Texto de
António Cabrita
Expresso, 14 Junho 1991
«Quem eram os Dez de Hollywood?. Este documentário de 1950 dá uma visão dos 10 escritores e diretores de cinema da lista negra, que desafiaram o governo ao se recusar a depor durante a "caça às bruxas". John Berry, que dirigiu o documentário, foi posto na lista negra após a sua realização.» (Films Ironweed). Carregado no youtube por mattnhormann em 09/01/2011.
Coisas boas em jornais
Joseph McCarthy e o escritor Dashiell Hammett, fazendo o juramento na Comissão Permanente do Senado de Investigação sobre o comunismo. Washington, DC, USA. 1953, Hank Walker. E, Dashiell Hammett respondendo às perguntas do "caçador de bruxas", Joseph McCarthy. Washington, DC, USA. 1953, Hank Walker.
«A SENHORA tem a certeza?» O Comité estava desconcertado. J.Parnell Thomas não queria crer na obstinação de Ayn Rand, uma obscura argumentista que fora convocada para, na sua qualidade de natural da URSS; confirmar que Song of Russia, com Robert Taylor no principal papel (um maestro americano que viaja pela Rússia e se apaixona por uma autóctone), tresandava a propaganda comunista. Mas a exçêntrica senhora, de inabaláveis convicções direitistas; assinale-se, trocava-lhe as voltas: «Eu não sei onde é que o estúdio fez as filmagens mas nunca vi nada daquilo na Rússia. Em primeiro lugar vêem-se os supostos edifícios de Moscovo - grandes, com uma aparência próspera e limpa – com algo ao fundo que me parecem cisnes ou barcos á vela. Depois vê-se um restaurante de Moscovo que simplesmente nunca existiu (...) E onde é que já se viu – os camponeses felizes, a saudarem o herói, na estação, com belas blusas e sapatos como nunca ali houve? Ou vedetas de unhas arranjadas a dirigirem: tractores:..»
«Mas a senhora não vê aí elementos de propaganda?»
«Não, vejo mentiras.»
«Minha senhora, estamos aqui para julgar o grau de influência comunista na elaboração daquela história...»
«E eu asseguro-lhe que nada é assim na Rússia. Pois se o rapaz e a rapariga se encontram num restaurante que nem sequer existe em Moscovo(...)»
«A senhora», interroga agora John McDowell, um republicano da Pensilvânia, «pinta um retrato muito sombrio da Rússia. A senhora insiste muito na tristeza das crianças. Ninguém ri na Rússia?»
«Bem, se me pergunta literalmente: não. Não muito.»
«Eles não sorriem?», o incrédulo McDowell.
«Não, não muito.»
É Otto Friedrich em A Cidade Das Redes, Hollywood nos Anos 40, Companhia das Letras, quem conta, bem como os outros episódios que a seguir se narram. Esta cena passou-se em 1947. Luis B. Mayer, da MGM, era a segunda figura de Hollywood a testemunhar perante o Comité de Actividades Anti-Americanas (HUAC) - o primeiro a ser «honrado» fora Jack Warner - e enfrentava a suspeita levantada por Robert Taylor, ao declarar que por pressões dos «auxiliares de Roosevelt» (um aliado natural dos «vermelhos», segundo a delirante presciência de MacCarthy) fora obrigado a, terminar o filme, adiando com isso a sua incorporação na Marinha (em período de guerra). Ainda para mais o argumento era assinado por Richard Collins e Paul Jerrico, dois escritores assumidamente hostis às actividades do Comité. O inesperado depoimento de Ayn Rand lançava o ridículo no seio dos inquisidores.
Bertold Brecht fumando um charuto, e respondendo às perguntas do Comité de Investigação de Actividades Anti-Americanas. Washington, DC, USA. Novembro, 1947, Martha Holmes. E, o compositor Hanns Eisler prestando depoimento ao Comité de Investigação de Actividades Anti-Americanas. Washington, DC, USA. Setembro, 1947, Francis Miller.
Em 1947 os produtores ainda replicavam num documento comum: «Não seremos intimidados pela histeria ou pela ameaça, venham de onde vierem», mas à cautela do poder politico, já se preparavam para dispensar os Dez de Hollywood (um grupo de irredutíveis, na maioria argumentistas, que tiveram a coragem de levantar a voz contra o HUAC e que acabaram na cadeia, por desacato e desrespeito ao Comité), com a jura de nunca mais voltarem a empregar comunistas.. Os próprios sindicatos estavam divididos e o Screen Writers Guild, considerado até então um feudo de comunistas, recusa-se a ajúdar os Dez de Hollywood, a aliviar-lhes os custos dos seus apelos judiciais.
Foi uma bola de neve de grande
aceleração, depois de um período em que a influência dos artistas conseguiu suster as investigações do Congresso. O barulho feito por Dalton Trumbo e Ring Lardner, dois dos Dez, para fazer vingar á Primeira Emenda, segundo a qual o Congresso não tinha o direito de criar nenhuma lei que restringisse a liberdade de pensamento e de reunião, travou por momentos as investigações e criou ilusões acerca do verdadeiro poder de intervenção dos acusados. Há até uma história divertida passada com Lester Cole, outro dos Dez, que ilustra o estado de confiança com que a «esquerda», digamos, enfrentava nos primeiros anos as provocações dos «denunciadores da conspiração». Cole estava a cortar o cabelo na barbearia da MGM quando foi prevenido, pelo telefone, de que chegara ao escritório um Oficial da Justiça com uma convocação para ele. «Quer fugir,_enquanto eu o distraio?»; pergunta-lhe Eddie Mannix, o administrador do estúdio. «Fugir?», retorquiu Cole, «Para onde? Diga-lhe que estou na terceira poltrona da barbearia.»
Entretanto o delírio anticomunista chegava a este estado de coisas: Leo McCarey que ficara rico produzindo e realizando Going my Way, com Bing Crosby, onde um padre católico tocava boogie-woogie, e «The Bells of St. Mary», queixou-se durante o seu testemunho de que os seus filmes não lhe tinham dado qualquer lucro na União Soviética.
Quatro anos depois MacCartismo estava no auge e a paranóia começou a funcionar como uma espécie de alibi para a denúncia e para o tráfego de pequenas corrupções, alimentando o desnorte e o medo num país que se considerava a maior democracia no mundo. Cada semana trazia o seu lote de decepções, os amigos a entreolharem-se, desconfiados, nos «cocktails». A Lista Negra começara a fazer enormes sangrias e Elia Kazan dera uma, grande machadada na moral dos «homens íntegros» ao alistar-se entre os delatores. Atrás dele, ou caucionados pela sua sombra imensa, as línguas iam-se desatando: Michael Gordon, Lee J. Coob, Silvia Richards, Roy Huggins, Isobell Lennart, Leo Townsend, Budd Schulberg, Edward Dmytryk, Richard Collins, Jerome Robins, Edward G. Robinson, Gingers Rogers e Robert Taylor cederam à chantagem e denunciaram. Razões várias explicam a fraqueza humana desta gente de inegável talento. Medo de perderem emprego e posição social, o pânico do cerco associado a um constrangimento físico (como desculpar de outra forma a cobardia de Brecht que quando instado a confessar se alguma vez tinha pensado em entrar para o Partido Comunista se apressa em . atraiçoar-se «Não, não, não, não, não, nunca!»?), a própria necessidade de se ser igual e de se pertencer a uma maioria de êxito. Para além das razões ideológicas que poucos, como Reagan, podiam à primeira vista reivindicar para si. O próprio Kazan manteve sobre a sua opção um razoável pudor, nunca tendo sido, em trinta anos, completamente convincente nas razões ideológicas que avançava para a sua «traição» aos amigos e sobretudo a Arthur Miller.
Num livro, de Victor Navasky sobre os delatores (Les Délateurs, 1980, Balland), estes, em discurso directo, descriminam os motivos da sua delacção. Quase todos acusam uma certa vergonha e um sentimento de terem sido «falhos» de carácter (Richard Collins admite mesmo ter-se comportado como um «crapulazinho») Mas a posição mais interessante chega-nos de Budd Schulberg, o escritor de O Que Faz Correr Sammy?. Fundador, com Arthur Koestler, de um Fundo Para A Liberdade Intelectual (FIF), Schulberg sempre acusou, mesmo antes de depor, os escritores liberais ou comunistas americanos, de Lillian Hellman a Dalton e Miller, de hipócritas prontos tanto a darem-se como mártires na sua terra como a silenciarem sobre a censura e a repressão que os escritores do mundo comunista sofriam na sua terra. «Tenho remorsos por causa do que se fez aos checos e não do que se fez a Ring Lardner (...) todos eles, anestesiados pela doutrina comunista, concorreram para o estabelecimento de um sistema de listas negras, para a organização de um verdadeiro jogo de massacre (...) Eles contestam os nossos depoimentos, eu contesto-lhes o seu silêncio». Schulberg escolheu entre dois males e esta curiosa posição é sustentada pela regularidade com que o escritor dava ferroadas no macarthismo com que colaborara.
E o que uma nação inteira que viveu largos anos para a denúncia e a auto-recriminação não se lembrou de pensar é o que nos dizem a frieza dos números: em1952 o relatório anual da HUAC incluia uma lista alfabética de 324 pessoas dadas como comunistas inquestionáveis, em Hollywood. 324 reles bruxas entre 30.000 serviçais do cinema. É pouco para tanto barulho.
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