quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quando a Callas ajoelhou perante o público de Lisboa


Texto de

Vítor Pavão dos Santos

Jornal Se7e 

16 Dezembro 1981


«Considerada a maior soprano de todos os tempos, Maria Callas aterrou em Lisboa em Março de 1958 
para cantar a ópera La Traviata no Teatro Nacional de São Carlos. 1958. António Amado dos Santos.»
Foto encontrada em www.sabado.pt - Memórias do Aeroporto de Lisboa


 Coisas boas em jornais



Foi em Março de 1958. Como muitas vezes acontece, a Primavera chegara cedo. 
Como quase sempre acontece também, uma nuvem de aborrecimento envolvia Lisboa.

Quente demais para Março

Os divertimentos não eram muitos. O melhor ainda era ir dançar, na boite do Hotel Tivoli, ao som das músicas italianas então em moda. Pelos cinemas, o filme mais gozado era As lavadeiras de Portugal (Les lavandières du Portugal, 1958), «tourné au Portugal, en Avril», como diziam os anúncios. Nele, um par de agentes de publicidade (Jean-Claude Pascal e Annie Vernon), que queriam lançar uma máquina de lavar, vinham até cá para descobrir uma típica lavadeira, que acabava por ser a espanholíssima Paquita Rico, ex-virgem gitana, bebendo manzanilla e lavando roupa na Nazaré, enquanto Erico Braga puxava as redes e Carlos Ramos cantava o fado. Tudo isto bestialmente colorido.
E foi também nesse mês que apareceu  Sangue Toureiro,  o primeiro filme português às cores, com a Amália, muito mal fotografada, vivendo um amor impossível com Diamantino Viseu, e cantando mais um  hit  do Frederico Valério:  Amor, sou tuaDe notável, no teatro, só a engenhosa encenação com que Francisco Ribeiro deu vida nova, na Trindade, a uma peça de Júlio Dantas, muitos anos proibida pela censura: Um serão nas Laranjeiras.
E havia ainda as manifestações artísticas chics, como Liane Daydé e Michel Renault, «de l'Opéra de Paris», a dançarem no Tivoli. E, claro, decorria a sempre tão exclusiva temporada de ópera de S. Carlos. A quinta-feira à noite, com smoking obrigatório e ao domingo, na matinée mais democrática, o teatro iluminara-se, nesse mês de Março, para revelar a grande criação de Tito Gobbi, em Falstaff, de Verdi, a que se seguira a graça picante de Giulietta Simionato, em L'italiana in Algeri,  de Rossini.
O público era, como sempre, o mesmo. Uns iam para se verem aos outros. Alguns porque, além disso, também gostavam de ver ópera. Mas, uns e outros, todos aguardavam a grande sensação: a estreia, em Lisboa, a 27 de Março, de Maria Callas, em  La Traviata, de Giuseppe Verdi.

«Maria Callas e Alfredo Kraus, no palco de S. Carlos, numa cena do 1º acto da inesquecível La Traviata de 1958»
Foto copiada do jornal Se7e


«Vissi d'arte, vissi d'amore»

Era, por esses anos, Maria Callas uma das mulheres mais célebres do mundo. No entanto, embora o prestígio do seu talento fosse enorme, as primeiras páginas dos jornais preferiam ocupar-se dos seus «escândalos», dos seus «caprichos» de  prima donna, capaz de deixar a meio uma representação, mesmo que houvesse um presidente da República na assistência, como recentemente acontecera em Roma.
Esta onda de sensacionalismo mal deixava então compreender que esses «escândalos» e «caprichos» significavam um desmedido desejo de perfeição, uma intransigência artística que nunca pactuava com a mediocridade. Que, afinal, esses insultos ao público correspondiam a um respeito quase místico por esse mesmo público.
Sabia-se que a sua voz tinha possibilidades excepcionais, embora fosse uma voz difícil. Mas talvez não se soubesse que, devido a essa voz, muitas das obras do grande reportório lírico do século XIX tinham sido ressuscitadas, recuperadas para o público actual.
Sabia-se que fora gorda, como deviam ser as prima donnas, e se tornara depois elegantíssima, dizia-se que com prejuízo da sua voz. Mas sem, no entanto, se explicar claramente que fora assim que ela pudera fazer acreditar, ao moderno público, aquilo que vivia no palco, abordando as grandes personagens do passado como se acabassem de ser criadas, despojando-as de décadas de tradição deformadora.
Sabia-se, enfim, que a Callas arrastava multidões aos teatros, com a sua arte e os seus escândalos, mas raro se esclarecia que ela dava a essas multidões o máximo da sua arte e da sua vida, conquistando-as para o espectáculo da ópera, que encontrara decadente e abandonaria, depois de quase apenas dez anos de uma carreira de fulgor imcomparável, como algo vivo, cheio de novo entusiasmo e vibração.

 «Por Lisboa, passou Maria Callas, deixando um rasto da sua arte» In, Crónica Feminina, nº 73, 14-04-1958.
Fotos de conversamuitaconversa.blogspot.pt


Champanhe francês também para o coro

E um  dia  de  sol  de  fim  de Março,  Maria Callas  chegou  a Lisboa, instalando-se no único hotel chic da cidade, o Aviz Hotel, com uma bagagem numerosa, que incluía secretárias, o seu ainda marido e mentor, o comendador Meneghini, e um cão minúsculo, que nunca a largava.
Para os que farejavam o escândalo, mostrou-se simpática e distante, deixando-se fotografar em abundância, fazendo declarações de circunstância. Para alguns jovens entusiasmados, que a procuravam, era bem diferente: amável, acessível, muito interessada em conhecer o nosso meio musical.
Entretanto, S. Carlos limpara o pó àqueles sempre bafientos cenários que, durante décadas, Alfredo Furiga teve o monopólio de desenhar, decorando-os com certa riqueza para a grande noite.
Ao que constava, La Callas exigira um camarim digno, e a direcção do teatro mandou forrar de seda e decorar com gravuras aquele que passaria a ser o camarim da Prima Donna.
E que à Callas se ficou a dever. E quis também champanhe francês, no ensaio único e nas duas representações, o que deve ter estimulado todo o elenco, desde há muito escolhido, em que o jovem barítono italiano Mário Sereni interpretava o pai Germont, e onde se destacava, em estreia em Lisboa, um ainda mais jovem tenor espanhol, que havia de dar que falar, chamado Alfredo Kraus.
As duas récitas estavam esgotadíssimas. Na noite de quinta-feira, agarrei-me à telefonia e fui ouvindo a transmissão directa, feita pela Emissora Nacional. Como sempre acontecia quando a Callas cantava, as opiniões dividiram-se, Uns deliravam, outros detestavam. Indiferente é que ninguém ficava.

Maria Callas por Cecil Beaton. 1957.
Foto encontrada em mobiletest.moma.org


A maior actriz que já vi!

E chegou finalmente a matinée  de domingo. E eu, perigosamente debruçado de um camarote de 2ª ordem, perto do palco, ouvi impaciente a breve abertura de La Traviata, até o palco revelar a festa inicial. E entre a multidão dos convidados, surgiu Maria Callas, deslizante, fazendo esvoaçar um vestido de tule, cinzento-violeta, onde faiscavam alguns diamantes. Foi logo um deslumbramento. Alta, esguia, muito branca, de olhos electrizantes, com um nariz enorme, equilibrado por uma boca também enorme. Era uma figura magnífica, que se impunha, mal aparecia em cena. Embora a voz vibrasse estranhamente, o que mais me fascinou, e me acompanhou por toda a vida, foi o seu talento de actriz. A maior actriz que vi até hoje. Afirmo isto, sem medo de exagerar.
A interpretação, embora levada a extremos de pormenor, mantinha sempre uma linha, uma noção global. Falsamente alegre, mas fria e distante, ela mostrava-se subitamente impressionada pelo jovem Alfredo, que Alfredo Kraus, com a sua bela figura, a sua juventude de olhos incendiados, a sua voz quente, encarnava com rara perfeição.
O «brinde» foi magnífico, e depois, ao despedir-se dos convidados, a todos tratava de modo diferente: a uns lançava um sorriso vago, por vezes por cima do ombro, para outros, porém, era afável; a uns beijava na cara, a outros estendia a mão, quase sem os olhar. Tudo rápido, mas tudo muito marcado, e tão intensamente teatral e humano que a figura da grande dama do demi-monde, Violetta Valéry, se erguia logo no palco, para não mais se poder esquecer.

Um enorme arrepio final

Os aplausos cortavam constantemente a representação. No segundo acto, com um simples vestido de seda cinzento, só alegrado por um  pequeno ramo de malmequeres, o seu arrebatamento apaixonado transformava-se em indignação feroz, de olhar chispante, na cena com o pai Germont, para depois aceitar a resignação, com uma dignidade quase solene.
No terceiro acto, a aparição de Maria Callas era toda feita de um exagerado luxo premeditado, com um enorme vestido de veludo verde-garrafa, onde brilhavam arabescos de  starss.  Mas a vulgaridade da cortesã, mergulhada de novo no mundo da frivolidade, quebrava-se constantemente, mostrando-se a mulher vulnerável, presa a um juramento, depois humilhada, caída no chão, com o seu olhar a pairar, entre o assustado e o desafiador.
Mas todo este imenso caudal de emoções se concentrava no último acto. Arrastando um largo déshabillé flutuante, rosa-creme, com os longos cabelos vermelhos caídos, o seu rosto exprimia tal angústia, que doía de fixá-lo. Depois do grito dilacerante de É tardi!, ao terminar a leitura falada da carta de Germont, o Addio del passato era cantado num choro abafado, acompanhado de gestos muito lentos, como se o corpo, já sem vida, apenas fosse agitado por um vago vento. E, de súbito, com o anúncio da chegada de Alfredo, era possuída de uma agitação frenética, tentando levantar-se, para logo cair sem forças, observando-se num pequeno espelho de mão, que escondia, e voltava a erguer, interrogando- se, ao mirar-se.
Pela minúcia da representação, mais parecia assistir-se a um encadeado de grandes planos cinematográficos, que terminavam na morte, quando ainda ficava a pairar, no ar, aquela voz de espanto e de arrepio, que sublinhava a maior interpretação da Dama das Camélias per musica, a que alguma vez se terá assistido.

Maria Callas e Alfredo Kraus, La Traviata de Giuseppe Verdi.
"Parigi, o cara". Lisboa. 1958.

A «prima donna» ajoelhada

No final, a sala estava ao rubro. O delírio atingiu o inesperado, por muito que se esperasse. Durante cerca de dez minutos, pelo meio de um clamor que fazia estremecer S. Carlos, Maria Callas agradeceu, acompanhada pelos outros intérpretes e pelo maestro Franco Ghione. O conjunto ía e voltava, mas os gritos e aplausos não cessavam de aumentar. As flores choviam sobre o palco, e ela distribuía-as pelos acompanhantes.
Até que, por fim, apareceu sozinha. Muitas mais flores cairam então, enquanto os espectadores dos camarotes e do balcão corriam, em tumulto, até à plateia, para ficar mais perto dela. Maria Callas parecia atordoada, movimentava-se, esboçava sair, para logo voltar. Como não sabendo mais o que fazer para corresponder a um tão esmagador entusiasmo, ajoelhou-se perante o público, deixou cair os braços, curvou profundamente a cabeça, com a longa cabeleira vermelha sobre o peito, e permaneceu assim, estática, como vencida perante aquela torrente de admiração, durante largos minutos, numa atitude de beleza inesquecível. Mas essa grande exaltação estava longe do fim. Subia em vibração. E foi então que, satisfeita mas perturbada, Maria Callas começou  a apanhar lentamente  as flores que lhe tinham atirado, a beijá-las, uma a uma, e a atirá-Ias ao público, como que devolvendo os aplausos dessa audiência que demonstrava saber corresponder à sua arte com uma energia insuspeitada. 

Capa da edição americana de «La Traviata» da Callas, 
na «San Carlos Opera House», da etiqueta Angel. 
Foto copiada do Jornal Se7e

E  agora «La Traviata» de Lisboa

Passaram-se muitos anos, assisti a outras grandes performances,  a outros delírios, mas aquela tarde em que Maria Callas cantou La Traviata, em S. Carlos, permaneceu, para mim, inultrapassável.
Ouvi depois, vezes sem conta, a única gravação de La Traviata com Maria Callas, existente, feita, para a Cetra, em 1953. Mas nunca consegui recapturar o fascínio daquela tarde de Março de 1958. De facto, sempre se lamentou que Maria Callas não pudesse ter gravado La Traviata quando a sua interpretação atingira a maior altura, depois das célebres encenações que, para ela, fizeram Luchino Visconti, no AlIa Scala, em 1955, ou Franco Zeffirelli, na Ópera de Dallas, em 1958. E isso aconteceu devido ao contrato de exclusividade para esta ópera, feito, em 1953, com a Cetra.
E eis que, no ano passado, chego eu a Nova Iorque, e vejo, em todas as lojas de discos, como grande sensação, uma nova gravação Callas — Traviata,  a chamada La Traviata de Lisboa.  Nada mais, nada menos que uma gravação feita em S. Carlos, em 1958, e que, editada agora comercialmente, se transformou num enorme êxito discográfico, com edições em vários países, incluindo Espanha. Quando chegará até cá?
Voltei então a encontrar, entre aquela tosse típica do público lisboeta, e os gritos inesperados do ponto, a Callas, no seu máximo esplendor, vivendo e morrendo em música Mas há, no entanto, uma pequena parcela apenas do que vivi naquela tarde. Nessa gravação, só há uma coisa que me faz uma raiva danada, é que cortaram praticamente todos os aplausos.

Texto de Vítor Pavão  dos Santos
Jornal Se7e
16 Dezembro 1981



La Traviata em Lisboa em 1958 com Maria Callas (Violeta), ópera na qual participou Maria Cristina de Castro (Amina).

UMA PORTUGUESA NO ELENCO

«Com pouco mais de 20 anos, Cristina de Castro estuda canto com Elena Pellegrini. Estreou-se no S.Carlos em 1955, num dos “pagens” de “Tannhauser”, e no Coliseu dos Recreios canta pela primeira vez em Novembro desse ano, na ópera “Um Sonho de D. João V”, da autoria do Conde da Esperança. Presença constante nestes dois palcos, sobre ela escreveu Joly Braga Santos: “Não só a sua voz é linda e exemplarmente colocada, como revelou um talento histriónico excepcional”. Em 1958 integra o elenco da célebre “Traviata”, com Maria Callas e Alfredo Kraus, fazendo o papel de “Annina”. (Na foto, Cristina de Castro com Callas) Em 1960 participa num concurso internacional de canto, em Liverpool, classificando-se como a melhor cantora estrangeira. Três anos depois inicia a sua colaboração na Companhia Portuguesa de Ópera, do Trindade, cantando a “Rosina” do “Barbeiro de Sevilha”. A sua carreira prossegue até princípio dos anos 70, altura em que se torna professora do Conservatório Nacional. Quem se recorda das temporadas de S.Carlos e do Trindade nos anos 50 e 60, certamente não esquece Cristina de Castro.»
(Fonte: Mário Moreau, "Cantores de Ópera Portugueses", Vol.3) 
Foto e texto encontrados em tv.rtp.pt



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