quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"A maneira melhor de ser fadista"

Alfredo Marceneiro

por
Vítor Pavão dos Santos


As luzes apagam-se para o fado.


«a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»
 Alfredo Marceneiro



Coisas boas em jornais

«O cenário é uma taberna, ao fundo uma barregã» — dizia ele, naquela sua voz rouca, para começar a criar clima. Depois, dava uns passos, mãos nos bolsos, quase a dançar, e ia tomando cena, até que parava, deitava a cabeça para trás, fazendo sobressair a melena sempre muito negra, e começava a cantar.


Falamos de Fado: Alfredo Marceneiro "Antologia"

Acontecia isto noite alta, em alguma casa de fados já fechada ao público, quando o Alfredo Marceneiro resolvia revelar, a uma meia dúzia de eleitos, como é que se cantava o fado, o fado que, em grande parte, foi ele quem o inventou. Algumas vezes tive o privilégio de estar entre esses eleitos, ora no «Mesquita», ora no «Machado», ora no «Faia» ou na «Viela», nem sei já quando foi a primeira vez. Mas o que sei, isso sim, é que era uma experiência tremenda, arrebatadora, que valia como uma  verdadeira iniciação.
É que, através daquela voz velada, um tanto ondulante, sem efeitos, que apenas marcava cada palavra para construir um ambiente musical, transmitia-se muito mais do que cantigas, ou fados, transmitia-se toda uma moral e um conceito de vida, transmitia-se oralmente toda uma cultura.
Se as situações cantadas, em palavras por vezes difíceis, iam do melodrama ao jocoso, tanto fazia, pois tinham sempre, naquela voz, uma força a que ninguém podia ficar indiferente.



O leilão da casa da Mariquinhas - Linhares Barbosa / Popular - Fado Mouraria


Alfredo Marceneiro, toda a vida

É que os poetas que ele cantava, os seus poetas, também tinham vindo quase todos do proletariado urbano, por isso sentiam e sofriam aquelas palavras, como ele as sentia e sofria.
Poetas do fado tão esquecidos, mas que não podem deixar de ser lembrados, a começar por Henrique Rego, tipógrafo, seu grande amigo e poeta preferido, que para o Marceneiro escreveu a história da «impúdica bacante» que descobre, assombrada, que o jovem pintor que tenta seduzir é, afinal, o seu filho. E quando o Marceneiro nos contava que «a turba comovida / pasma ante aquele quadro original, estranho», sentia-se «a piedade e o medo», tal qual o mesmo arrepio da tragédia, na revelação de que Edipo é filho de Jocasta. Enfim, a grande tradição da cultura.


Casa de Fado na Rua da Amendoeira em Lisboa, por volta de 1900. Foto da net.


Aos desmandos da cidade liberal e corruptora, opunha tipicamente o mesmo Henrique Rego o valor puro da vida campestre, simbolizados naquela «Menina, lá do mirante / toda vestida de cassa», ou então concentrava amor e raiva transbordantes num objecto: «O lenço que me ofertaste / tinha um coração no meio / quando ao nosso amor faltaste / eu fui-me ao lenço e rasguei-o»; ou era capaz de atingir o quase puro folclore, em «Toma lá colchetes de oiro». E tudo isto o Marceneiro fazia chegar até nós, intacto, no poder da sua voz tão vibrante, tão estranhamente entrecurtada.
E depois havia também o poeta Linhares Barbosa, grande malabarista das palavras, ora contando a história da perdição citadina da filha de um moleiro, em «Eu lembro-me de ti, chamavas-te Saudade», ora dando-nos um calafrio no Natal do criminoso. «Batem - me à porta, quem é? / ninguém responde... que medo...»
Muitos foram os poetas que escreveram para o Marceneiro e ele mantinha vivos, mas é de lembrar ainda Gabriel de Oliveira, o Gabriel Marujo, que Fernando Pessoa e António Botto «ousaram» incluir numa antologia poética, todo cheio de misticismo, velado e misterioso, na Senhora do Monte, ou mais colorido no célebre Há festa na Mouraria.


Fado amador no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Por volta de 1930. Foto Arquivo Fotográfico da CML.


E isto sem esquecer, claro, o verso fácil, sorridente e um tanto revisteiro de Silva Tavares, contrariando as regras da moral estabelecida, ao cantar as alegrias da Casa da Mariquinhas, que teve tal sucesso que até mereceu continuação, no Leilão da Mariquinhas, de Linhares Barbosa, e cuja fama tanto perdurou que Alberto Janes, cheio de graça e invenção, muitos anos depois, a transformou em casa de penhores e em símbolo de uma época e de uma moral fadista que findava, em Vou dar de beber à dor, que, na voz de Amália, foi aquele êxito louco que se sabe.
Mas não se pense que Alfredo Marceneiro era apenas um grande intérprete, um contador admirável de histórias, pois ele era também e sobretudo um músico excelente, inventando para cada fado a melodia certa, tão certa que, por vezes, nem se dava por ela, e algumas são de uma beleza incrível. E reparar.
E é bem significativo que Amália Rodrigues, num dos seus discos melhores e mais elaborados (para mim o melhor), onde pela primeira vez aparecem as músicas de Alain Oulman, tenha escolhido, para cantar os seus próprios versos, célebre Estranha forma de vida, uma  velha melodia do Marceneiro.
— «Aquilo nem é um fado, é uma valsazinha que eu fiz há uma  data de anos e se lembraram agora de ir buscar» — ouvi eu dizer ao Alfredo Marceneiro, nessa altura, sempre irónico mas não sem uma ponta de orgulho.


Alfredo Marceneiro cantando na Adega Machado no Bairro Alto em 1961, acompanhado à viola por Armando Machado? e noticia de uma sessão de fados com Alfredo Marceneiro e Vicente da Câmara, acompanhados pela guitarra de Carlos Paredes, para os bailarinos Margot Fonteyn e Nureyev, no Grémio Literário em 1968. Foto da net.


Para cantar o fado até à morte

E já agora, sempre digo que ouvir o Alfredo Marceneiro conversar, teorizar sobre o fado, era quase tão bom como ouvi-lo cantar. E as coisas que se aprendiam; era toda a história do fado, que com a sua história afinal se confunde.
Nessas recordações, nunca saudosistas, sempre incisivas e críticas, muito críticas mesmo, passava-se pelo tempo em que o fado era cantado em cafés e acompanhado ao piano, «como devia de ser, que a guitarra só se usava para cantar o fado na rua, depois é que tudo isso se mudou»; passava-se pelo tempo em que cantar o fado não era profissão, e cada cantador — os cultivadores, como então se lhes chamava — juntava orgulhosamente ao seu nome a indicação do seu ofício honrado, tal como ele tinha sido, durante muitos anos, fadista sem deixar de ser marceneiro, e dos bons, operário que até entrara na greve do Alfeite. Lá se diz, na sua célebre marcha, que vale como um programa de vida: «Sou Marceneiro sim, porque trabalho / Marceneiro do fado e no ofício.»
E falava-se também na decisiva Festa do Fado, organizada por António Botto, no São Luiz, em 1924, primeiro passo para a dignificação dos fadistas, que depois se puderam profissionalizar, como «artistas de variedades», classificação que nunca lhes agradou lá muito.


Anúncios da presença de Alfredo Marceneiro em Casas Típicas em 1946 e 1956.

E era inevitável virem á baila aqueles sítios míticos, onde o fado se foi forjando: o «Perna de Pau», o «Ferro de Engomar». Ainda fora de portas, lá para as hortas arrabaldinas; o «Solar da Alegria», o «Luso da Avenida», o «Salão Artístico», da grande guitarra Armandinho, já no Parque Mayer; o «Café Mondego», o «Retiro da Severa», onde um dia se estreou a Amália, sem esquecer o «Solar do Marceneiro», ali à Calçada de Carriche, de vida breve, pois cantar a horas certas e sempre no mesmo sítio, nunca foi do seu agrado, nem mesmo em casa própria.
Foi tudo isto há muitos anos. Mas quanto a essas verdadeiras lições de cultura popular que o Alfredo Marceneiro dava, quando estava para aí voltado, não acredito que quem as tenha ouvido, possa esquecê-las.
Depois dessas noites mágicas, quando a madrugada já ameaçava, e todos se iam deitar, ele ajeitava o lenço de seda ao pescoço, e lá entrava ainda por aquela réstea de noite, sempre fugidio, indo geralmente até ao Ritz  Club,  para fazer  barba. Talvez para começar bem o dia. Talvez para acabar bem a noite. É que isto de tempo certo e horas marcadas não era com o Marceneiro. O seu tempo construía-o ele, como muito bem entendia. Tal como a vida. Tal como o fado.

Vítor Pavão dos Santos
O Jornal 8-7-1982



Anuncio do Solar do Marceneiro, no final da década de 1940, Solar este que pertencia a Alfredo Marceneiro e outro anuncio em 1950 de um restaurante naquela zona, com direção artística de Alfredo Marceneiro, talvez fosse o mesmo?.



Alfredo Marceneiro canta o Bêbado Pintor, Letra de Henrique Rego e Música de Alfredo Marceneiro - Alexandrino da Laranjeira: Para a Manuela de Freitas.



Morreu de cansaço e tristeza
por
Fernando Dacosta

O mundo exterior foi-se-lhe fechando devagar. Quando o percebeu sentiu-se cansado e triste. Sentou-se em casa, casa de páteo aldeão, deixou de cantar, de sorrir e de comer.

Aos 91 anos recusou, ele que sempre a amara, a vida. Não sofria de nada: corpo, coração, pulmões, rins, estavam bons. Apenas a vista se afundava. Morreu no amanhecer do último sábado, de cansaço, de tristeza — de velhice. Desinteressou-se, revelam os amigos, de continuar. A sua velha cidade transformara-se. As pessoas, as casas, as noites, os sentimentos tornaram-se outros — e tornaram-no alheio. A ele, fadista de génio e de orgulho, símbolo de um povo húmido e triste e ensombrado.


Alfredo Marceneiro e Herminia Silva em 1970. Foto copiada de jornal.


«Começou a entristecer, a entristecer (palavras de Mascarenhas Barreto) até que... De há oito anos para cá a vida nocturna de Lisboa, que era a sua, alterou-se radicalmente. Os velhos motoristas de praça, os velhos porteiros e empregados de mesa foram substituídos por gente nova que não o conhecia. Isso magoava-o muito. Por vezes não o deixavam entrar nas casas de fados, não o acarinhavam, e ele sempre foi tratado nas palminhas das mãos. Os taxistas paravam quando o viam e levavam-no muitas vezes de borla, toda a gente o chamava pelo nome, lhe oferecia a mesa, o ajudava, quando aparecia tudo mudava à sua volta, ofereciam-lhe dinheiro. Às vezes cantava, mas só cantava quando lhe apetecia. Recusou contratos, recusou filmes, recusou ofertas valiosas. Eu ia buscá-lo muitas vezes com outros amigos. Deixou de trabalhar muito cedo devido a um acidente numa mão. Vivia de uma reforma, com modéstia, mas com dignidade, passava os dias a descansar e só saía à noite pois tinha medo dos automóveis. O trânsito aterrorizava-o!»


A Viela, Letra de Guilherme Pereira da Rosa e Música Alfredo Marceneiro (Fado Cravo)


Fado feito de pinho...

Alfredo Marceneiro é uma memória de Lisboa, como as fragatas do rio, os bicos de gás, o cacau da Ribeira, onde várias vezes o vimos no raiar da manhã, memória terna e secreta feita, há muito, imaginário colectivo.
Nele, o fado é  um edifício sem tempo, um  Jerónimos  de afectividade, um vinho de penares, um altar de exorcismos. «A culpa foi do Júlio Dantas ao escrever «A Severa». O êxito foi tanto que o fado começou a entrar (evoca-nos Luís Oliveira Guimarães) nos salões e a levar os fidalgos às casas típicas. Ele é que arranjou essa trapalhada... Mais tarde o turismo tomou conta de tudo. Ora o Marceneiro ficou como era, só cantando quando queria. Ele dizia-me: a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»


Nesta foto estão três do nossos maiores fadistas de sempre: Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, (mãe de Carlos do Carmo) e Maria Teresa de Noronha, na casa de fados O Faia. Foto da net, sem data mas com a indicação: nos anos 60.


«Foram sectários com ele»

Envolto no seu universo, o velho fadista vagabundeou, livre e sábio, pelos anos, pela música, pela amizade, pelo orgulho de se saber resistente.
«Sim, resistente. Era um cantor da resistência (sublinha-nos Luís Cília) como um Gardel. Nunca se dobrou àquilo que o fascismo fez do fado. O Marceneiro era, em termos culturais, um cantor revolucionário porque verdadeiro, de raiz. Podia ter sido um tipo riquíssimo mas recusou, não cedeu. E era-lhe muito fácil entrar no sistema! Só tenho pena que não tenham sido os progressistas a pôr-lhe a medalha de Lisboa em vez do Abecassis. Mas os progressistas foram um bocado sectários com ele. Ele que tinha uma coisa cada vez mais rara: a autenticidade. Comovo-me muito ao ouvi-lo... o Ferré, quando cá esteve, gostou imenso de o ouvir, ficou muito impressionado. Que pena não ter sido aproveitado de outra maneira, mas os mentores da nossa cultura, que se calhar até têm muito pouca cultura, não se aperceberam do seu valor cultural!»


Alfredo Marceneiro, Amália e o marido em foto sem data copiada de jornal.


O fado também é protesto

Em entrevista antiga, Ti Alfredo desabafava: «Cá para mim o fado hoje não passa de uma fonte de receita turística... fado hoje é para inglês ouvir. Fado, canção do povo e para o povo? Não me façam rir! Onde está o povo que hoje em dia pode dar 500 escudos para ir às casas típicas?» O fado «também é uma canção de protesto, ou de denúncia!»
Singularíssimo o seu funeral foi caminhado ao som de guitarras, de vozes de fadistas, de palmas e de sinos. Pelas ruas fora, numa tarde sufocada de domingo e de emoção, até ao cemitério, amável, dos Prazeres.
Amália entoaria com outros «A Casa da Mariquinhas». «O fado — disse — morreu hoje». «Com lídima expressão e voz sentida/ Hei-de cumprir no mundo a minha sorte/ Alfredo Marceneiro toda a vida/ Para cantar o fado até à morte.»
Até à morte.

Fernando Dacosta
O Jornal 8-7-1982


Letra de Armando Neves e Música de Alfredo Marceneiro (Fado CUF).


"O MARCENEIRO"


Com lídima expressão e voz sentida
Hei-de cumprir no Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro toda a vida
Para cantar o fado até à morte.


Orgulho-me de ser em toda a parte
Português e fadista verdadeiro,
Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a gente o Marceneiro.


Este apelido em mim, que pouco valho,
Da minha honestidade é forte indício.
Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,
Marceneiro no fado e no ofício.


Ao fado consagrei a vida inteira
E há muito, por direito de conquista.
Sou fadista, mas à minha maneira,
À maneira melhor de ser fadista.


E se alguém duvidar crave uma espada
Sem dó numa guitarra para crer,
A alma da guitarra mutilada
Dentro da minha alma há-de gemer


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