A sala e o "Uzala" — duas surpresas no Funchal
Crónica
de Carlos Pinhão no jornal Se7e em 18-07-1979
Coisas
boas em jornais
Cine Casino; hoje é o auditório do Centro de Congressos do Casino da Madeira. Foto sem data encontrada em www.casinodamadeira.com |
Carlos Pinhão (1924-1993) |
Uma razão: a sala.
Outra razão: o filme.
A gente passa na rua
e vê um grande cartaz onde se lê: «A Melhor Sala de Cinema do País».
A gente vê o cartaz,
mas não vê o cinema, vê só o cartaz, até pode ser que não seja ali o cinema,
talvez ali seja só o cartaz a anunciar o cinema algures.
Avanço para me
esclarecer e encontro uma escada tipo Metropolitano de Lisboa, só que, em vez
do «M», há um letreiro que tem uma seta para baixo e onde se lê: «Cinema-Bilheteiras».
Não há dúvida, é para
baixo e desço cheio de curiosidade, a ver se me deixam entrar. Nem penso, nessa
altura, em comprar um bilhete para assistir a uma sessão, pois estou mesmo a
ver que o filme deve ser desses dos nossos cinemas da província, ou porno, ou
kung-fu.
A minha ideia é só
pedir que me deixem ver a tal sala melhor do País... Que história é essa?...
Como se mede o melhor e o pior? A maior sala ainda se compreende, a maior lotação,
contam-se os lugares, não é, mas a melhor?... A mais cómoda?... Eu, por
exemplo, embirro com aquelas cadeiras muito fofas em que a gente se enterra até
ao pescoço e que fazem mal á espinha, os meus bicos de papagaio exigem um assento
duro.
O melhor é ver, mas
cheira-me a provincianismo, isso da melhor sala deve ser uma manifestação de
bairrismo tolo, género a Veneza Portuguesa, a Sevilha Portuguesa... Já estou no
átrio que é pequeno, não tem nada de especial, a bilheteira também não, mas há
aqui agora os cartazes que não havia lá em cima. O «Cinecasino» fica na cave do
«Casino da Madeira», que é um edifício baixo. rodeado por hotéis muito altos.
Os cartazes. Uma
surpresa.
Filmes de qualidade.
«Face a face», de Ingmar Bergman. «O Céu pode esperar». Em exibição — surpresa
maior — um filme soviético: «Dersu Uzala», a chamada obra-prima de Akira
Kurosawa. Mudo logo de planos. Logo à noite, venho ver como é. Ver um
filme soviético, aqui, tem qualquer coisa de fruto proibido. A noite, o porteiro
do cinema confirmar-me-ia que, trabalhando no ramo há vinte anos, é a primeira
vez que dá conta da passagem de um filme russo na Madeira.
Estreou-se na
sexta-feira e talvez dure uma semana.
— Tem vindo muita
gente? pergunto.
— O costume, nestas sessões.
Entre cem a duzentas pessoas.
A sala tem lotação
para meio milhar e raramente se enche. Encheu-se na estreia e, há pouco, na festa do Max. Nem sequer
é a maior sala da Madeira. Há quatro
cinemas no Funchal e devem ser todos da mesma empresa, pois vejo no «Diário de
Notícias» local os quatro anúncios iguais, lado a lado, ocupando todo o alto da
página.
Digamos que há filmes
para todos os gostos e guarda-se a qualidade para o «Cinecasino». Merece. É, de
facto, uma bela sala de espectáculos. A gente entra e sente assim um choque agradável.
Primeira sensação: a amplitude, o desafogo. Regra geral as salas lisboetas são
acanhadas, aproveita-se o espaço ao milímetro. Aqui é tudo á larga, as filas espaçadas,
as coxias amplas, há espaços por toda a parte. Porém, a nota mais especial é
a inclinação da sala que apíoveita a própria configuração do terreno em que
foi construída. Não há balcão, é só plateia (e só um preço, setenta escudos,
sem lugares marcados), mas é uma plateia com a inclinação de um balcão, porque
a encosta, assim a descer para o lado do mar, propiciou esse tipo de construção
muito original e muito belo. As cadeiras (cómodas quanto baste) são forradas de
amarelo, fornecendo assim um sugestivo contraste com a alcatifa escura e, na
verdade, todo o conjunto é sugestivo, harmonioso, atraente. Não vamos garantir
que seja a «Mais bela sala de cinema do País», mas é verdade que nunca víramos
sala tão bonita, exceptuando aquela daquele cinema de Luanda, ao ar livre, tipo
esplanada, uma delícia, mesmo que se não goste do filme, gosta-se do panorama (sem
esquecer que Luanda já não é «do País»).
Neste caso, o filme
foi também uma delícia, «Dersu Uzala», «A Àguia da Estepe», belo como um Júlio
Verne, como dele disse «Le Nouvel Observateur» e dele nada mais diremos, até
porque, por certo, já o «Se7e» se lhe referiu, quando da estreia em Lisboa. A
piada estava, para nós, em ver um filme soviético (que não viramos em Lisboa) numa
terra onde os cartazes anunciadores do IX Congresso do PCP são arrancados da parede
ainda frescos da cola. Por acaso, aqui estou eu na sala, ao intervalo (algo
longo, sempre longo para quem não fuma) a ler o «Jornal da Madeira» que levei
no bolso e que dedica quase uma página á Conferência de Imprensa dada, no
Funchal, por Pinheiro de Azevedo, afirmando este que, se tivesse sido eleito em
1976, «teria expulso do País personalidades non gratas, tais como Àlvaro Cunhal
e outras (...) perigosas (...) todas elas comunistas».
O mesmo jornal revela
que se trata de uma viagem de angariação de fundos para a campanha eleitoral
daquele candidato, seguindo-se uma viagem á Venezuela, onde a colónia
madeirense é muito importante.
O filme foi muito bem acolhido
pela assistência e, na manhã seguinte, há um grande paquete soviético acostado
no porto do Funchal e aparecem colados novos cartazes, mas não é de crer que
Dersu Uzala tenha alguma coisa a ver com isso.Crónica de Carlos Pinhão no jornal Se7e 18-07-1979
Casino da Madeira
desenhado por Oscar Niemeyer e Viana de Lima
Casino da Madeira no Funchal. Foto encontrada em www.waymarking.com. |
«Eu mostro tudo o que levo sobre o Casino Park e ele sublinha logo “a colaboração fundamental do
meu colega Viana de Lima [grande
arquiteto português, discípulo de Corbusier, que Niemeyer convidou para a
concretização do projeto]. A minha atuação se limitou ao anteprojeto na escala
de 1:500, que o resto, o desenho definitivo, os detalhes, tudo isso foi
elaborado por aquele arquiteto. Depois, eu muito ocupado em Paris com as
tarefas em realização. E ele a correr com os detalhes, sem tempo para me
consultar… Ele foi muito correto”.» (…) O cine-teatro, por seu lado, a
explorar o subsolo,resolvia-se, na idéia niemeyeriana, numa cúpula
trapezoidal, em concha, como tantas “irmãs” já vivas - a tribuna do
quartel-general do Exército, em Brasília (1968), o clube libanês de Belo
Horizonte (1950), o monumento a Rui Barbosa (1949) - ou por nascer - na
universidade de Constantine, na Argélia (1969/72), no Memorial da América
Latina, em São Paulo (1986/88), ou no centro de convenções da Barra da Tijuca
(1997). Infelizmente, pela necessidade de fazer a caixa do palco, a cúpula deu
lugar a uma estrutura trapezoidal angular, que não perde, contudo, a beleza
compósita. Cada um dos edifícios induz a um jogo de desníveis cuidadosamente distribuídos. Mais
ainda do que as unidades singulares, é o “teatro móvel”, as distâncias e a
diversidade de planos, as transições de formas, o diálogo circulante em que
elas se inserem, é isso que também surpreende imenso na monumentalidade estética deste projeto. O cine-teatro
inicia-se como arco triunfal para o casino e do primeiro andar deste, o andar
do salão de jogos, nasce uma rampa ascendente, com uma espiral a meio, forma
que Niemeyer aqui usa pela primeira vez e que retomará no Centro Cultural de Le
Havre (1972/83) e no Museu de Arte Moderna de Niterói (1994).»
Texto de Carlos Oliveira Santos encontrado em www.arcoweb.com.br Ler todo o texto aqui
Desenhos de Oscar Niemeyer para o projecto do Casino da Madeira.
Encontrados em www.arcoweb.com.br.
Encontrados em www.arcoweb.com.br.
Cartaz do filme que Carlos Pinhão viu no Funchal. |
Foto de Carlos Pinhão encontrada em futpt.blogspot.pt
Cartaz do filme Dersu Uzala encontrada em jfilmpowwow.blogspot.pt
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