Testemunhos sobre Charlie Chaplin
por
José
Mendes
Publicado
no Expresso de 15 Abril 1989
Coisa boas em jornais
O que se
aprendeu com Chaplin? Artur Semedo, Raul Solnado, Luis Miguel Cintra, Herman
José e Mário Viegas recordam os tempos de criança onde imperava a figura de
Charlot e tentam desvendar o mistério do seu legado.
Para o realizador de O
Barão de Altamira e O Querido Lilás, Artur Semedo, Charles Chaplin foi
um extra-terrestre e uma figura predominante na sua carreira: «ele esteve sempre ligado a toda a
minha vida de cinema, teatro e televisão. Foi, é e será sempre a contribuição
mais decisiva para esta espécie de cinema de feira que penso, logo faço». Reconhecendo em Chaplin uma
genialidade paradoxal, espartilhada entre a realidade e a ilusão e
continuamente assente em lutas desequilibradas, o criador de Charlot marcou
profundamente a sua vida artística. «Chaplin
evangelizou-me com as suas inquietações perante o mundo, moldou-me desde
menino, nesses tempos áureos e fúnebres em que a tosse convulsa nos levava
desta para pior. Não tossi, cresci, passei a barreira do serviço militar e
Chaplin continuou a ser o prolongamento do meu desajustado cérebro de artista -
bom ou mau, não interessa, não sou eu que estou em causa, é a dívida que tenho
para com ele».
Semedo confessa ser herdeiro de muito poucas coisas e, se
não confirma se gosta de profetizar, não parece ter dúvidas em relação a
Chaplin: «ele é imortal, vive
em todos nós. A herança-Chaplin, posso dizê-lo, foi das poucas que tive. Ele é
uma componente decisiva de toda a minha existência de solavancos tragicómicos.
Só a ele peço perdão pela insuficiência do que por cá vou fazendo».
Um legado
universal
Raul
Solnado pode ser considerado outro dos seus herdeiros. Basta para isso voltar a
ver Dom Roberto (1962), de Ernesto
de Sousa, onde o cómico português vive na pele de João Barbelas, um vagabundo
sonhador que se apaixona por Maria (Glicínia Quartin), uma rapariga com um
passado infeliz. No final tudo acaba o melhor possível e vão estrada fora
cheios de ternura, esperança... e muita fome. Diz Solnado: «No dia em que
Chaplin inventou Charlot, o vagabundo sonhador, romântico, carregado de
generosidade, humanismo, nessa data, Chaplin não só ganhou o dia como ganhou a
eternidade. Vagabundos existem muitos, Charlot só existe aquele. Ele provocava
o riso por vários ângulos; porque é desajeitado, porque é megalómano, e porque
quando parte para uma conquista já vai totalmente apaixonado».
Incluindo-se
no número de actores cómicos que devem muito a Chaplin, Solnado não deixa de se
surpreender por uma característica que, do seu ponto de vista, é admirável no
realizador de Luzes da Ribalta: a capacidade de provocar o riso através
da comoção e da revolta «que é, quanto a mim, a mais bela forma do riso.
Charlie Chaplin é o génio que nos legou este património universal e hoje todos
os cómicos do mundo são melhores por tudo o que quiseram aprender com ele».
Raul Solnado falando de Chaplin 27 anos depois: «Sou melhor actor por causa dele» e Raul Solnado e Glicínia Quartin em Dom Roberto (1962) de Ernesto de Sousa. Fotos copiadas do jornal Expresso. |
Quanto
a Luis Miguel Cintra, a figura de Charlot e a própria personalidade de Charles
Chaplin estiveram longe de o influenciar. Mesmo assim, não deixa de constituir
uma grata recordação de infância que o leva hoje a dizer que, por um princípio
rígido de não seguir os gostos das maiorias, talvez tenha injustiçado o génio
do actor britânico: «Eu vi muito mal os filmes do Chaplin. Quando os vi era
muito novo e não os voltei a ver. Ao contrário do que seria de esperar e é
espantoso, mesmo para mim, não se tratou de uma personalidade artística que me
tivesse marcado. De maneira nenhuma! Lembro-me, em miúdo, em casa da minha
bisavó, de nos fecharem a todos numa sala, a mim e aos meus primos, para ver,
através de um projector que havia em casa dela, os filmes curtos do Charlot,
como o Charlot na Patinagem e coisas assim».
A
memória do fim da adolescência, apesar de marcada pelos filmes de Chaplin,
fazem aparecer na sua vida outro actor a quem acabará por dar a preferência:
Buster Keaton. «Era um tempo em que eu achava que gostava mais do Keaton do
que do Chaplin e havia uma espécie de concurso entre os meus colegas para saber
quem gostava mais de quem. Eu gostava do Keaton mas levei algum tempo a perceber
porquê. Suponho que tem a ver com o facto de eu não gostar daquilo que a maior
parte das pessoas gostam. Apercebi-me disso muito tarde e enervava-me toda a
gente poder gostar do Chaplin».
«Buster Keaton
era o tal»
A
relação com os filmes sonoros de Chaplin, particularmente em títulos como A
Condessa de Hong Kong ou Um Rei em Nova Iorque, causaram-lhe
impressão diferente. Adorou-os, evidentemente, «mas sempre com essa ideia já
feita de que o Buster Keaton é que era o tal. Quando vi A Condessa já
era mais velho e o que acabou por ser aborrecido foi que filmes como esse não
os voltei a ver. Lembro-me de ter visto A Condessa de Hong Kong e de o
ter achado deslumbrante, fabuloso e com uma espécie de sabedoria da vida que
faz com que se possa tratar e falar das coisas mais simples e aparentemente
mais banais e também isso só muito mais tarde vim a perceber o que
significava.»
Para
quem tem acompanhado, mesmo que de uma forma fugaz, a carreira de Luis Miguel
Cintra, quer no teatro quer no cinema, seria surpreendente chegar à conclusão
que também nele a herança de Chaplin passava por referente obrigatório. O actor é o primeiro a
admiti-lo: «para a minha carreira Chaplin não foi um referente. De facto,
não o foi, mas acho que tem muito a ver com a idade com que vi os filmes.
Lembro-me de ter ido ver Um Rei
em Nova Iorque muito miúdo - nem sei se aquilo era para maiores de 18 anos -
mas sei que fui ver noite e lembro-me que isso à era uma coisa muito
extraordinária. Com As Luzes
da Ribalta já foi diferente. Vi-o outras vezes e chorava do princípio até ao
fim.»
Uma
das razões que terão levado Luis Miguel Cintra a não incluir o nome de Charles
Chaplin entre as suas referências obrigatórias deveu-se igualmente ao tipo de
mensagem veiculada pelas películas do criador de Charlot. Enquanto pensava
seriamente sobre que carreira deveria abraçar, o encenador do Teatro da
Cornucópia estava decidido, em qualquer dos casos, a não suportar melodramas
piegas: «ninguém me pode obrigar a dizer que o Chaplin foi muito importante
para a minha formação artística. Isso, de facto, não sou capaz de dizer. Havia
essa questão de se tratar de filmes muito comoventes e muito sentimentais e eu
vi-os naquela fase em que todos os adolescentes combatem isso. Quer dizer, não
podem ser sentimentais, têm de ser racionais, precisam de saber porque razão um
personagem pensa isto ou aquilo e não se deixar embalar pela comoção. Foi o
que me aconteceu em relação ao Chaplin, como se dissesse ‘não pode ser, isto é muito piegas!’»
Charlie Chaplin como soldado em Charlot nas Trincheiras (Shoulder Arms, 1918), foto LIFE Archive e como mordomo em A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967). Londres, Reino Unido, 1966. Foto de Alfred Eisenstaedt e LIFE Archive.
Humores de
palhaço
Precisamente
para contrapor o que lhe parecia a pieguice «insustentável» dos filmes de Chaplin, Luis Miguel Cintra encontrou
em Buster Keaton a alternativa ideal já que o actor americano cultivava um «lado extremamente austero e misterioso»
que lhe era muito mais agradável e que, ao mesmo tempo, fazia todo o sentido: «falar dos dois era quase como pensar na
diferença entre o palhaço rico e o palhaço pobre. Para mim, o tipo de humor do
Chaplin estava mais próximo do palhaço pobre e o de Keaton do palhaço rico, apesar
da figura do Pamplinas não ter nada a ver com o palhaço rico. Naquele tempo, o
lado melodramático do Chaplin era-me quase insustentável mas hoje acho isso uma
estupidez total, adoro os melodramas, quanto mais piegas melhor!»
Chaplin,
no entanto, possuía uma característica que, à partida, poderia encontrar em
Luis Miguel Cintra uma resposta favorável a polivalência de actividades, a
noção de espectáculo global e a forma corno, tomando um assunto específico, ele
parecia estar sempre a falar da vida inteira ao mesmo tempo: «Acho que as grandes pessoas do espectáculo
têm de ser assim, pessoas que não são capazes de distinguir o que é
representar, o que é dirigir ou o que é iluminar. Para mim ele tinha a
sabedoria típica das pessoas que, ao abordar um único assunto é como se
falassem da vida inteira ao mesmo tempo. Isso é muito bonito e sente-se que
quando está a fazer arte está a viver, quando está a fazer cinema está a falar
da vida que é aquilo que toda a gente com certeza gostaria de ser capaz de
fazer. Eu também gostava».
Charlie Chaplin vestido de Calvero descansando durante as filmagens de Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive. |
«Eu nunca morri
de amores pelo Chaplin». Herman José abre assim o jogo que, não sendo
desencantado, também não se compadece com o mito: «a única qualidade que a morte possui na classe artística é a de
envolver de repente as pessoas numa bruma de misticismo onde tudo é desculpado
e onde tudo é genial. As imagens do Chaplin têm, para mim, a mesma importância das
do Bugs Bunny».
Acreditando
piamente que o humor e a tendência para o disparate são coisas genéticas e que
não se aprendem, Herman José viu os seus primeiros «chaplins» em casa dos pais,
nos tempos de criança, e só quando fazia anos: «na altura havia os filmes de Super 8, os meus pais tinham um projector
e traziam para casa, de vez em quando, uns Bugs Bunnies e se calhar uns Mickeys
e uns Chaplins lá pelo meio porque encantavam as crianças. Quanto ao Chaplin,
parece-me que ele soube pegar numa qualidade genética, aquela tendência para o
disparate que é genética e não se aprende. Se me é permitido falar em nome de
todos os humoristas de algum êxito, no fundo o que fazemos não é mais do que
profissionalizarmos características que já tínhamos na primeira e na segunda infância
e depois, segundo a nossa esperteza, podemos comercializá-las bem ou mal».
Sobre
a personalidade de Charles Chaplin, da sua forma de trabalhar e das suas
relações com as pessoas, Herman não tem dúvidas: ele estava longe de ser um
anjo. «Chaplin era esperto. Era um comerciante,
uma pessoa muito dura a dirigir, era violento nas suas relações e nas suas
decisões e soube administrar maravilhosamente aquela qualidade de satisfazer a
necessidade que o povo americano tem de ver pieguice (que o americano é muito criança
enquanto público, precisa da lágrima ao canto do olho)».
«O meu Chaplin é
o Benny Hill»
Para
Herman José, a fase sonora da obra cinematográfica de Charles Chaplin é a mais
deficiente porque já não consegue suster a importância que o realizador tinha
alcançado no tempo do mudo: «quando eu
comecei a amadurecer, olhava para o Chaplin sem uma grande paixão e essa paixão
diminuiu quando comecei a ver os seus filmes sonoros onde já não consegue estar
à altura da importância que tinha no mudo. Ele consegue disfarçar essa
incapacidade porque era um homem cultíssimo, inteligente e que se sabia rodear
muito bem mas, salvo raríssimas excepções, eu não considero os seus últimos
filmes obras-primas».
Entre
os personagens criados por Herman José, uma galeria notável e cada vez mais
vasta, a figura do Sr. Feliz (na dupla «Feliz e Contente», ao lado de Nicolau
Breyner) foi, por diversas vezes, ligada a Charlot. O fato negro, o chapéu de
coco e a bengala indiciavam-no quase sem equívocos. Mas, segundo o autor de
Hermanias, não era no «boneco» que a relação resultava: «o 'Feliz e Contente' foi inspirado no Dupont e Dupond, do Hergé mas,
como aconteceu com o Chaplin, o que eu fazia era disfarçar a minha incapacidade
para fazer outras coisas que não sabia fazer (estava no teatro há um ano) e os
meus tiques pessoais, em certas coisas, poderiam ter alguma coisa a ver com o
Chaplin mas só por coincidência e não por influência».
Um
herói, para ele, se o tem de haver, é Benny Hill: «ele é muito discutido e contestado em certos círculos mas, quanto a
mim, é genial. O Benny Hill é o meu Chaplin ». Assim, a grande lição do
autor de Tempos Modernos, o seu maior ensinamento para aquilo em que Herman se
veio a tornar resume-se à questão do trabalho. Também para Herman José tudo tem
de ser feito com extremo rigor: «é certo
que ele me deixou isso, mas o rigor é o que nós temos de aprender à nossa custa.
Não há génios espontâneos em nenhuma
profissão».
Quanto à personalidade de Charles Chaplin,
Herman não partilha a opinião de Artur Semedo. O criador de Serafim Saudade tem
de Chaplin a ideia de um homem sorumbático, mas reconhece que a partir dos
quarenta anos todos os comediantes têm a tendência para compensar na vida
privada a alucinação da vida profissional, «e olhe que eu conseguia
suportar a pieguice dos filmes dele, talvez porque ela era tão bem produzida e
em doses tão certas que não chegava nunca para chatear. Fazer melodrama sem
ficar ridículo é uma arte dificílima que ele dominou, admiravelmente desde o
princípio. Mas para mim não era um extra-terrestre, antes pelo contrário, ele
não podia ter sido mais gestor, mais 'yuppie' e mais terrestre do que foi. Isso
é que lhe deu o êxito»
O enorme peso do
fantasma
«Ele é o maior
actor do século XX».
Quem o afirma, sem o mínimo sinal de relutância, é Mário Viegas que, apesar de
não se lembrar de quando começou a ver os filmes de Charlot, recorda - também
ele - as sessões em casa dos pais «com aqueles filmes todos cortados, que havia
por aí, do Chaplin e do Bucha e do Estica» e do tempo em que assistia a catorze
sessões seguidas de Os Tempos Modernos na sala do malogrado Teatro Monumental. «Foi sempre a pessoa que mais me comoveu
ver a representar. Era uma máquina de fazer rir e de comover as pessoas, porque
fazer rir é comover, as pessoas riem por emoção».
Mário
Viegas sempre se perguntou se Charlot era um burguês decadente ou um proletário
em ascensão. Muito poucos o terão provavelmente visto assim, mas para o actor e
recitador, sempre concentrado no personagem Charlot, o «fantasma» de Chaplin
pesa, enorme, sobre qualquer actor: «ele
quebrou, através da figura do Charlot, a fronteira entre o riso e o choro e não
há nada mais dramático, às vezes, do que fazer rir. Depois dele pouco mais
apareceu. O Charlot não envelheceu com o actor Charlie Chaplin ao contrário de Buster
Keaton, que era autodestrutivo e autêntico como no filme Film
em que ele tem a coragem de nos dar a figura de um Pamplinas velho. Ele é o
grande actor cómico dos pobres e é um grande bloqueio - senti muito isso quando
estava a fazer o filmezinho com o Sam - compreender que o Chaplin esgotou quase
todas as formas. Ele é o complexo de inferioridade de qualquer actor».
Texto, titulo e legendas das fotos copiadas: José Mendes
Publicado no Expresso de 15 Abril 1989
(Fotos LIFE Archive)
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