quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O animal mais belo do mundo


Ava Gardner, a  derradeira imagem
Texto de
M. S. Fonseca
Expresso, 3 Fevereiro 1990

 Ava Gardner. Foto de butterflybyways.blogspot.pt


Coisas boas em jornais

   QUANDO Ava Gardner  chegou a Hollywood, em 1940, Louis B. Mayer podia  mais na MGM do que Deus-todo-poderoso no reino dos céus. De resto, a imperfeição da natureza era tão óbvia que a MGM não tinha outro remédio senão reproduzi-la em estúdio e corrigir-lhe os defeitos. Ava Gardner era um desses defeitos.
   Agarraram nela, levaram-na para o «Stage 15», o maior set do mundo, e fizeram-lhe o primeiro teste. Lee Garmes, um dos maiores directores de fotografia de Hollywood — que o digam Sternberg, Hawks, Mamoulian, King Vidor ou Nick Ray —, fotografou-a e, como Mayer não tinha tempo a perder, sintetizou-lhe assim os resultados:  «Não sabe representar. Não sabe falar. Mas é espantosa». Garmes era bruxo. Durante dez anos, até à  Pandora de Albert Lewin, cada filme de Ava Gardner levava reticências, muitas reticências e, a seguir, como remate, a constatação, de Garmes, «... but she's terrific».
   No meio do teste, Ava Gardner dizia o nome: «Ahvuh Gandnah». Ninguém percebeu. «Depois  muda-se»,  declarou Louis B. Mayer. «Depois muda-se», era para todos os efeitos o lema de qualquer estúdio. Mudava-se tudo. Chamavam-se os departamentos, o guarda-roupa, a caracterização, e entregava-se-lhes a candidata (que às vezes era o) nas mãos padronizadoras. Ava Gardner não foi excepção. Fizeram-lhe tudo isso, mais uma ida ao dentista, abriram-lhe conta, desenharam-lhe um currículo, deram-lhe aulas de dicção e de representação. E Mayer preparava-se para lhe mudar o nome quando reparou que Ava Gardner era bom, perfeito até. Só que o estúdio não podia correr o risco de dar o braço a torcer — uma vez que fosse — no seu confronto com a «natureza». E se Ava Gardner conservou a sua graça foi porque Mayer criou a ficção de que o nome de baptismo da rapariga era Lucy Ann Johnson, nome impossível que o estúdio corrigira para a sonoridade harmónica de Ava Gardner.

Ava Gardner. Foto de  missladymo.blogspot.pt

«Femme fatale»

Depois de tudo corrigido, dentição, cabelos, pronúncia, o estúdio deu-lhe (ou não deu?) uma carreira. Fê-la fracassar de filme em filme, mantendo-a em banho-maria durante dez anos. Foi premeditado? Ou foi a prova clamorosa dos vícios do sistema? Jean-Luc Godard — o grande e, não me lixem, mesmo grandessíssimo Godard —, no seu estilo aforístico, disse um dia:  «O cinema não se interroga sobre a beleza de uma mulher; o que faz pôr em dúvida o seu coração, registar a sua perfídia». A MGM e Louis B. Mayer, ofusca-dos pelo magnetismo de Ava, procederam inversamente. Fizeram filmes para a imagem dela, querendo que ela fosse refém dessa imagem: sex goddess, como é óbvio. A pouco e pouco foi-se consagrando o mito frívolo de femme fatale,  consubstanciado em casamentos e aventuras que envolveram Mickey Rooney, o músico Artie Shaw, Frank Sinatra e, quando Ava se pôs a incarnar a mulher segundo Hemingway (oops!), alguns «matadores» espanhóis. O mito prevaleceu sobre os filmes medíocres. Firmou-se a ideia de que não sabia representar (ideia alimentada com insistência pela própria Ava), devendo por isso assegurar-se que os filmes não perturbassem as características do produto de identificação: uma beleza felina, uma mulher inacessível, um «mito que se recusa aos homens». Era para a ver assim que o público pagava, foi assim que a MGM a conservou. Ela sobreviveu, mas esteve longe de sair incólume. Bebia tudo o que lhe aparecia pela frente, gin, vodka, tequila, rum, scotch, bourbon, cerveja e champagne: para não ferir susceptibilidades, a tudo o que enchia um copo pôs o nome macio de «shampoo». Robert Mitchum, quando contracenavam em My Forbidden Past, compadeceu-se e procurou tirá-la do vício. Mas Ava nunca se conseguiu habituar à marijuana e Mitchum não teve outro remédio senão continuar a fumar sozinho.
   «Se eu soubesse representar tudo teria sido diferente... Mas tive o azar de ter  esta cara fotogénica». Foi o que Ava disse a Henry King durante as filmagens de Snows of Kilimanjaro.

Ava Gardner by Wayne Miller, 1959 (esq.) e Ava Gardner, foto do Expresso.
Fotos de pinterest.com e Expresso

Figura de redenção

   Deixara já de ter razão. Em 1950, Albert Lewin, filmara-a pela primeira vez  a cores, em Pandora and the Flying Dutchman. A imagem do estúdio, armadilhada por Mayer, Lewin, que tinha fama de esteta e modos de «grande senhor», opôs pela primeira vez a contra-imagem, fazendo-a surgir como uma figura de redenção. E, em 1953, com  Mogambo de John Ford, ao lado de Clark Gable, Ava Gardner provou, mais do que em qualquer outro filme, que poderia ter sido tanto mais actriz quanto tivesse sido muito menos «star». «Ford foi maravilhoso a dirigir-me, a falar comigo, a fazer-me compreender. Acho que é assim que ele trabalha»,  recorda Ava Gardner. E quem tenha visto o filme recorda-se da inesperada «presença masculina» de Ava, contrariando a imagem do «eterno feminino» de quase todos os filmes anteriores. Richard Lippe, um crítico americano, notou e bem que  Mogambo  parece um filme de Howard Hawks, e que Ava Gardner, no filme, desempenha o papel de uma heroína hawksiana, uma rapariga viril, despachadíssima nos diálogos, com o estofo de quem viveu muito e guarda do passado algumas cicatrizes. Quando o filme foi exibido, houve quem a achasse tão dotada para a comédia como Carole Lombard, e Hollywood nomeou-a para o Oscar de melhor actriz, que perderia para a representação de Audrey Hepburn em Roman Holiday.

Ava Gardner. Fotos de  tumblr. com

A carreira numa réplica

   Estabelecida a contra-imagem e auto-exilada em Espanha para fugir aos padrões que Hollywood lhe impusera (ou que ela mesma em Hollywood se impusera), Ava podia agora fazer o seu próprio papel e deixar de representar o papel que o estúdio, a «sua» MGM, lhe atribuíra. E Mankiewicz foi buscá-la para ser a Condessa Descalça. Também não tinha muito por onde escolher. Ou ela ou Rita Hayworth. Mais ninguém, senão uma destas duas actrizes, poderia incarnar a — melhor seria dizer, fundir-se na — personagem de Mankiewicz (o cineasta favorito dos snobs, como lhe chamou gentilmente Truffaut). Quando, no filme, Ava olhava para Humphrey Bogart, que tinha o papel de realizador, e lhe dizia: «Acho que sou bonita, mas não quero ser esse género de «star». Se eu fosse capaz de representar só um bocadinho, você ajudar-me-ia a ser uma boa actriz a sério?»,  ela estava só a converter toda a sua carreira a uma réplica.
   Desse drama deu conta Cukor, depois de a dirigir em Bhowani Junction: «Ela era extremamente inteligente. Exerce uma grande fascinação, mas está assombrada pelo desespero. É uma mulher dominada pela fatalidade. Não está de boas relações consigo mesma e, entre outras coisas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algumas maravilhosas cenas eróticas... Lavava os dentes com whisky, de uma maneira muito ordinária e muito excitante. Mas foi tudo cortado pelos censores».
   Por causa de Ava Gardner a crítica francesa produziu toneladas de prosa metafísica. Desde o Mito, ao Eterno Feminino, passando pelo Mistério, Enigma e Esfinge, sem esquecer o Fantomático e o Fugidio, Edgar Morin, Bertrand Tavernier, Jacques Siclier e Ado Kyrou, entre outros, disseram do seu assombramento. Por mim, prefiro a desassombrada declaração de Cukor. Nela se percebe melhor como é que Hollywood tantas vezes se bloqueou, por inflexibilidade da estratégia, a si mesma, e como é que, por detrás de cada imagem de  glamour pode haver a contra-imagem «rebelde» que, com a sua cumplicidade (como antes com a de Ford e Mankiewicz), Ava Gardner fez, afinal, prevalecer como sua derradeira imagem.


M. S. Fonseca
Texto e títulos em
Expresso, 3 Fevereiro 1990


Ava Gardner, capa da Time. 1951. Nickolas Muray.
Foto LIFE Archive.


Ava Gardner durante as filmagens de "The Night of the Iguana". Na 2ª foto 
vê-se, John Huston e Richard Burton. Mismaloya, Mexico. 1963. Gjon Mili.
Fotos LIFE Archive.



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