por
Mário Cesariny
Jornal A Capital 22 Abril 1970
por
Mário Cesariny
Jornal A Capital 22 Abril 1970
Luis Buñuel, carregando a cruz durante a rodagem do filme A Via Láctea. 1970.
Foto encontrada em www.dga.org
«Detesto o pedantismo e o jargão. Já me aconteceu rir até às lágrimas ao ler alguns artigos dos Cahiers du Cinéma. Na Cidade do México, tendo sido nomeado presidente honorário do Centro de Capitacion Cinematográfica pela Escola Superior de Cinema, um dia fui convidado a visitar as suas instalações. Apresentam-me quatro ou cinco professores. Um deles é um jovem bem vestido, corando de timidez. Pergunto-lhe que disciplina ensina. Ele responde: " A semiologia da imagem clónica." Apeteceu-me assassiná-lo.» Luis Buñuel em O Meu Último Suspiro.
Coisas boas em jornais
Há muitos anos já foi-me perguntado,
passavam uma cópia ultradeficiente, não haveria outra, de Las Hurdes — Tierra Sin Pan, de Buñuel, se achava este filme mais
ou menos surrealista do que Un Chien Andalou, fita cujo guião teve, como
é sabido, a colaboração de Salvador Dali. Pela maneira como perguntava (José
Ernesto de Sousa) ouvi que era a uma escolha que se incitava, que era para se
escolher entre o que todo o mundo admitia como um clássico surrealista (Un
Chien Andalou) e um clássico também «ista» mas talvez não surreal, considerada,
embora com alguma dificuldade, a qualidade documental de Las Hurdes. A pergunta
viciosa, resposta viciada: respondi que no meu entender este último era um
filme muito mais surrealista do que Un Chien Andalou e, mesmo, do que L'Age
d'Or, e o dilema ficou em suspenso na tábua liceal em que fora posto.
Aliás, era impossível responder a direito: era a segunda vez que via em Lisboa
essa cópia infernalmente deteriorada do documentário de Buñuel, e creio que
pode dizer-se de ambas as passagens o que uma vez dizia Lopes Graça depois de
ouvida em S. Carlos
uma versão nacional da 9.ª Sinfonia de Beethoven: «Eles (referia-se ao público aplaudidor) julgam que ouviram a 9.ª
Sinfonia de Beethoven»... Bastos anos depois vi realmente pela primeira vez
Las Hurdes, seguidas e antecedidas de L'Age
d'Or e de Un Chien Andalou, também em cópias novas, e não pude deixar de
lembrar-me da pequena sala cheia da S. N. B. A., da pergunta de Ernesto de Sousa,
da resposta evasiva e da qualidade nula da cópia em julgado.
Os primeiros filmes de Buñuel: Um Cão Andaluz (1929), A Idade do Ouro (1930) e Las Hurdes (1933)
Fotos encontradas na net.
Um
dos grandes méritos da biografia crítica de Buñuel agora publicada por Francisco
Aranda (1) é precisamente a arrumação definitiva deste tipo de questão. Em
páginas revistas pelo próprio Buñuel, revela-se-nos um surrealismo espanhol tão
forte e independente do parisino que se afirma antes e prossegue depois. Também
a este propósito será bom notar e fazer
notar que já em 1950 Breton publicava considerar aberrante a própria noção
de Grupo Surrealista (2). São verdadeiramente notáveis, no poder objectivo da sua agressividade, os poemas e
textos inéditos ou esparsos agora reunidos por Francisco Aranda, alguns dos
quais antecedem a actividade cinematografica e realmente a anunciam, como o
poema em prosa «Palácio de Gelo», publicado em Madrid em 1924, ou o versi-poema
«O Arco-Íris e a Cataplasma», parte de
um livro inédito que tem o significativo título de «Cão Andaluz», como notáveis são os apontamentos críticos e
as respostas a tempo na série de entrevistas e de conversações insertas num tipo
de sequência que tem muito a ver com o sistema da colagem surrealista, ou com a
possível rodagem de um filme que se chamaria Luís Buñuel... A mais, porém, que
estas meras questões de anterioridade original com relação ao surrealismo
parisino, o trabalho de F. Aranda permite-nos ver com que actualidade máxima Buñuel
pertence a esse surrealismo espanhol profundamente caracterizado, no passado, pela
heterodoxia de um Abade Marchena, pela arte militante de um Goya e de um Gaudi,
ou, entre os contemporâneos, pela órbita original em que circulam diversos um
J. V. Foix, que em 1918 escreve algures dos primeiros textos oníricos surrealistas,
um Juan Larrea, um Luís Cernuda; um Rafael Alberti, um José Maria
de Hinojosa, para nos determos na geração de 27.
Realmente, se existe
complexo cultural que grite desde há séculos e desde as próprias entranhas o
conflito desgarrador de Eros é a morte da Vénus Celeste e a de exasperação dos
sentidos, é este que bem poderia ter nas
suas fronteiras como sentença dantesca o
lema do «Amor Doido», de André Breton: «A beleza convulsiva será erótica-velada,
explosiva-fixa, mágica-circunstancial, ou perecerá.» Nos heterodoxos e nos heréticos
espanhóis não haverá porém a doce alternativa que apesar de tudo Breton oferece
à revolução da vida. A beleza convulsiva será tudo isso e mais ainda,
aterradora e embriagadora, mas conhecerá o destino de todas as coisas, que é perecer,
e esta visão materialista não destrói, antes aumenta, à maneira dos primitivos,
a disponibilidade poética. Buñuel: «Há pessoas
muito inteligentes que acreditam em Deus. Porque não, no fim de tudo? É da natureza humana a procura de uma esperança.
Quanto a mim, não posso deixar de ser
como sou. Não recebi a Graça que dá a fé. Interessa-me uma vida com
ambiguidades e contradições. O mistério é belo. Morrer e desaparecer definitivamente
não me parece horrível, parece-me perfeito. Em contrapartida, a possibilidade
de eternidade aterra-me. Escuta: se o meu
melhor amigo tivesse morrido liá muito e me aparecesse, me tocasse numa 'orelha
e lhe pegasse fogo instantaneamente e eu não pensaria que ele tivesse saído do inferno. Nem por isso acreditaria em Deus,
nem na Imaculada Conceição, nem que a Virgem me pudesse ajudar nos exames. Pensaria
sómente: Luís, aqui tens outro mistério que também não entendes» (3)
Luis Buñuel durante a rodagem de Tristana, Toledo, Espanha. Foto de Mary Ellen Mark, 1969.
Luis Buñuel tocando tambor em Calanda, Espanha.
Foto encontrada em flickr.com
Neste contexto também me parece importante saber,
na bela introdução ao conflito geral colocada nas páginas iniciais do livro, que
os vinte e dois anos de exílio de Buñuel, e quiçá não apenas eles, moveram a mãe
do realizador, fautora primordial da rodagem de Un Chien Andalou, a promover o
filho ã categoria de santo, colocando-lhe o retrato no oratório da casa, ao lado das
imagens dos patronos milagreiros e das fotografias do Papa. De maneira nenhuma
um intento de recuperação, explicável em força de amor materno, mas a razão
outra e louca que pode caracterizar o complexo hispânico. O que assusta em Buñuel,
é sua modernidade integral, é a coisificação que em tantos dos seus filmes sofre o aparato católico. Tal herança chega
ao plateau em estado de madeira, pedra,
sombra ou luz, coisas de que se fazem fotografias. Raramente haverá ironia,
teria de apoiar-se num significado, num mobiliário útil, e Buñuel «realista» revela-nos
um mundo de onde o verbo se ausentou há muito, onde os próprios actores, os
personagens, são isentos de significação, movem-se a custo através de sistemas que já não coincidem com o mundo
humano. Todo o lirismo foi cuidadosamente estirpado, e, como o tempo vai longe
da epopeia, a imagem natural é fornecida pelo escorpião. No que tem eminentes
precursores. Não é o poder erótico e blasfematório, transplantado para o «naturalismo»
Buñuelesco, de um António Gavin, que surge em tantas cenas de Viridiana, de L'Age d'Or, de O Anjo Exterminador? A cinco séculos de
vista, não será A Celestina, de Fernando
de Rojas, um primeiro argumento de Belle
de Jour? (4).
Uma filmografia exaustiva, de 1926 a «Tristana», que ia
sendo rodada em Portugal nestes últimos meses, faz-nos saber que Buñuel, nascido
com o princípio do século, realizou ou foi co-realizador de cerca de quarenta
filmes, dos quais apenas quatro, ao que recordo (Un Chien Andalou, Las Hurdes, O Monte dos Vendavais, La Mort dans Ce Jardin) surgiram em Portugal. Deixo às
gentes de cinema, de distribuição de cinema, de técnica de cinema, de crítica
de cinema, de gosto pelo cinema, a possível avaliação de causas e efeitos de
tal catástrofe.
(1)
«Luís Bunuel, Biografia Crítica». por J.
Francisco Aranda, Editorial Lumen. Barcelona, 1970.
(2) «Entretiens». com ,André Parinaud. Ed. Gallimard. Paris. 1952.
(3) «Conversações com Francisco
Aranda». pág. 255. da Biografia
citada.
(4) Ver
no ensaio de Xavier Domingo, «Erotique de L'Espagne»,
Ed. J. J. Pauvert, Paes. 1967
Jornal A Capital 22 Abril 1970
Mário Cesariny no dia 25 de Abril de 1974. Foto de Ana Hatherly.
Fotod o Arquivo Fotográfico da CML.
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