foto copiada da revista Visão História.


Quando, a 30 de maio de 1975, foi finalmente publicado o decreto-lei que criava o Serviço Cívico Estudantil, Fernando Negreira estava a acabar o 7º ano no Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Queria entrar em Engenharia, mas os caminhos da Revolução levá-lo-iam à «universidade da vida»: quem quisesse ingressar na faculdade devia prestar voluntariamente, durante um curto período de tempo, aquilo a que hoje se chamaria serviço à comunidade.
A ideia do Serviço Cívico Estudantil germinara em outubro de 1974, mês em que o capitão Ramiro Correia e o diretor-geral de Cultura e Espetáculos apresentaram em conferência de imprensa as linhas de orientação das Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA, tuteladas pela Comissão Dinamizadora Central (CODICE) da 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas. O espírito que presidia às duas iniciativas — tal como o que norteou outros projetos, nomeadamente o SAAL — era semelhante. «Pretendia-se não só conhecer a ‘verdadeira vida do povo’, diagnosticando a sua situação, como também agir e contribuir para a sua ação na construção de uma nova sociedade que vencesse a questão da desigualdade social», escreve a socióloga e professora do ISCTE Luísa Tiago de Oliveira, na tese de doutoramento Estudantes e o Povo na Revolução — O Serviço Cívico Estudantil (Celta Editores). É sua a expressão ‘ida ao povo’.


«SERVIÇO CÍVICO - No Cachão, ensinando adultos a aprenderem a ler, em agosto.» 1975.
Foto Fernando Negreira copiada da revista Visão História.


SEDE DE APRENDER

Visão História
Cabia ao Ministério da Educação e Cultura a responsabilidade do Serviço Cívico, no qual se inscreveriam em 1975, na contabilidade de Luísa Tiago de Oliveira, 11 814 alunos. Os estudantes seriam colocados segundo a sua lista de preferências — e Fernando foi parar à sua segunda opção, a campanha de alfabetização. «A minha primeira escolha tinham sido as Brigadas Giacometti.»
Com um passe da CP fornecido pelo Serviço Cívico, parte para Trás-os-Montes. Durante agosto, dormindo no chão da sala da Junta de Freguesia, dá aulas a adultos na escola primária do Cachão, aldeia do concelho de Mirandela onde se situava um importante Complexo Agro-Industrial. Consigo estavam mais nove ‘professores’, chegados de Coimbra e do Porto, e um orientador, esse já universitário. Os filhos dos transmontanos a quem Fernando dava aulas haviam emigrado; restavam avós e netos. «As pessoas queriam muito aprender», recorda. «Dávamos aulas duas vezes por dia, ao final da tarde e ao princípio da noite — a partir das 10 horas faltava muitas vezes a luz.» 
Era troca por troca — letras por pão. «As pessoas traziam-nos tachos, e era dali que comíamos.» A fome de aprender era grande — Portugal tinha mais de 30% de analfabetos quando a Revolução chegou.


«MICHEL GIACOMETTI - O pai do Plano de Trabalho e Cultura, que funcionou nesse verão.» 1975.
Foto Arquivo A Capital copiada da revista Visão História.


Visão História
O SONHO DE TRÁS-OS-MONTES

Enquanto esteve em Trás-os-Montes, o nosso jovem futuro engenheiro que nunca chegaria a sê-lo não se cruzou com militares. Mas os homens das brigadas do MFA andavam por terras quentes: decorria a campanha Maio-Nordeste, sob o lema «Trabalhar com o Povo — Construir a Revolução»
«Trás-os-Montes, o país real, é uma ferida aberta no País», escrevia o jornalista Mário Contumélias no Diário de Notícias de 3 de junho. O repórter estava em Faílde, uma aldeia sem água canalizada, posto médico ou Casa do Povo. «Começamos a perder o entusiasmo e as ilusões: vai demorar ainda muito tempo antes que as coisas melhorem tanto quanto queremos e é necessário.»



«POVO MFA - João Abel Manta desenhou os autocolantes das campanhas de dinamização.»  Pintura (cartazes); “MFA-Povo-MFA” e “Sentinela do Povo”. Dinamização Cultural, Lisboa 1974. Foto de arte-factoheregesperversoes.blogspot.pt


Duas semanas mais tarde, as brigadas do MFA chegariam a Paio-Torto, concelho de Mirandela, onde na escola só não se tiritiva de frio graças ao calor dos animais, colocados no andar de baixo do edifício, a chamada «loja». Aulas com cheiro a bosta, casa de banho ao lado das manjedouras das vacas. A população elegera uma Comissão de Aldeia sob a orientação do MFA, que reunira já 130 contos para resolver o problema da escola.
«O povo não é facilmente mobilizado por ideologias, mas sim por objetivos concretos, mostrando as populações grande interesse e preocupação em ver alguns dos seus problemas resolvidos», lê-se num documento do MFA de balanço da Maio-Nordeste, citado em Camponeses, Cultura e Revolução, tese de doutoramento da antropóloga Sónia Vespeira de Almeida, sobre as Campanhas de Dinamização Cultural do MFA (Edições Colibri). 
«É verdadeiramente através da solução de problemas concretos que o MFA se transforma em imaginário social de libertação, no centro de um universo simbólico de luta contra a miséria e a injustiça», defende o sociólogo Boaventura Sousa Santos na comunicação Crise do Estado e a Aliança Povo/MFA em 1974-1975, escrita dez anos depois do 25 de Abril.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Visita a um agricultor. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


ALIANÇA POVO-MFA

Nesta altura, as campanhas de Dinamização Cultural já tinham efetuado centenas de sessões de esclarecimento, ajudado a traçar estradas e a rasgar caminhos, levando eletricidade e água potável a aldeias, transportado médicos e veterinários a lugarejos escondidos. As brigadas centraram-se sobretudo no Minho, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa, segundo Sónia Vespeira de Almeida.
Para trás ficara uma primeira fase, terminada em março, centrada na ideia da revolução cultural e que agregou à volta dos militares centenas de artistas. Para citar apenas alguns exemplos: no teatro, a Cornucópia e a Comuna; nas Artes Plásticas, João Abel Manta e Vespeira ; na música, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes; cinema, bailado e circo também estavam presentes.
O Documento Guia da Aliança Povo-MFA, de julho de 1975, conhecido como «Documento do Copcon», marca uma nova etapa no rumo do Verão Quente, institucionalizando «os órgãos do poder popular ancorados em organismos de base como as comissões de moradores, as comissões de trabalhadores, os conselhos de aldeia». A segunda diretiva do CODICE, que estipula a colaboração com o Copcon, é clara: um dos objetivos fundamentais passa a ser «incrementar a reunião de Assembleias Populares». Daí a Comissão de Aldeia em Paio-Torto.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de suínos. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


ESPÓLIO DO VERÃO QUENTE

Constantim, Cicouro e S. Martinho da Angueira, concelho de Miranda do Douro, talvez não tivessem comissões de aldeia — mas a Revolução também lá se fez sentir. Pelas três passou Luísa Tiago de Oliveira cumprindo o Serviço Cívico, com uma das brigadas de Giacometti, as tais onde Fernando Negreira não foi colocado.
Visão História
O nome correto destes grupos era, na verdade, brigadas do Plano de Trabalho e Cultura. Mas ficariam conhecidas pelo nome do homem da ideia, 
Michel Giacometti, etnólogo corso apaixonado pelo nosso folclore que percorrera Portugal durante os 17 anos anteriores. Integrado no Serviço Cívico, e com o apoio do INATEL e da Gulbenkian, o Plano de Trabalho e Cultura foi organizado em três meses. Antes de partirem para o terreno, os 124 jovens escolhidos frequentaram um curso de formação em áreas tão diferentes como higiene pública, cooperativismo ou literatura popular. Gravador e máquina fotográfica viajavam na bagagem das 32 equipas que em julho, agosto e setembro percorreram os caminhos traçados por Giacometti. 
A herança desse Verão Quente é impressionante: recolha de 1 200 instrumentos de trabalho agrícola, registo sonoro de 3 mil trechos de literatura oral (contos, lendas, provérbios, rezas, etc.), compilação de fórmulas medicinais populares. 
Luísa Tiago de Oliveira viria a fazer do Serviço Cívico Estudantil o tema do seu doutoramento em Sociologia. Quanto a Fernando Negreira, que se tornou fotógrafo, decidiu nesse verão partir para outra aldeia, Arcozelo, com uma equipa de filmagens que rodava uma película sobre as campanhas de alfabetização. A liberdade estava mesmo a passar por ali.

Cláudia Lobo, Revista Visão História 01-07-2010


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Vila de Laboncinho. Maio 1975. Guy Le Querrec.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Vacinação de Animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Mós e Termas do Carvalhal. Maio 1975. Guy Le Querrec.


Campanha de ação cultural e cívica, realizada por uma equipa veterinária do Movimento das Forças Armadas (MFA). Bebendo um copo oferecido por um habitante depois da vacinação de animais. Beira Alta, Concelho de Castro Daire. Aldeia de Parada de Ester. Maio 1975. Guy Le Querrec.


(Fotos de Guy Le Querrec/Magnum Photos)

GUY LE QUERREC - Nascido em Paris em 1941 em uma família modesta da Bretanha, Guy Le Querrec fez as suas primeiras imagens com músicos de jazz de Londres na década de 1950, fazendo a sua estréia profissional em 1967. Dois anos mais tarde, ele foi contratado pela revista Afrique Jeune como editor de imagem e fotógrafo, e fez as suas primeiras histórias na África francófona, incluindo o Chade, Camarões e Níger. Em 1971, ele confiou os seus arquivos à Vu, recentemente fundada por Peter Fenoyl, e em 1972 co-fundou a cooperativa agência Viva, que deixou três anos depois. Guy Le Querrec juntou-se à Magnum em 1976. No final de 1970, ele co-dirigiu dois filmes, e em 1974 e 1975 esteve em Portugal e fotografou a "revolução", principalmente as campanhas de dinamização cultural, cujas fotos podem ser vistas no site da Magnum. Em 1979 publicou um livro: Portugal 1974-1975 : Regards sur une tentative de pouvoir populaire.


João Abel Manta, “Muito prazer em conhecer vocelências”. 1975?


Um testemunho das campanhas LER AQUI