Por Amelia Castilla
Revista Visão 14 de Agosto de 2003
Coisas encontradas em revistas
«Da Film City do Oriente saem por ano mais filmes do que de Hollywood. Só que as imagens
da cidade dos sonhos nada têm a ver com o mundo real das ruas de Bombaim...»
Foto copiada da revista Visão.
Mil filmes por ano carregados
de luxo kitsch. E dez milhões de
espectadores diários que falam, gritam e assobiam durante a projecção. Os
números da indústria cinematográfica da Índia não ficam nada atrás das cifras
da máquina-Hollywood. Viagem para Oriente, rumo ao mundo louco dos estúdios de
Bombaim.
«Suficientemente exótico? Uma melodia, uma coreografia e cores
que condigam com o sari das actrizes. Eis a receita do êxito.»
Foto copiada da revista Visão.
Romance, violência, música, dança e fortes
doses de moralidade fazem parte da mescla na qual se agita a maior parte dos
argumentos dos filmes de Bollywood. Os indianos acorrem em massa ao cinema para
assistir a histórias que nada têm a ver com o seu quotidiano e que
invariavelmente acabam com um final feliz. Embora em muitas aldeias ainda
funcione o cinema ambulante, fazem-se mais filmes na Índia do que em Hollywood.
Não é necessário conhecer uma só palavra de
hindi, a língua oficial da Índia, para seguir alguns dos melodramas de
Bollywood. Um exemplo. Um menino pobre é recolhido em casa de uma família
abastada com uma filha da sua idade. Ambos crescem juntos e felizes. Ela
encontrará um marido da sua classe social e gozará a sua lua-de-mel, recriada
numa coreografia onde se destacam os ambientes floridos (a combinar com o sari
da rapariga), muitas nuvens e muito vento a fazer voar o cabelo da protagonista
que olha com êxtase e paixão contida o seu novo marido. Tudo isto orquestrado
com uma banda sonora pegajosa e vários números musicais. O meio-irmão, garboso
galã sempre com a camisa desapertada a deixar ver os pêlos do peito (só as
mulheres se vestem de forma tradicional), triunfa como cantor e é cobiçado por
muitas mulheres, mas não encontra nenhuma que lhe agrade. O tédio, as viagens
do marido e os terríveis pesadelos que começa a ter com o meio-irmão acabam por
vencer a resistência da recém-casada que, com dor, descobre finalmente quem é o
seu verdadeiro amor.
Este seria o cliché ocidental de Bollywood,
como é popularmente conhecida a produção cinematográfica da Índia, a indústria
mais próspera deste subcontinente de mais de mil milhões de habitantes. Cerca
de mil filmes por ano, dez milhões de espectadores diários, meio milhão de
empregados. Estes são os números, mas até que ponto as fantasias reflectidas na
tela, completamente distantes da miséria quotidiana, fascinam uma população
acostumada a conviver em plena rua com elefantes, camelos, vacas e macacos?
«‘MADE IN BOLLYWOOD’ - Os produtos indianos chegam a um ginásio em
Kabul, no Afeganistão (à esquerda), e a uma barbearia no Nepal (à direita).»
Fotos copiadas da revista Visão.
A
tradição ainda é o que era
Nasreen Munni Kabir,
especialista em cinema indiano e responsável pela sua divulgação em numerosos
países europeus, considera que Bollywood se caracteriza por um pequeno número
de ingredientes que são reelaborados em cada filme. «Para satisfazer o público é preciso premir os botões adequados
actuações de estrelas vaporosas, música rítmica e melódica, decorações
extravagantes e exteriores exóticos bem como o sentimento de que a ordem social
não será posta em causa.» O seu nome é um piscar de olho ao cinema de
Hollywood, no qual se alimentou ideologicamente durante décadas, mas agora
fazem-se mais filmes em Bollywood do que na Meca do cinema norte-americano.
Longe de se ver confrontado com qualquer crise e de só com um punhado de
estreias conseguir recuperar o investimento, a produção cinematográfica em
Bombaim não pára de crescer.
Aqui, o triunfo cabe ao melodrama, aquilo a
que alguns chamam «western massala». Os argumentos recriam fábulas moralistas
destinadas a glorificar as virtudes tradicionais, a manter os privilégios dos
ricos e a passividade das classes desfavorecidas. Muitos dizem mesmo que há
compromissos para não romper com a tradição. Cada filme deve reiterar o que
significa ser indiano e reflectir os valores morais e religiosos. A procura é
tão forte que leva a diversificar a produção que se realiza sobretudo no Sul do
país, embora actualmente estejam a ser construídos novos estúdios em Deli. O
hindi, o bengali, o telegu e o taran são as línguas mais comuns nas rodagens.
«Heróis e Galãs - Os actores dos filmes de Bollywood são mais populares que as estrelas de rock no
mundo ocidental. Os seus rostos «vendem-se» em posters. Lado a lado com os símbolos religiosos.»
Foto copiada da revista Visão.
Banda
sonora obrigatória
Calcula-se que cerca de
500 milhões de indianos tenham menos de 25 anos e os filmes são sobretudo
concebidos para satisfazer esse grupo etário. Mas para que uma película seja
popular ela tem que entreter toda a família, da avó ao neto. «Ver cinema indiano é uma experiência
animada, já que o público reage perante cada reviravolta do argumento»,
acrescenta Munni Kabir. Em muitas aldeias ainda funciona o cinema ambulante.
Por caminhos poeirentos e sem nenhuma iluminação, circulam camiões carregados
com toda a parafernália necessária para tornar possível o milagre do cinema. Um
velho ecrã desdobrável, um projector e uma tenda de lona para acolher o público
são suficientes para transportar os habitantes do campo a um mundo imaginário.
A tragédia e a felicidade encontram sempre o
seu reverso numa canção. A música é autêntica força do cinema indiano. A banda
sonora dos filmes transformou- se, ela própria, num fenómeno imparável, para o
qual muito contribuiu o aparecimento da MTV Ásia. Nos autocarros, cafés e
centros comerciais soam insistentemente os temas que foram popularizados pelos
filmes. As vendas de gravações das bandas sonoras contam-se por milhões. Em
muitos casos, primeiro é lançada a música e só depois o filme. Cada dia que
passa, torna-se mais curta a separação entre música e banda sonora.
Os actores da moda de Bollywood, cujo rosto
é exibido nos enormes cartazes pintados à mão que se podem ver por todas as
cidades, são mais importantes na Índia que as estrelas do rock no mundo
ocidental. Revistas e jornais seguem atentamente os pormenores da sua vida,
embora a maior parte da população não saiba ler ou não os possa pagar.
Muitas destas estrelas chegaram a Bombaim,
Calcutá, Madrasta ou Hyderabad, as cidades onde se encontram as produtoras mais
importantes, provenientes das aldeias, à procura de uma oportunidade. Mas são
poucas as que o conseguem. A Bombaim, a capital comercial e financeira do país,
chegam diariamente 2 mil pessoas em busca de trabalho. Apesar dos esforços para
apagar as marcas do colonialismo britânico (Bombaim chama-se agora Mumbai)
ainda circulam os típicos autocarros vermelhos de dois andares e, em boa parte
dos edifícios oficiais, observa-se a arquitectura gótica vitoriana. Os
edifícios inteligentes e os apartamentos, com preços a partir dos 240 mil
euros, proliferam por toda a parte, apesar de os salários dos felizardos que
encontram trabalho não ultrapassarem os 250 euros por mês. Enquanto os ricos se
relaxam nos campos de golfe e frequentam os hotéis com piscina e lojas de luxo,
grupos de famílias inteiras dormem nos passeios cobertas de farrapos e as
crianças mendigam umas moedas pela Marina Drive, a avenida principal desta
cidade de 16 milhões de habitantes. E o trajecto até Film City, nos arredores
de Bombaim, não é mais do que um reflexo da miséria que assola o país.
Aishwarya Rai e Shahrukh Khan, duas das maiores stars de Bollywood. Fotos encontradas na net.
A
cidade dos sonhos
Apenas uma barreira e
um cartaz de madeira anunciam a entrada na cidade do cinema, onde é rodada a
maioria dos filmes indianos. Em pouco mais de 20 hectares (antes ocupados por
um bosque), rodeados por uma vegetação exuberante de cânhamo, acácias,
buganvílias e palmeiras, ergue-se quase uma vintena de estúdios e cerca de 35
cenários de templos, lagos artificiais e mansões tipo Falcon Crest sem qualquer
encanto.
Cerca de uma centena de pessoas ocupam- se
da manutenção das instalações que, à primeira vista, não têm o mínimo glamour,
como a maior parte dos estúdios de cinema. Em Film City rodam-se tanto filmes
como séries de televisão e anúncios publicitários. Em Janeiro passado, num dos
cenários uma estação de montanha de aspecto tirolês filmava- se uma película
infantil. A duração das rodagens é longa e, por isso, o cenógrafo Nitin Wable
trabalha em vários projectos ao mesmo tempo. «Muitas vezes trabalha-se por turnos, o que permite às estrelas e aos
técnicos passar de um estúdio para o outro e mudar de papel».
A pobreza também está presente nesta cidade
dos sonhos. Diante de cada filmagem, um grupo de pessoas observa sentado no
chão toda a parafernália que envolve cada cena. De cócoras, uma mulher cata uma
criança; outras correm pelo campo, enquanto um grupo de actores prepara uma
cena de uma série de televisão. Noutro cenário, não longe dali, no que parece
ser uma ponte, filma-se uma série de detectives. Krishna Arjun e Hussein
Cagrawala, dois actores da moda, simulam um tiroteio.
«Na Índia,"Casamento Debaixo de Chuva" provocou polémica. Na Europa, a realizadora
Mira Nair venceu o galardão mais importante do Festival de Veneza, o Leão de Ouro.»
Foto copiada da revista Visão.
Uma
'nouvelle vague'
A origem do cinema
indiano remonta a 1896. No Watson's Hotel de Bombaim começaram a ser
projectados os filmes mudos, mas só em 1913 foram realizadas as primeiras
películas indianas. Já então se misturava o drama e a música, para entreter uma
população que aceitava e aceita com resignação o seu destino. «O facto de a técnica cinematográfica poder
realizar o mítico constituiu uma grande vantagem na narração dos contos
heróicos. É por isto que os filmes de Bollywood continuam a conquistar a
imaginação popular da Índia», explica Munni Kabir.
Hoje, algo parece estar a mudar no cinema
indiano. Alguns realizadores, naquela que já é conhecida como a «nova onda»,
começam a demarcar-se de um cinema que não se destaca pela qualidade. Os
espectadores indianos pagam para ver o que nunca terão, mas começam a emergir
novos argumentos que abordam diferentes aspectos da sociedade indiana, contando
com o apoio de um público ainda minoritário. «Bollywood é fantasia», diz Vasundhara Das. De olhos azuis e cabelo
negro, Vasundhara é conhecida internacionalmente pelo seu papel em Casamento
Debaixo de Chuva, de Mira Nair, uma das figuras mais destacadas do novo
cinema que se faz neste país. Quando foi exibido provocou forte polémica porque
se atrevia a revelar o segredo que, durante anos, Ria guardara sobre os abusos
de que fora vítima por parte do tio. «Há
temas tabu dos quais nunca se fala, muito menos no cinema, sobretudo os que
afectam as mulheres», confessa a actriz. E a verdade é que o «produto Bollywood» começa a ser um
fenómeno que transcende fronteiras. Muitos países árabes e algumas antigas
repúblicas soviéticas já devoram este luxo kitsch. Com escasso conteúdo sexual
e nenhum reflexo da realidade social.
Amelia Castilla
EL PAÍS/VISÃO
Texto, títulos e legendas
Revista Visão, 14 de Agosto de
2003
Sonhos indianos em Lisboa
Ao longo da semana, o sr. Dhimante vai recebendo as reservas para as sessões que, de sexta a domingo, passam no Cine 222, ao Saldanha, em Lisboa. Nunca um bilhete só, que na cultura indiana ainda existe o hábito de ver cinema em família. O gerente da sala com 200 lugares que, nos outros dias, está ocupada com a programação da associação Zero em Comportamento tem então todo o cuidado na distribuição dos lugares. Para que ninguém fique separado dos seus. Para que conforme diz haja «uma certa harmonia». Dhimante Cundanlal veio de Moçambique, no princípio dos anos 80, como aliás a grande maioria dos membros das comunidades de origem indiana que vive na capital portuguesa. Do pai herdou o gosto pelas imagens projectadas no grande ecrã e hoje, explica, o que ganha com o 222 dá apenas para cobrir os custos. Segundo as suas contas, já não tem nem um terço do público que tinha na década de 70 no tempo em que o cinema oriental andava na moda no Ocidente e ele ainda experimentou legendar os filmes em português (agora, fá-lo em inglês, por causa das gerações mais novas, nascidas cá).
«Na cave do 222. A única sala de cinema que por cá passa filmes indianos.
O sr. Dhimante diz que as histórias de amor são as preferidas.»
Foto copiada da revista Visão.
Esta cave, não muito longe da concorrência dos multiplex do Monumental, é um bom «barómetro» da economia do País: «Tomamos logo o pulso à situação.» Mesmo assim, há filmes que correm bem e, quando assim é, repetem no fim-de-semana seguinte. Aconteceu com Koi... Mil Gaya - Encontrei Alguém, «uma espécie de E.T.» cuja exibição se prolongará por mais uns dias. E acontece sempre que há uma história de amor. Com muita dança, muita música e, claro, um final feliz.
O senhor Champaclal já viu Koi... Mil Gaya, última produção de Bollywood que, em Lisboa, na passada sexta-feira, 8, foi exibida em estreia mundial. Achou que era uma película «muito bonita». E até é provável que, no programa radiofónico que mantém desde 1987, venha a pôr no ar a sua banda sonora. Aos domingos, das 10 às 15 horas, na antena da Rádio Orbital, o Swagatam (palavra para a saudação de boas-vindas) assinala as festividades dos vários calendários, fala da tradição hindu, divulga pensamentos e muita música.
Porque, aqui ou na ZeeTV (a cadeia de televisão indiana, que inclui um canal generalista e outro de cinema, da qual também ele é o representante em Portugal), esta nunca pode faltar. A par de uma história que até pode fazer chorar, mas que tem que acabar «em bem».
S.B.L.
Revista Visão
14 de Agosto de 2003
14 de Agosto de 2003
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarkk adorei sua postagem de 2003, se vc estiver viva ainda mande um oi. bjs
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