sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Esperando a neve

de
Luis Fernando Veríssimo



Gosto muito desta história. O Egipto estava sendo atacado por Israel e não sabia como se defender. Pediu conselhos à Rússia. O que fazer? Ninguém melhor do que os russos para ensinar como resistir a uma invasão e derrotar um exército mais forte do que o seu. Afinal, eles não tinham detido o grande exército de Napoleão? Não tinham parado o grande exército de Hitler? Os russos saberiam o que fazer. Ou o que aconselhar. Mas tinham que aconselhar logo. A força israelita aproximava-se do Cairo.
— Deixa eles virem — foi o conselho dos russos.
Os egípcios deixaram eles virem. Os  israelitas continuaram avançando. Os egípcios preocupados. Até quando deveriam esperar para agir? Calma, disseram os russos.
— Deixa eles virem.
Os israelitas continuaram avançando. Os egípcios nervosos. Não seria melhor... Não, disseram os russos.
— Deixa eles virem.
Os egípcios, finalmente, se desesperaram. Estava certo, os russos tinham detido Napoleão, tinham parado Hitler, mas a única táctica que recomendavam era deixar os invasores avançarem?
— Exacto — respondeu o estrategista russo, de Moscovo. — Quando vier a neve, eles ficarão 
imobilizados.



Sempre me lembro desta história quando ouço as razões para se seguir os  conselhos de economistas liberais do FMI — enfim, dos nossos estrategistas russos — sobre os apertos que temos de sofrer agora para merecer a redenção que virá com o tempo, como a neve. Se a história de todos estes anos de economia de mercado e obediência ao conselho liberal na América Latina ensina alguma coisa é que a neve não vem nunca. Antes aumentou o deserto, agravou-se justamente a realidade que os conselheiros ignoram, a emergência social que transforma qualquer pedido de paciência e qualquer ortodoxia económica, mesmo as mais bem intencionadas, numa forma de escárnio. Brasileiro gosta de uma contradiçãozinha semântica. Na terra de corruptos impunes e de maracutaias diárias, qual é o adjectivo nacional mais elogioso?
Legal! Deve ser por isso que por aqui conseguiram transformar responsabilidade fiscal em antónimo de responsabilidade social. É o que dá confiar em estrategistas russos.


(Luís Fernando Verissimo em O Globo, 25/07/04, foto da net)


(foto Francisco Grave)



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