por
Manuel Cintra Ferreira
Expresso, 1 de Julho de 2006
Coisas boas em jornais
Marlon Brando, Eva Marie Saint e Karl Malden em uma cena do filme, Há Lodo no Cais (On the Waterfront, 1954) de Elia Kazan. 1954. Alfred Eisenstaedt. Foto LIFE Archive. |
Há, em quase todos os portugueses, um pouco de Terry Malloy. «I coulda been a contender», diz ele. Disse ele. Poderia ter sido um campeão. O condicional diz tudo. Poderia. O que faltou a Terry Malloy? O que falta aos portugueses para saírem da condição passiva, para deixarem de serem os homens de fretes no cais? Malloy vai encontrar a sua oportunidade no amor que lhe testemunha Edie Doyle (Eva Marie Saint), que lhe transmite a força capaz de o colocar de novo de pé, e lhe permite avançar, em passos vacilantes, para o armazém, dirigindo uma equipa de trabalho, agora liberta do medo dos «gangsters» que controlavam o sindicato dos estivadores, nos cais de Nova Iorque.
Estou a falar, como já muito bem entenderam, de Há Lodo no Cais, o filme de Elia Kazan, onde ganhou o seu primeiro Óscar um nome que então provocava paixões, e que ainda hoje é o testemunho único de uma forma de representar: Marlon Brando.
E uma forma de ser, também. De tal forma, que o que atrás disse sobre a personagem se poderia dizer sobre o protagonista. Brando foi um campeão. Isso ninguém contesta. Mas poderia ter sido muito mais. Brando poderia ter sido «o» actor por excelência, para além de ser o «modelo» que todos queriam copiar. Elia Kazan afirmou que Marlon Brando «arruinou» duas gerações de actores. A afirmação tem pertinência, na medida em que todo o novo actor que aparecia, seus contemporâneos ou da geração seguinte, em vez de seguirem o seu caminho procuravam, antes de mais, imitá-lo. Antes de se descobrirem a si próprios, fosse um Paul Newman, que o conseguiu, fosse um James Dean, que não teve tempo.
Marlon Brando e Anna Magnani durante as filmagens de, O Homem na Pele da Serpente (The Fugitive Kind, 1959) de Sidney Lumet. Foto gahetna.nl. |
Brando foi, antes de mais, um «esbanjador» de talento; deitava-o às mãos cheias pelas janelas de uma série de filmes medíocres, de um Desirée (onde foi Napoleão) a Os Sedutores, de Ralph Levy. Inclusive, a partir de Duelo no Missouri (1976) não fez outra coisa senão expor-se, exibir-se como uma «curiosidade» mais do que como actor, e fazendo-se pagar na justa medida, ou seja, quase o «seu peso em ouro» (para 13 dias de trabalho em Superman cobrou 3,7 milhões de dólares e 10% dos lucros! Sendo o filme de 1978, façam as contas à inflação), o que talvez tenha sido a razão da sua entrega aos requintes culinários, especialmente guloseimas (ah! O belo sorvete!) que rapidamente o transformaram de «personalidade», numa imponente «rotundidade» cinematográfica (é vê-lo na última versão de A Ilha do Dr. Moreau, de John Frankenheimer, de 1996).
Marlon Brando e Jane Fonda durante as filmagens de Perseguição Impiedosa (The Chase, 1966) de Arthur Penn. Foto gahetna.nl. |
Mas mesmo nesta fase de «diletante» do ecrã, em que praticamente se recusava a estudar os argumentos, limitando-se a ler as suas deixas em cartões estrategicamente colocados, a sua presença e figura impunham-se sobre tudo e todos, dando-nos ainda a breve e soberba composição do coronel Kurtz em Apocalipse Now, de Coppola, e conseguindo uma nova nomeação para o Óscar (de actor secundário) em 1989 no papel de um advogado em Assassinato sob Custódia. E o seu último grande papel (a tempo inteiro!), em O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, feito em 1972, é um filme em que a sua persona cinematográfica se confunde com a sua pessoa, quando evoca memórias familiares que poderiam ter sido suas.
Digam o que disserem do que ele fez nestes anos pródigos, em que brincou consigo próprio e esbanjou o talento, ninguém pode negar ou desvalorizar o papel que ele teve na década de 50 e da «revolução» (só este termo se aplica ao que ele fez) que trouxe para o trabalho do actor, no palco ou no cinema. Há os que não lhe perdoam ter abandonado os palcos, aonde nunca voltou quando triunfou no cinema com a adaptação do seu sucesso no teatro, Um Eléctrico Chamado Desejo, dirigido por Elia Kazan. Já tivera uma experiência (O Desesperado, de Fred Zinnemann) mas foi o drama de Tennessee Williams que lhe abriu as portas da glória. Bastaria este filme, e também Há Lodo no Cais e o seu Don Corleone de O Padrinho, para o colocarem no panteão das glórias do cinema.
Mas poderia ter sido muito mais, ou algo mais. Não apostou na carreira de realizador (apesar de não se ter saído mal com o «western» Cinco Anos Depois), e transformou a de actor numa espécie de desfile carnavalesco. O que o levou a desistir? Medo do próprio triunfo. Ou apenas fatalismo? Haveria qualquer coisa de português em Brando? Não deixo de pensar nisto quando vejo um filme dele. E não estou, agora, a pensar no Mundial de futebol.
Manuel Cintra Ferreira
Expresso, 1 de Julho de 2006
Expresso, 1 de Julho de 2006
Marlon Brando em O Padrinho (The Godfather, 1972) de Francis Ford Coppola.
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