"A luta do Homem contra o poder é a luta
da memória contra o esquecimento"
Milan Kundera
A Comunal de Árgea em 1974 ou 75.
Já
não me recordo em que época estive na Comunal de Árgea, mas deve sido em Agosto
ou Setembro de 1975. Não sei quem teve a ideia mas talvez alguém ligado a um
partido de extrema esquerda, que eram com quem me dava mais nessa época. Lembro que chegámos lá a meio de uma tarde (de um dia da semana) e fomos logo apanhar
figos secos, que estavam por baixo das figueiras e colocar as passas
em esteiras ao sol para secarem melhor. Andámos umas três horas nisto e quando acabámos
por volta da 19/20h estávamos estoirados. Éramos 3 ou quatro (talvez mais) do
Bairro da Quinta da Calçada, mas só me lembro do David, houve uns que só
aguentaram uns dias e havia mais gente doutros locais, que tinham vindo connosco de Lisboa numa carrinha (?).
A Comunal de Árgea em 1974 ou 75.
Ao
jantar disseram-nos onde íamos dormir. Era no antigo posto da GNR, que estava
abandonado, havia por lá uns colchões e foi aí que dormimos durante o tempo (15
dias?, um mês?) que estivemos na Comunal de Árgea. Logo nessa noite em conversa
com os mais antigos, fiquei a saber que a cooperativa tinha uma serralharia,
mas não havia ninguém para trabalhar nela. Assim, no dia seguinte, comecei a
trabalhar lá sozinho, já que tinha sido serralheiro aos 12 e aos 14 anos em Lisboa e esse tipo de trabalhos não
se esquece. Fiz vários trabalhos que eram necessários mas o que me
recordo mais, foi de ter feito um portão em ferro, que era preciso já não me recordo para onde. Não me lembro bem, mas creio que trabalhava todos os dias menos ao
domingo e recordo ainda desse tempo, ter ajudado (a segurar) numa matança de porco, que foi a única
a que assisti na vida.
A Comunal de Árgea: Auto-colante e mapa da zona de Árgea.
Era uma época em que estávamos completamente tesos.
Havia dinheiro para o tabaco e pouco mais. À
noite íamos até uma taberna que tinha um jogo de matraquilhos (sem estar trancado,
uma moeda dava para vários jogos) e convivíamos com outros cooperantes e com
pessoal da terra. Recordo ter jogado “à sueca” à cerveja, muitas vezes sem
dinheiro no bolso para pagar se perdesse. Num fim de semana fomos até ao Entroncamento (beber uns copos) numa carrinha que lá existia,
que também servia para carregar ferro e recordo que um dia fomos comprar ferro
para a serralharia ali para os lados de Fátima.
Havia
também uma ambulância Mercedes de matricula alemã, que uns amigos alemães tinham oferecido
à Comunal. Aqui talvez a memória me esteja a atraiçoar e se calhar só havia a ambulância As memórias não são muitas, mas recordo o bom ambiente que por lá
se vivia e tenho pena de os nomes e as caras se terem esfumado. Mais tarde, já depois do 25 de Novembro, ainda cheguei a saber (por quem?) que a GNR tinha aparecido em Árgea para fazer “merda”,
como era costume e amedrontar o povo. Queriam levar coisas da Comunal (procuravam armas e só encontraram colchões), mas as
mulheres de Árgea opuseram-se e não levaram nada. São boas memórias daqueles tempos (bem dito PREC), seja em Árgea ou noutros locais
por onde andei e que serviram para mim de grandes experiencias para (crescer
como pessoa) e depois fazer trabalho cultural e politico com mais pessoas, no Bairro
da Quinta da Calçada, e indo aos poucos ficando sozinho (1982) a trabalhar. Como costumo dizer com alguma graça: já a revolução tinha acabado e alguém se tinha esquecido de me avisar.
O jornal Combate, era um jornal quinzenal independente (não estava ligado a nenhum partido) que existiu desde Junho de 1974 a Fevereiro de 1978. Nesta edição Nº 23 de Maio de 1975, traz uma extensa entrevista com integrantes da Comunal de Árgea. Jornal encontrado em www.marxists.org
Na entrevista com integrantes da Cooperativa Comunal da Árgea, diz um trabalhador ao Jornal Combate:
«Bem, depois de um dia de trabalho, vou dar umas lições para a 4ª classe, isto é um aspecto muito pequenino e muito concreto, mas para a cooperativa é extremamente importante. É esse enorme desnível de cultura entre as pessoas que tem de ser vencido, a pouco e pouco, e uma maneira de o vencer é na prática, é fazer com que aquelas pessoas que sabem muito menos passam a saber muito mais e, sobretudo, a saber coisas úteis e não coisas estúpidas que muitas vezes as pessoas lhes ensinavam.» (Combate: Nº23, Maio 1975).
O jornal Combate e as lutas sociais autonomistas em Portugal durante a Revolução dos Cravos (1974 - 1978)
O jornal Combate e as lutas sociais autonomistas em Portugal durante a Revolução dos Cravos (1974 - 1978)
Danúbia Mendes Abadia, Tese de Mestrado - Universidade Federal de Goiás
Goiânia Maio de 2010
Goiânia Maio de 2010
Jornal Combate, entrevista de Maio 1975, com membros da Comunal de Árgea. CLIQUE PARA PODER LER.
Mais coisas encontradas na net sobre A Comunal de Árgea
Referencia no jornal "página um" em 1976, a uma curta-metragem realizada em 1974 pela CINEQUANON: "COMUNAL UMA EXPERIENCIA REVOLUCIONARIA", com a sinopse.
«Tomemos o exemplo de uma das cooperativas – a Cinequanon, cuja fundação é legalizada em Junho de 1974. Apesar de no início ser intenção dos sócios “dedicar-se a produzir apenas filmes de fundo de ficção”, pouco tempo depois reconsideram o seu papel: É neste contexto que produzem mais de uma centena de filmes no intervalo de dois anos. Os títulos e o teor das sinopses são revelatórios da urgência dessa intervenção política e social. Por exemplo... Comunal, uma experiência revolucionária (24’), de realização colectiva, trata da existência de uma cooperativa agrícola constituída tanto por moradores de Árgea, localidade próxima de Torres Novas, como de membros (arquitectos, professores) provenientes de Lisboa.»
ARQUIVOS DA MEMORIA - Antropologia, Arte e Imagem | Nºs. 5-6 (Nova Série) | 2009
Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, encontrado em www.ceep.fcsh.unl.pt.
«O caso da cooperativa Comunal é singular. Nasceu não de uma ocupação de terras mas do seu contrário: a junção voluntária de parcelas para ganhar viabilidade, surgindo uma queijaria, uma carpintaria e uma loja. A produção era vendida às cadeias de supermercados de Lisboa. «Era um projecto de revitalização do mundo rural, semelhante aos que hoje se poderiam fazer com fundos da União Europeia», explica o arquitecto Pedro Lobo Antunes, um dos mentores da Comunal. O coração da cooperativa era Árgea, «uma aldeia especial, com tradição republicana e associativa». Ainda hoje lá está a antiga loja da Comunal, agora um supermercado. Quando foram pedir apoios financeiros, os cooperativistas foram postos pelo Ministério da Agricultura numa situação surrealista: só havia subsídio se houvesse ocupação de terras... A 25 de Novembro, a aldeia foi cercada pelo Exército, à procura de armas. «A única coisa militar que encontraram foram uns colchões, mas nem isso o povo da aldeia os deixou levar», conta Lobo Antunes, agora vereador da Câmara pelo PS, já no segundo mandato. Com o 25 de Novembro, os apoios desapareceram, e a cooperativa foi-se desagregando. (Sobre este tema retenham-se, ainda, os documentários Torrebela, de Thomas Harlan, exibido há dois anos, Outro País, de Sérgio Treffaut, 1998, e o recente As Operações SAAL, de João Dias).»
Rui Cardoso. Jornal Expresso, Revista Única · 22/11/2008
«...Fui para Árgea, para a Comunal (no Alto Ribatejo, Torres Novas), uma cooperativa formada por ex-exilados em França, alguns operários, outros intelectuais, outros militantes políticos activos que estiveram presos até ao 25 de Abril. Encontrei lá uma vida comunitária, um espaço colectivo e uma afirmação democrática de base que, apesar de todas as dificuldades, era genuína e criativa. Estavam lá pessoas como o Joaquim Alberto, o Carlos Cardoso, o Pedro Lobo Antunes, a Manuela Fazenda, a Edeltrauth (já não me lembro se era assim que se escrevia), o Pedro Fazenda, a Silvéria, o Quintas, entre muitos outros, a que se juntava muita gente da terra, que partilhou este projecto de uma comunidade autêntica.
Ali conheci pessoas, ideias e muito mundo. Estive na Comunal um ano e tal. Valeu por uma década de experiência. Não saí dali o mesmo. Conheci o mundo das cooperativas e das UCPs por dentro. O mundo do trabalho também. Um mundo de solidariedades múltiplas e de repulsa por tudo o que era hierarquias.
Isso ao 25 de Novembro o devo. E, por isso, ao 25 de Novembro de 1975 estou grato: levou-me a viver, mãos no barro, um dos mais importantes períodos da história recente de Portugal. E da Europa.»
Publicada por Carlos Júlio em acincotons.blogspot.pt
André Guedes, Nova Árgea, 2012. Foto Vera Keel encontrada em www.lesateliersderennes.fr
Trabalho de André Guedes, que é baseado em extensa literatura de pesquisa e é sustentado por uma reflexão antropológica sobre as atividades humanas no projeto de espaço. Convidado pelo Phakt Centre Culturel du Colombier no Ateliers de Rennes em 2012. A instalação inclui uma apresentação de slides Nova Árgea de fotografias encenadas mostrando - no presente - os membros de uma comunidade em situação ficcional. É inspirada na história de uma cooperativa agrícola denominada A Comunal", em Árgea durante o PREC em Portugal. (Texto encontrado na net)
Nova Árgea by André Guedes (making of). Fotos encontradas em www.missdove.org
"Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é o que fica. Quando as pessoas param há como um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo politico como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alibis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta."
José Afonso
Vi este texto partilhado por um amigo de Árgea. Lembro bem estes tempos. O meu pai foi um grande apoiante e colaborador da Comunal. Está a fazer um ano que morreu. Ler o seu texto trouxe tantas memórias boas. Obrigada.
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