terça-feira, 17 de julho de 2012

A "Grande Maçã" está com bicho


"O Concerto" em Nova Iorque

Por José Duarte
O Jornal 19-09-1975


Coisas boas em jornais


Count Basie, Ella Fitzgerald e Frank Sinatra no Uris Theatre de Nova Iorque em 8-9-75.
Foto encontrada em New York www.ilpost.it

Entusiasta da «grande música negra, de que é, em Portugal, um dos mais conhecidos divulgadores, José Duarte esteve, em Nova Iorque, no último fim-de-semana, a fim de assistir a «The Concert» (O Concerto). Neste primeiro artigo, confia-nos as suas impressões acerca do ambiente na grande cidade americana, fazendo-o sob a forma de um artigo em que «dialoga» com um «alguém» (talvez-inexistente), um outro «tipo», que, no texto, aparece identificado em tipo (tipográfico) diferente. Em próximo artigo, José Duarte descreverá «The Concert» — O Concerto. 



Tudo começou num recorte do «New York Post».
Basie e ela, ela a sua grande orquestra.  Ela e Ella, a cantora afro-americana mais célebre.
Talvez.
Ella e ela, a super vedeta, o monstro, o Frank Sinatra.
Como trocadilho parece-me pobre, parvo.
De facto, Count Basie e os seus músicos, mais Ella Fitzgerald, mais Frank Sinatra num mesmo concerto, é caso único, aliciante, uma úlima hipótese para ouvir Sinatra bem acompanhado, sem cordas piegas, decadente, bafioso.
Ou mafioso? Fala-lhes mas é no preço dos bilhetes e no tipo de público.
O concerto era anunciado como O concerto para o artigo O definir a pretendida importância do mesmo.
Complicado.
Folheando o «Village Voice», bom semanário de actualidade, artes e espectáculos, nem uma linha sobre O concerto, que, aliás, é diário desde 8 deste mês até amanhã.
Até amanha e obrigado. Estás doido para dizer que foste ao jazz.
Aliás, as proporções alteram-se profundamente quando se cruza o Atlântico do Velho-para o Novo (em quê?) Mundo. Tal como os arranha céus não impressionam qualquer novaiorquino, assim O concerto é apenas mais um concerto. Há coisas na América que impressionam os europeus e que lá pouca ou nenhuma importância têm, são, por assim escrever, naturais, inevitáveis. A música, a CIA, o telefone sem fio, o Vietname. E não só. Por exemplo, em plena 5.a avenida, sábado de manhã, várias ardósias nos respectivos tripés e em frente de cada uma, de apontamentos na mão e em voz alta, um(a) jovem. Aulas práticas de anticomunismo! «Vitory over comunism» ou o ultraje ao marxismo-leninismo, em forma de curso, da autoria de um padre coreano!!
Do Sul!
Mais acima, na rua 55, é o museu do jazz num prédio de um andar (!) e azul (blue). Muito pobre, sem ninguém, tinha a fachada borrada de branco. Salpicos, manchas de tinta atirada. «E por isso que a gente se vai mudar. Foi algum branco engraçado que não gosta de jazz» disse o loiro triste que lá estava a guardar a exposição.
Se calhar querias a mesma freguesia da Guernica, na rua ao lado. O museu devia estar era em Harlem, mas aí não vais tu fazer turismo!
Manhattan é uma ilha com pobreza e opressão nas pontas. Nas ruas da casa dos cem é o ghetto negro, Harlem, bairro fino há décadas. Nas ruas abaixo de vinte é a Greenwich Village muito turística, a Chinatown, a Bowery, rua pavimentada de velhos em álcool, podres.
Em cada esquina, um amigo.
Descendo a 2.a avenida, voltando à esquerda na rua 3, logo à esquina numa parede grande e vazia está escrito à mão e bem legível:
«Reporter: Qual é a sua opinião sobre a cultura ocidental!
Gandhi: Acho que seria uma boa ideia»
Mais à frente, ainda na rua 3 estacionadas junto ao passeio várias motocicletas piores do que aquelas que vimos no Easy Rider. Sentados em sofás no passeio, em atitude provocatória de simples estar, três ou quatro homens de dois metros e cento e vinte quilos cada um. São os «Hell Angels» que escreveram à porta de casa: «Entre à sua responsabilidade».
Em Nova Iorque a recordação de Lisboa e os meninos motorizados na Praça de Londres, na Avenida de Roma.
E quando o Sinatra jogou golfe no Estoril com o Spiro Agnew! ou foi na Penina?
O mais importante que se passa em Nova Iorque não vem nos jornais. Nem mesmo depois de ter acontecido. Sabe-se pelos panfletos que são distribuídos na rua. O panfleto tem muito a ver com a rua onde é distribuído. Enquanto na Times Square (praça onde há tudo: estreias, polícias a cavalo, violinistas, mulheres vestidas) os panfletos anunciam putas massagistas, na cidade baixa o Congresso do Povo Africano convida para uma sessão com o filme «Lenine em Outubro», danças revolucionárias, cantos anti-imperialistas. A aparente opção possível. A organização «Poder Operário » anunciava a presença em Nova Iorque de António Silva, soldado português, delegado dos Conselhos Revolucionários de Operários, Soldados e Marinheiros, para esclarecimento da luta em Portugal e construção da solidariedade dos operários americanos.
Vi televisão a cores. Sou um homem melhor. Vi a menina amiga do Manson, vi a série da feiticeira, vi logo pela manha concursos onde se ganha automóveis, vi o Gillespie a ensaiar, vi o sr. Golby.
Uma moeda tem duas faces. Pelo menos as que hoje se usam. Só conhecendo ambas se sabe o seu verdadeiro valor.
Um clube branco, caro, onde Budy Rich vende bifes e música. A sua grande orquestra numa forma apurada. A tradição/paixão americana pelas «big bands» está viva. Ou de como os músicos (esses) têm boas escolas e dominam formalmente a linguagem «jazz» . Um excelente espectáculo de som e capacidade técnica, com arranjos originais, solistas à fartura e o comando rítmico de Buddy Rich em destaque. Levar com massas sonoras na cara, apreciar a inserção do trabalho individual na produção colectiva, foram os prazeres da primeira parte do «show». A seguir cantou Mel Tormé acompanhado pela mesma orquestra mas com Buddy Rich substituído. Música produzida num centro imperialista não é necessariamente capitalista. A técnica concorrência foi esquecida. Se calhar pouco espaço para duas vedetas ou tentar evitar que a atenção se dispersasse. Mel Tormé, sombra de Sinatra há anos, mais «jazzy» que ele, cantou de-tudo um pouco e sempre bem. Clássicos da ligeira temas de Ellington, fraseou como um bopper, provou ser injustamente um eterno segundo plano, como nos filmes.
Descrição medíocre. Esqueces os smokings dos empregados, os sorrisos de clube fino das empregadas, que foi caro como os olhos da cara, que te baldaste à gorjeta e que o único preto da casa era o contrabaixista. Conta lá agora aquela do tipo com o «peru frio».
Um clube velho, sujo, o «Five Spot», onde tocava o Art Ensemble of Chicago. Quinteto de músicos negros, é responsável por muito do que de melhor e mais avançado se tem criado no .jazz», recentemente. O Hot Clube, aqui em Lisboa, não se deve preocupar. A assistência para um grupo tão importante era, nessa noite, de cerca de 50 pessoas. Na parede, parecia ser gozo, um aviso dizia: «mais do que 203 pessoas nesta sala é perigoso e ilegal». Nessa noite fazia dois anos que Allende fora, assassinado. A música foi quase sempre violenta, gritada, raivosa, produzida num belo clima de improvisação colectiva e espontânea. Com dois saxofones, um trompete, muita percussão, os músicos assumiram quer sonoramente, quer cenicamente a sua herança cultural africana. Caras pintadas, roupagem colorida, climas sonoros expressivos, torrentes vulcânicas de notas, música densa. Os tempos da vanguarda da música afro-americana, como este, são todos assim: pouca gente, mas gente boa, da música, nada recomendáveis pela sua localização na cidade. E porque uma pessoa quando sai às tantas da noite e anda quilómetros à procura de transporte, arrisca-se a tudo. Cá fora à porta de um bar vizinho duas mulheres aliciavam, em bikini, quem passava. Eram 3 da manhã. Eu fingi que não era nada comigo. Aceito que para uma formação cultural europeia seja impossível conceber criação artística em sítios destes, credo!
Tenho a impressão que onde escreveste europeia podias pôr burguesa...
Cheirar o teatro onde O concerto se realiza era essencial. É na  Broadway, perto de Times Square, é um teatro modernaço, com grandes fotografias de Basie, Ella e Sinatra, a preto e branco, cá fora. Mas, apesar de tudo, discreta a publicidade, a lotação esgotada todas as noites estava previamente garantida. Como era antes do meio-dia, ninguém à porta. Ninguém é mentira: o homem da bilheteira e a Eliana Pitman! Exactamente. Aquele «bronze» brasileiro que frequenta com louvável assiduidade a televisão portuguesa. E esta?! Um nervoso «Olá, como está? Venho amanhã ao concerto» e rapidamente para dentro de uma grande loja de discos. Aí nova frustração. A abundância, as gravações históricas, o último grito, o triste poder de compra a condicionar uma escolha fatalmente magra: as Pointer Sisters, Patti Labelle, Miles de coleccionador e tudo o resto lá ficou.
Impossível de acreditar! O homem ainda lá estava! Há mais de três horas na mesma posição, já passaram por ele milhares de pessoas! Dos seus 40 anos, magro, de chapéu, enroscado num daqueles postes de metro e meio que marcam o tempo de estacionamento dos automóveis. Um esgar tremendo na cara, a cabeça quase a tocar os pés, hirto, olhos vidrados, imóvel. Estava com o «cold Turkey», «peru frio», calão que designa a dolorosa e fortíssima crise de carência de droga, mas droga da pesada.
«As coisas correm melhor com Coca-Cola», slogan muito divulgado.
Raro é o minuto em que em Nova Iorque não toca e passa uma sirene de bombeiro, ambulância ou polícia.
«The Big Apple», «A Grande Maçã», alcunha da cidade, está com bicho.

PS: (ainda quer dizer Post Scriptum, não confundir de maneira nenhuma)
Espero que na segunda parte deste escrito o outro tipo não apareça.
Persegue-me como uma consciência mal lavada.
Bye now!
José Duarte em O Jornal 19-09-75


Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Count Basie no Uris Theatre de Nova Iorque.
Foto encontrada em thejudygarlandexperience.blogspot.pt


"O Concerto" em Nova Iorque (conclusão)
Sinatra está velho (está e é e os "monstros" foram dessacralizados)
José Duarte, em Nova Iorque



Tudo se passou como se esperava.
Um teatro impecável, mesmo no coração da ilha Manhattan).
Um público numeroso, quarentão, com o melhor trapinho vestido, a classe que domina nos U.S.A. e noutros países. Um espectáculo bem montado, de luzes e sons sem defeitos. O «show-big» norte americano tem leis. Primeiro a orquestra, depois a orquestra com um vocalista, depois a orquestra com o outro vocalista, depois a orquestra com os dois vocalistas. Vem nos livros, desde o “vaudeville” em que o Al Jolson pintava a cara de preto!...
A orquestra de Count Basie define-se totalmente se usarmos o termo — máquina. As peças são saxofones, os trombones, as trompetes. O motor é a secção rítmica com a viola, o baixo, a bateria e o velho conde, sóbrio, económico, ao piano. Uma orquestra que tanto sabe violentar com explosões de massas sonoras, como sussurrar ricas harmonias colectivas. Com esta orquestra todo o gozo é permitido: o do uníssono perfeito, o do solista bem apoiado. O triunvirato das balzaquianas afro e americanas nunca permitiu a infiltração de Anita O'Day. O que é injusto e penoso. Sarah Vaughan, Carmen McRae e Ella Fitzgerald já cantaram tudo o que a América (do Norte) tinha a cantar até hoje.
Quem? Como disse? Joan quê? Barbra o quê? Melanie, Carole e etc.? Tudo boas raparigas. Mas pouco originais!... Já agora, que se fique a saber que há já meio século de Bessie Smith se vendeu um milhão de discos, mas que ela nem por isso deixou de morrer à porta de um hospital. Não entrou; porque era preta. E que a Billie Holiday, a única homenagem póstuma que o tio Sam lhe fez foi pôr a menina Annie Ross a imitá-la num filme nojento que obteve muito sucesso em todo o mundo, incluindo o Tivoli de Lisboa. Destas senhoras há, pelo menos, discos em qualquer (?) discoteca. Mesmo cá na Pátria. É só sacudir o imperialismo musical, ouvir e comparar.
Ella Fitzgerald cantou neste concerto. Claro que Ella nunca cantou mal na vida, mas o seu reportório está esgotado, batido e assim como a sua vista está cansada, assim a sua imaginação melódica e harmónica atingiu o limite. É uma mulher que já não surpreende, sabemos a sua originalidade de cor. Ella é um bom hábito.
O intervalo do concerto serviu para aguçar a expectativa. O senhor Francisco Alberto Sinatra já estava em palco quando a cortina voltou a subir. Estava no meio da orquestra que, entretanto, já tocava. O que se usa chamar um espectáculo bem montado. Depois foi, custe a quem custar, uma hora musical inesquecível e bem difícil de descrever.
O Sinatra está gordo. Está, sim senhor.
O Sinatra tem cabeleira postiça. Consta.
O Sinatra tem pactos políticos sinistros. Yes
O Sinatra é rico. Já por várias vezes.
O Sinatra não é racista. Pois não.
O Sinatra é um símbolo. De várias coisas.
O Sinatra está velho. Está e é.
O Sinatra é americano. De Hoboken, New Jersey.
O Sinatra é cantor de não intervenção. O Dylan é sócio de uma F.B.P. qualquer.
O Sinatra tem a sua época. E eu?
O Sinatra bebe e tem um grupo restrito de amigos. Os ateus que respondam.
A orquestra já não se usa. A viola eléctrica dá choques. O Sinatra tem a mania das organizações de caridade. Uma vez, num concerto bem pago, cuja receita reverteu para crianças cegas, uma delas quis-lhe falar e perguntou-lhe, a meio da conversa «de que cor é o vento?».
Sinatra cantou os temas mais importantes do seu repertório. Para os da fase dos anos 50, usou exclusivamente a orquestra de Basie: para os da fase mais recente juntou-lhe uma secção de instrumentos de corda. Alternou, assim, “swing” com mel. Cantou a pedido, mas sob protesto, o famigerado My Way, fez a rábula de conferencista de copo na mão, o típico monólogo do artista em qualquer show americano — e foi assobiado uma vez. Quando se referiu à presente crise financeira da administração da cidade de Nova York disse que só um terço do que o Governo americano gastou no Vietname, sobejava para salvar a cidade. Meia dúzia de palmas e muitos assobios. Imperturbável, Sinatra prosseguiu, porque sabe o que vale e como usar o seu carisma. É, de facto, uma arma terrível. O concerto terminou com apoteose. A orquestra e os dois cantores. A decadência é aliciante quer seja triste, e assumida, quer seja alegre e disfarçada ou inconsciente.
A orquestra de Count Basie foi uma unidade criativa, há décadas, quando em Kansas City com Lester Young seu principal solista. A voz e a imaginação de Ella Fitzgerald foi original quando adolescente em Harlem, depois como companheira de Ellington e Armstrong. Numa sucessão de altos e baixos, Sinatra esteve no mais alto dos altos quando cantou, nos seus anos 30, L've got you under my skin, com a orquestra de Nelson Riddle, quando cantou Goody, goody , com a orquestra de Neal Hefti.
Mas a grande máquina capitalista, a voragem neutralizadora não perdoa — é implacável. Ó concerto provou que esses três estão nas mãos do consumo de qualidade, requintado. São já estrelas mecânicas, de brilho controlado - ou como tudo se deteriora, se esvazia de essência. Já não se ouviu música afro-americana mas sim afro-assimilada. A vitória do estereotipado. A alta burguesia branca e preta saiu, contente e ruidosa, do Teatro Uris, na esquina da Broadway com a rua 52. O Concerto foi um concerto de «monstros» dessacralizados.

José Duarte em O Jornal 26-09-75


Capa do programa de O concerto. 
Copiado de O Jornal 26-09-75.





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