FUGIR, escreveu ele. Graham
Greene fugia muito. Cada fuga, hora e meia, e o abrigo era sempre o mesmo.
Mansão de prazer, chamava-lhe; todos os cinemas de Londres, acrescentamos nós.
Em quatro anos e meio, entre 1935 e 1940, ficaram registadas cerca de 400 fugas.
O «registo» é,
preferencialmente, o «The Spectator», a revista onde Graham Greene publicou as
recensões desses filmes para onde fugia dos tormentos infernais por que passava
quando tinha que dar vida ao personagem secundário de um romance, ou quando
queria chegar à boa construção de um capítulo. Era, como escreveu no prefácio de
Pleasure Dome, livro que reúne esses
seus textos, «a fuga por hora e meia à melancolia
que inexoravelmente tomba à volta do romancista quando ele viveu meses demais
no seu mundo privado».
A Revolução Cubana tinha começado em Janeiro de 1959. A foto é de Abril e alguns casinos ainda funcionavam. Em pé, Noel Coward e Graham Greene. Sentados da esquerda para a direita: Carol Reed, Alec Guinness, Maureen O'Hara, Ernie Kovacs e Jo Morrow. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.
Graham Greene
descobriu-se crítico de cinema quase por acaso. «Depois do perigoso terceiro Martini», se quisermos acreditar na
sua versão. Nessa altura, Greene achou-se capaz de preencher o que considerava
uma lacuna do «Spectator», a falta de tratamento do cinema.
Mas Greene já tinha
culpas anteriores no cartório. Em Oxford, constituíra-se crítico de cinema do
«Oxford Outlook», uma revista literária de que ele mesmo era o editor. A essa
conspícua actividade deve somar-se a sua veneração por uma publicação tão elitista
quanto fascinante, a saber, a revista «Close Up», que Kenneth Macpherson editava
a partir do seu «château» na Suíça. (Dessa revista rara, a Cinemateca possui uma
colecção preciosa na sua Biblioteca; e de Kenneth Macpherson foi já exibido, também
na Cinemateca, Borderline, um filme
singular na sua relação com as vanguardas artísticas do final dos anos 20).
Era exactamente aos
anos 20 que Greene devia a formação do seu gosto cinematográfico. Não admira,
por isso, que os seus textos tenham começado por reflectir um vincado
preconceito contra a utilização do som, a que sucedeu, mais tarde, o preconceito
contra a cor — esta mesma «reacção humanista», à introdução de novas tecnologias
no campo artístico, pode hoje observar-se nas terríveis batalhas contra o audiovisual
propostas pelas Vestais de um pretenso cinema puro.
|
Graham Greene conversando com Alec Guinness em plena Revolução Cubana que tinha começado em Janeiro de 1959. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, Abril, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.
Da actividade crítica
de Graham Greene o que apetece guardar, antes de mais, é a sua feroz ironia —
que lhe valeria, de resto, pesada pena fiduciária no «caso Shirley Temple», que
adiante se relata. Digna de registo é, também, a tendência para as digressões
na primeira pessoa, digressões que, por vezes, ganhavam um carácter autónomo
relativamente ao filme comentado. Uma das mais saborosas, por se ligar às convicções
religiosas de Greene, talvez seja a que subscreveu na crítica a The Garden of Allah, filme em que o
renegado monge trapista que é Charles Boyer renúncia ao amor de Marlene Dietrich
para regressar ao mosteiro.
A cena de despedida suscitou-lhe
este comentário: «Alas! minha pobre
Igreja, tão pitoresca, tão nobre, tão sobre-humanamente piedosa, tão
intensamente dramática. De facto, prefiro a versão do ‘News Statesman', padres mesquinhos a contar pesetas pelos
dedos, em cafés encardidos, antes da acção de graças».
Da sua feroz ironia, o melhor
testemunho é o caso Shirley Temple. Em Agosto de 1936, Greene, comentando Captain January, de David Butler, espetara
a primeira farpa. Primeiro começava por reconhecer à pequenina menina-prodígio um
imenso vigor e segurança, tanto na representação como na dança. Acrescentava a
seguir que, no entanto, a «sua popularidade
parecia residir numa coqueterie tão madura como a de Claudette Colbert e num corpo,
peculiarmente precoce, tão voluptuoso nas suas calças de flanela cinzenta como
o de Marlene Dietrich». Um ano depois, e desta vez na revista «Night and
Day», Greene escreveu sobre Wee Willie Winkie,
um filme de Ford protagonizado pela mesma Shirley. Semeou ventos e colheu a
tempestade que uma legião de advogados, da 20th Century Fox e da própria Shirley
Temple, lhe fizeram cair em cima. Na opinião dos juízes que julgaram o caso, a crítica
de Greene era «um dos mais horrendos libelos
que alguém poderia imaginar». Por causa dessa «beastly publication» (a opinião é ainda dos juízes e dá em
português a colorida expressão «texto animalesco»), Greene e a «Night and Day»
tiveram que pagar pesadas multas à companhia e à actriz. O texto foi interdito
e, por essa razão, não consta da recolha das críticas do escritor, nem pode ser
citado na Imprensa inglesa.
Graham Greene engraxando os sapatos em Havana, no inicio da revolução cubana. Foto de Peter Stackpole em Havana, Cuba, Abril, 1959, durante as filmagens de O Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana, 1959) de Carol Reed.
Do conjunto das
críticas que publicou entre 1935 e 1940, podem compulsar-se algumas ideias
recorrentes sobre o que Greene entendia dever ser o cinema. E, segundo ele,
devia antes de mais ser uma arte de massas, dando às pessoas o mesmo que o teatro
isabelino lhes dera no passado, «as
tragédias violentas e universais que elas compreendem».
Defensor de um «cinema poético»,
Greene sempre entendeu o realismo como premissa indispensável desse cinema. Na crítica
aos Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, pode inferir-se claramente o alcance
que atribuía aos conceitos de «poesia» e de «realidade»: «Chaplin tem, como Conrad, algumas `pequeninas ideias simples' que
podem ser expressas pelos mesmos termos — coragem, lealdade, trabalho — contra
o mesmo fundo niilista de sofrimento sem finalidade. `Mistah Kurtz — he dead'. Essas
ideias não são suficientes para um reformador, mas provaram ser amplamente
suficientes para um artista».
Raramente reconheceu a Hollywood
aquilo que reconheceu a Chaplin, quase sempre se queixando que o cinema
americano tinha tendência para envolver a realidade em celofane, sem esse
«sentido adulto» da arte que dizia entrever na Kermesse Héroique do francês Jacques Feyder. Mesmo assim, soube pôr
em evidência as qualidades de John Ford (chamando-lhe «um dos melhores realizadores deste tempo», logo que viu Stagecoach e Young Mr. Lincoln), de Frank Capra (não sem separar o trigo de Mr. Deeds Goes to Town e Mr. Smith Goes to Washington do joio
que o desiludia em Lost Horizon). Como
soube ver e sublinhar que alguns dos génios alemães, convidados para Hollywood nos
anos 30, tinham afinal beneficiado com as condições que os grandes estúdios
colocaram à sua disposição, caso de Ernst Lubitsch e de Fritz Lang, cujo Fury saudou, em 1936, afirmando ser «o único filme ao qual quereria associar o
epíteto `grande'».
John Ford sentado, dá instruções a Shirley Temple no filme, "Shirley, Soldado da Índia" (Wee Willie Winkie, 1937). Foto de moirasthread.blogspot.com
Entre os seus ódios de
estimação conta-se grande parte dos filmes ingleses de Hitchcock — exactamente
por causa do seu «inadequado sentido da realidade».
Foi, aliás, o seu ataque sistemático a algum cinema inglês, e em particular às
produções de Alexander Korda, que esteve na origem da sua passagem de crítico a
argumentista. Korda, intrigado com as cerradas críticas, quase sempre insistindo
nas fraquezas de construção das personagens ou do argumento, acabou por convidá-lo
a fazer o que ele dizia que os outros não faziam. No balanço que fez da sua actividade
como crítico cinematográfico, Greene confessou que um dos seus poucos motivos
de arrependimento era, justamente, o de não ter considerado, por desconhecimento,
quanto é que um realizador e um argumentista podem sofrer nas mãos de um produtor.
Mas essa é já uma outra história, a das suas relações menos pacíficas e às vezes
tumultuosas com os produtores.
Apesar de mais importante
no corpo da sua obra, talvez a actividade de argumentista nunca lhe tenha
provocado uma declaração tão nostálgica como esta, que a sua memória de
espectador e crítico lhe ditou: «Chorei
pelos filmes mudos quando os sonoros apareceram e chorei pelo preto e branco quando
o Technicolor veio lavar os ecrãs. Hoje, vendo o último filme sério e socialmente
consistente de Monsieur Godard, tenho saudades desses desaparecidos anos 30,
tenho saudades de Cecil B. De Mille e dos seus Cruzados, tenho saudades dos
dias em que quase tudo podia acontecer».
Manuel S. Fonseca
Expresso 13-04-1991
Graham Greene. Inglaterra. 1951. Larry Burrows.
Graham Greene - Caso encerrado
1904 — Nasce em
Berkhamsted. O seu pai dirige a escola local, e Graham passa a infância e parte
da adolescência a sofrer as consequências disso: lealdade dividida entre os
colegas e o pai, depressões muito fortes, tentativas de suicídio, psicanálise com
certo êxito.
1922 — Inicia estudos
universitários (História Moderna) em Oxford. Ainda durante o curso, dirigirá o
periódico estudantil «Oxford Outlook» e começará igualmente a trabalhar em jornais
civis.
1923 — Inscreve-se no
Partido Comunista inglês durante cerca de três semanas. Explicaria mais tarde
porquê esse acto: havia a esperança de ganhar uma viagem à Rússia. Uma
explicação que é quase impossível não aceitar, conhecendo-se a vocação viajante
de Graham. Muito mais tarde, porém, essa remota filiação vermelha impedi-lo-á
de entrar nos EUA.
1925 — Fim dos estudos.
Publica Babbling April, um livro de
poesia.
1926 — Por influência
da futura mulher, converte-se à fé católica. Entra no «Times» como secretário
de redacção.
1927 — Casa com Vivien
Dayrell-Browning, que lhe dará um filho e uma filha.
1929 — Publica The Man Within, o seu primeiro romance. Seguir-se-ão mais de
trinta.
1932 — Começa a fazer
crítica literária no «Spectator». Publica Combóio
de Istambul, o primeiro de uma longa série de romances «ligeiros» aos
quais, por não poder assiná-los com pseudónimo, ele chamou divertimentos.
1934 — Visita a África
pela primeira vez: Libéria e Serra Leoa.
1935 — Começa uma
coluna regular de cinema no «Spectator».
1936 — Publica Jornada sem Mapas, sobre a viagem de 1934
a Africa.
1937 — Com Evelyn Waugh
e Elizabeth Bowen, tenta lançar «Night
and Day», um equivalente britânico da famosa revista «New Yorker».
Mas um processo judicial movido pela actriz Shirley Temple e pela 20th Century
Fox obriga «Night And Day» a fechar.
1938 — Enviado ao
México para investigar as perseguições a padres, recolhe elementos para O Poder e a Glória, para muitos o seu
melhor livro. Entretanto, publica outro ao mesmo nível, Brighton Rock.
1939 — Escreve o seu primeiro
argumento para cinema. Publica O Agente
Secreto.
1940 — É nomeado editor
literário do «Spectator». Entra para o Ministério da Informação. Mais tarde é transferido
para o Foreign Office, onde o encarregarão de diversas tarefas, uma das quais
em Africa, para os serviços secretos.
1941 — Recebe o Prémio
Hawthornden. Outros prémios importantes (Legião de Honra e Prémio Shakespeare,
entre outros), bem como doutoramentos «honoris causa», seguir-se-ão ao longo dos
anos.
1944 — Torna-se
director literário das Edições Eyre e Spottis-wode.
1945 — Volta à crítica
literária, agora no «Evening Standard».
1948 — Com François
Mauriac, vai à Bélgica participar numa conferência católica. Parte depois para
a Checoslováquia e para Viena.
1950 — Publica romances
extraídos de dois argumentos cinematográficos seus, entre os quais O Terceiro Homem.
1951-1955 — Faz
inúmeras viagens — à Malásia, à Indochina, ao Quénia, ao Haiti, a Cuba, à
Polónia — enviado por publicações como a «Life», o «Paris-Match» e o «Sunday Times».
1953 — Publica Ensaios Católicos, que muitos
consideram o seu livro menos interessante. Escreve a sua primeira peça de teatro: The
Living Room.
1957 — Vai a Cuba, à
China e à Rússia.
1858 — Após uma nova
visita a Cuba, regressa a Londres para assumir a direcção das edições Bodley
Head, cargo que manterá dez anos. Publica O
Nosso Agente em Havana.
1959-1960 — Vai uma vez
mais a Cuba, e depois ao Congo Belga, à Rússia e ao Brasil.
1961— Publica Um Caso Arrumado.
1962-1971 — Vai à
Roménia, a Cuba, ao Taiti, a Goa, a Berlim, à RDA, a São Domingo, a Israel, à
Serra Leoa, a Istambul, ao Paraguai, à Argentina, à Checoslováquia, ao Chile. Entretanto,
publica A Sense of Reality (1963), Os Comediantes (1966), Empresta-nos o seu Marido? (1967), Collected Essays (1969) e Viagens com a Minha Tia (1969). Em
1966, vai viver para Antibes.
1971— Publica A Sort of Life (primeiro volume de autobiografia).
1973 — Publica O Cônsul Honorário.
1977 — Integra a
delegação panamiana que vai a Washington assinar o tratado sobre o Grande Canal.
1978 — Publica O Factor
Humano.
1982 - Publica J’Accuse, um panfleto em que denuncia a
corrupção das autoridades de Nice e as ligações delas ao crime organizado. Os problemas
daí resultantes acabarão por obrigá-lo a partir. Em 1990, o «maire» de Nice
fugirá para a América Latina, dando assim razão às acusações de Greene.
1983 — Arthur Lundkvist,
jurado do Prémio Nobel, garante que Greene só receberá essa distinção «por cima do meu cadáver».
1984 — Publica Getting to Know the General.
1987 — Vai a Santiago
do Chile participar num encontro internacional de intelectuais pela democracia.
1989 — Publica O Capitão e o Inimigo.
1990 — Muda-se de
França para a Suíça.
1991— Morre em Vevey,
nas margens do lago Genebra.
Luís Coelho
Expresso 13-04-1991
Graham Greene (1904-1991)
Foto copiada do Expresso
(Fotos Peter Stackpole e Larry Burrows. LIFE Archive, excepto as assinaladas)