Ava Gardner, a derradeira imagem
Texto de
M. S. Fonseca
Expresso, 3 Fevereiro 1990
QUANDO Ava Gardner chegou a Hollywood, em 1940, Louis B. Mayer
podia mais na MGM do que
Deus-todo-poderoso no reino dos céus. De resto, a imperfeição da natureza era tão
óbvia que a MGM não tinha outro remédio senão reproduzi-la em estúdio e corrigir-lhe
os defeitos. Ava Gardner era um desses defeitos.
Agarraram nela, levaram-na para o «Stage
15», o maior set do mundo, e fizeram-lhe o primeiro teste. Lee Garmes, um dos
maiores directores de fotografia de Hollywood — que o digam Sternberg, Hawks,
Mamoulian, King Vidor ou Nick Ray —, fotografou-a e, como Mayer não tinha tempo
a perder, sintetizou-lhe assim os resultados:
«Não sabe representar. Não sabe falar.
Mas é espantosa». Garmes era bruxo. Durante dez anos, até à Pandora
de Albert Lewin, cada filme de Ava Gardner levava reticências, muitas
reticências e, a seguir, como remate, a constatação, de Garmes, «... but she's terrific».
No meio do teste, Ava Gardner dizia o nome: «Ahvuh Gandnah». Ninguém percebeu. «Depois
muda-se», declarou Louis B.
Mayer. «Depois muda-se», era para todos os efeitos o lema de qualquer estúdio.
Mudava-se tudo. Chamavam-se os departamentos, o guarda-roupa, a caracterização,
e entregava-se-lhes a candidata (que às vezes era o) nas mãos padronizadoras.
Ava Gardner não foi excepção. Fizeram-lhe tudo isso, mais uma ida ao dentista, abriram-lhe
conta, desenharam-lhe um currículo, deram-lhe aulas de dicção e de representação.
E Mayer preparava-se para lhe mudar o nome quando reparou que Ava Gardner era bom,
perfeito até. Só que o estúdio não podia correr o risco de dar o braço a torcer
— uma vez que fosse — no seu confronto com a «natureza». E se Ava Gardner conservou
a sua graça foi porque Mayer criou a ficção de que o nome de baptismo da
rapariga era Lucy Ann Johnson, nome impossível que o estúdio corrigira para a sonoridade
harmónica de Ava Gardner.
«Femme fatale»
Depois de tudo corrigido,
dentição, cabelos, pronúncia, o estúdio deu-lhe (ou não deu?) uma carreira.
Fê-la fracassar de filme em filme, mantendo-a em banho-maria durante dez anos.
Foi premeditado? Ou foi a prova clamorosa dos vícios do sistema? Jean-Luc
Godard — o grande e, não me lixem, mesmo grandessíssimo Godard —, no seu estilo
aforístico, disse um dia: «O cinema não se interroga sobre a beleza
de uma mulher; o que faz pôr em dúvida o seu coração, registar a sua perfídia».
A MGM e Louis B. Mayer, ofusca-dos pelo magnetismo de Ava, procederam inversamente.
Fizeram filmes para a imagem dela, querendo que ela fosse refém dessa imagem: sex goddess, como é óbvio. A pouco e
pouco foi-se consagrando o mito frívolo de
femme fatale, consubstanciado em
casamentos e aventuras que envolveram Mickey Rooney, o músico Artie Shaw, Frank
Sinatra e, quando Ava se pôs a incarnar a mulher segundo Hemingway (oops!),
alguns «matadores» espanhóis. O mito prevaleceu sobre os filmes medíocres.
Firmou-se a ideia de que não sabia representar (ideia alimentada com
insistência pela própria Ava), devendo por isso assegurar-se que os filmes não
perturbassem as características do produto
de identificação: uma beleza felina, uma mulher inacessível, um «mito que
se recusa aos homens». Era para a ver assim que o público pagava, foi assim que
a MGM a conservou. Ela sobreviveu, mas esteve longe de sair incólume. Bebia
tudo o que lhe aparecia pela frente, gin, vodka, tequila, rum, scotch, bourbon,
cerveja e champagne: para não ferir susceptibilidades, a tudo o que enchia um
copo pôs o nome macio de «shampoo». Robert Mitchum, quando contracenavam em My
Forbidden Past, compadeceu-se e procurou tirá-la do vício. Mas Ava nunca se
conseguiu habituar à marijuana e Mitchum não teve outro remédio senão continuar
a fumar sozinho.
«Se eu soubesse representar
tudo teria sido diferente... Mas tive o azar de ter esta cara fotogénica». Foi o que Ava
disse a Henry King durante as filmagens de Snows of Kilimanjaro.
Ava Gardner by Wayne Miller, 1959 (esq.) e Ava Gardner, foto do Expresso.
Figura de redenção
Deixara já de ter razão. Em 1950, Albert Lewin,
filmara-a pela primeira vez a cores, em Pandora and the Flying Dutchman. A imagem
do estúdio, armadilhada por Mayer, Lewin, que tinha fama de esteta e modos de «grande
senhor», opôs pela primeira vez a contra-imagem, fazendo-a surgir como uma
figura de redenção. E, em 1953, com Mogambo de John Ford, ao lado de Clark Gable,
Ava Gardner provou, mais do que em qualquer outro filme, que poderia ter sido
tanto mais actriz quanto tivesse sido muito menos «star». «Ford foi maravilhoso a dirigir-me, a falar comigo, a fazer-me
compreender. Acho que é assim que ele trabalha», recorda Ava Gardner. E quem tenha visto o
filme recorda-se da inesperada «presença masculina» de Ava, contrariando a
imagem do «eterno feminino» de quase todos os filmes anteriores. Richard Lippe,
um crítico americano, notou e bem que Mogambo
parece um filme de Howard Hawks, e que Ava Gardner, no filme, desempenha
o papel de uma heroína hawksiana, uma rapariga viril, despachadíssima nos diálogos,
com o estofo de quem viveu muito e guarda do passado algumas cicatrizes. Quando
o filme foi exibido, houve quem a achasse tão dotada para a comédia como Carole
Lombard, e Hollywood nomeou-a para o Oscar de melhor actriz, que perderia para
a representação de Audrey Hepburn em Roman
Holiday.
Ava Gardner. Fotos de tumblr. com
A carreira numa réplica
Estabelecida a contra-imagem e auto-exilada
em Espanha para fugir aos padrões que Hollywood lhe impusera (ou que ela mesma em
Hollywood se impusera), Ava podia agora fazer o seu próprio papel e deixar de
representar o papel que o estúdio, a «sua» MGM, lhe atribuíra. E Mankiewicz foi
buscá-la para ser a Condessa Descalça.
Também não tinha muito por onde escolher. Ou ela ou Rita Hayworth. Mais
ninguém, senão uma destas duas actrizes, poderia incarnar a — melhor seria
dizer, fundir-se na — personagem de Mankiewicz (o cineasta favorito dos snobs,
como lhe chamou gentilmente Truffaut). Quando, no filme, Ava olhava para
Humphrey Bogart, que tinha o papel de realizador, e lhe dizia: «Acho que sou bonita, mas não quero ser
esse género de «star». Se eu fosse capaz de representar só um bocadinho, você
ajudar-me-ia a ser uma boa actriz a sério?», ela estava só a converter toda a sua carreira
a uma réplica.
Desse drama deu conta Cukor, depois de a dirigir
em Bhowani Junction: «Ela era extremamente
inteligente. Exerce uma grande fascinação, mas está assombrada pelo desespero. É
uma mulher dominada pela fatalidade. Não está de boas relações consigo mesma e,
entre outras coisas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algumas
maravilhosas cenas eróticas... Lavava os dentes com whisky, de uma maneira
muito ordinária e muito excitante. Mas foi tudo cortado pelos censores».
Por causa de Ava Gardner a crítica francesa produziu
toneladas de prosa metafísica. Desde o Mito, ao Eterno Feminino, passando pelo Mistério,
Enigma e Esfinge, sem esquecer o Fantomático e o Fugidio, Edgar Morin, Bertrand
Tavernier, Jacques Siclier e Ado Kyrou, entre outros, disseram do seu
assombramento. Por mim, prefiro a desassombrada declaração de Cukor. Nela se
percebe melhor como é que Hollywood tantas vezes se bloqueou, por inflexibilidade
da estratégia, a si mesma, e como é que, por detrás de cada imagem de glamour
pode haver a contra-imagem «rebelde» que, com a sua cumplicidade (como antes
com a de Ford e Mankiewicz), Ava Gardner fez, afinal, prevalecer como sua derradeira
imagem.
M. S. Fonseca
Texto e títulos em
Expresso, 3 Fevereiro 1990
Ava Gardner, capa da Time. 1951. Nickolas Muray.
Foto LIFE Archive.
Ava Gardner durante as filmagens de "The Night of the Iguana". Na 2ª foto
vê-se, John Huston e Richard Burton. Mismaloya, Mexico. 1963. Gjon Mili.
Fotos LIFE Archive.
Sem comentários:
Enviar um comentário