Silva Mangano em Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949) de Giuseppe De Santis.
Foto de theredlist.fr
Coisas boas em jornais
Texto de Vítor Pavão dos Santos
Jornal Se7e
21-02-80
"Tudo hoje quer cinema italiano
P'ra ver de perto as pernas da Mangano
Dantes a Rita é que era o chamariz
Hoje a Silvana é que dá que falar
E então nas ruas andam velhos
Andam novos, andam ginjas
Anda tudo a perguntar
Mas onde é que está o gato?
Sei lá! Sei lá!
Mas onde e que está o gato?
Sei lá! Sei
lá!"
Era assim que a revista,
comentadora infalível da vida portuguesa, pela voz da grande Hermínia Silva,
assinalava, em 1953, em Lisboa antiga,
a loucura que então provocava o cinema Italiano e as suas vedetas. Tudo
começara, quando, em 1951, Silvana Mangano surgira desafiadora, no écran do Tivoli, camisola colada ao
peito farto, calções molhados e pernas nuas, mergulhadas, até ao joelho, nos arrozais,
em Arroz Amargo (Riso amaro, 48),
desencadeando o desejo do «bom» Raf Vallone e do «cínico» Vittorio Gassmann,
tão próxima, tão verdadeira, logo conquistando o espectador lisboeta,
derrubando as imagens technicoloridas
das pin ups sofisticadas, como Rita
Hayworth ou Betty Grable. Mas não seria por muito tempo que o público poderia
gozar da beleza de Silvana, já que a vigilante censura salazarista, também
visivelmente perturbada, mandou retirar o filme de exibição, 14 dias após a
estreia, alegando, entre outras idiotices, abundância de «mulheres em roupagens
sumárias». E lá se foi a Silvana mondadeira (...). O escândalo do filme não era
facto inédito, pois nos Estados Unidos também a legion of decency condenara Bitter
Rice. Só que lá, o caso até serviu de publicidade ao filme, que rendeu a
considerável soma de seis milhões de dólares. Mas por cá, tudo era bem
diferente — tirava-se a fita de circulação e não se davam mais satisfações.
Silvana Mangano e Dino De Laurentiis com as filhas em Monte Carlo. 1966. Carlo Bavagnoli.
Porém, o que a censura não podia impedir era que a imagem avassaladora da
belíssima Silvana ganhasse o prestigio do fruto proibido. E o público, que
esperava ansioso noticias dela, lá a conseguiu ver, em 1952, moldada pela
combinação preta, indispensável acessório das vamps neo-realistas, em O
Lobo da Calábria (Il lupo della Sila, 49), disputada mortalmente por Amadeo
Nazzari e Jacques Sernas. E não ficou desiludido. Porém, o sucesso louco, que
fez Lisboa andar com a cabeça à roda e esgotar semanas e semanas o Império, foi
Anna (Anna, 51), onde La Mangano, com aquele seu ar
indiferente e um tanto enjoado, ora era desvelada freira-enfermeira, ora, de
quando em quando, recordava o seu passado de provocante cantora de cabaret
fumarento, mais uma vez dividida entre o «bom» fazendeiro Raf Vallone e o
«cínico» barman Vittorio Gassmann.
Dolente, em estudadas poses coleantes, Silvana cantava, com a voz emprestada
por uma qualquer cantora ignorada, uma melodia melancólica, T'ho voluto bene, e um remexido balão,
o célebre Balão da Ana, cantigas que
causaram um furor tremendo, e a telefonia tocava a toda a hora, sendo até
gravadas pela Amália, a primeira com versos em português, do jovem poeta David
Mourão-Ferreira. Nesse ano de 1953, Hermínia estava, portanto, absolutamente
certa, a Silvana é que dava que falar, a tal ponto que, num inquérito da
revista Plateia, 82 por cento dos
seus leitores declararam ser ela a sua preferida.
Silvana Mangano e sua filha em Voivodina, Jugoslávia, durante as filmagens
de Tempestade (La Tempesta, 1958) de Alberto Lattuada. 1958. Gjon Mili.
A
serena «signora» de Laurentiis
Mas esta loucura não
acontecia só por cá, mas um pouco por toda a parte. Filha de pai italiano e mãe
inglesa, Silvana Mangano estudara dança, fora manequim e tentara o cinema, até
que, em 1948, conhecera o produtor Dino de Laurentiis, com quem logo casara, o
qual, cuidadosamente, preparara o seu lançamento. E o produto mostrara-se de
tão boa qualidade que o dificílimo mercado americano se mostrava muito
receptivo, a ponto do New York Times
afirmar entusiasmado, ser miss Mangano uma mistura de Anna Magnani, com menos
15 anos, Ingrid Bergman, com temperamento latino, e Rita Hayworth, com 12
quilos a mais.
Perante esta aceitação
internacional, Silvana apareceu, em 1954, em duas grandes produções
italo-americanas. Um era Mambo,
tentativa pouco conseguida de explorar o filão de Anna,
onde se entregava a danças ardentes, com o
ballet negro de Katherine Dunham, casava com Michael
Rennie, um conde hemofílico, e era mais uma vez tentada por Vittorio Gassmann,
o seu «cínico» privativo. O outro, Ulisses
(Ulisse), onde se desdobrava num duplo papel, a paciente e tecedeira
Penélope e a feiticeira Circe, enredando, nos seus encantos, Kirk Douglas, o
herói homérico desta supercolorida odisseia de cartão e purpurina.
Silvana Mangano, durante as filmagens de Tempestade (La Tempesta,
1958) de Alberto Lattuada. Voilodina, Jugoslavia. 1958. Gjon Mili.
Entretanto, a extrema
sensibilidade com que Silvana viveu uma amargurada prostituta, num dos sketchs
de Oiro de Nápoles (L'ro di Napoli, 54),
dirigida pelo seu grande amigo Vittorio de Sica, valeu-lhe ser distinguida com
o Nastro
d'argento, para a melhor actriz italiana do ano, prémio que novamente
conquistou, em 1964, pela criação da figura da condessa Edda Ciano, a célebre
filha de Mussolini, em Il processo di
Verona, um filme, nessa época, proibido em Portugal, e que ainda por cá não
correu. Embora estas distinções tenham dissipado o preconceito generalizado de
que as mulheres que se impõem pela beleza têm, por força, que ser más actrizes,
a signora Di Laurentiis, olhando pelos filhos, no conforto da sua villa
romana, mostrava-se pouco interessada em se assumir superstar, limitando
muito as suas aparições, ainda por cima geralmente breves, apesar da sua
presença, sempre belíssima, ser, com frequência, a melhor coisa de algumas
superproduções do seu marido, como A revolta dos cossacos (La tempesté, 58), d'aprés Pushkin,
também se revelando uma excelente comediante, em Crime
(Crimen, 60), ao lado dos experimentados cómicos Alberto Sordi, Nino
Manfredi e o sempre presente e excelente Vittorio Gassmann.
Silvana Mangano durante as filmagens de Cinco Mulheres Marcadas
(Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.
(Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.
A
presença de prestígio seguro
Em 1966, comemorando
quase vinte anos de feliz casamento, De Laurentiis ofereceu á mulher um
presente caríssimo, que consistiu num filme, em sketchs, todo centrado em Silvana, que interpretava cinco
personagens muito diversas, dirigida por cinco dos mais importantes
realizadores Italianos: Luchino Visconti, Mauro Bolognini, Pier Paolo Pasolini,
Franco Rossi e Vittorio De Sica. Como geralmente acontece com encomendas deste
tipo, A magia da mulher (Le streghe)
foi uma tremenda decepção, em que apenas o episódio de Pasolini, La terra vista dalla luna, com Totó e Ninetto Davoli, se destacava, pela
sua colorida invenção surrealizante.
No entanto, a partir de
então, Silvana Mangano alcançaria um enorme prestigio, passando a ser
indispensável ás obras de dois grandes realizadores, já desaparecidos, Pasolini
e Visconti, que finalmente saberiam compreender e usar plenamente a sua beleza,
o seu talento, e, mais do que tudo, a sua estranha presença. Dirigida por
Pasoloni, ela seria uma Jocasta, primitiva e misteriosa, em Edipo Re (67), um filme multo belo,
incompreensivelmente ainda inédito em Portugal; uma reprimida mãe de família,
da alta burguesia, que, tocada pelo anjo desencadeador (Terence Stamp), desabrocha
numa maravilhosa ninfomaníaca, em Teorema
(68); e, numa breve aparição, a Virgem Maria, no esplendor da visão final
de Giotto, em Decamerone (71).
Jeanne Moreau e Silvana Mangano brincando durante as filmagens de Cinco Mulheres
Marcadas (Five Branded Women, 1960) de Martin Ritt. Austria. 1959. Gjon Mili.
Dirigida por Visconti,
vestida com suprema elegância por Piero Tosi, marcaria três figuras inesquecíveis
de mulher distante e requintada: a mãe, anos 10, do jovem Tadzio, em Morte
em Veneza (Morte a Venezia, 70); Cosima Lizt, a enigmática companheira de
Richard Wagner, em Luís da Baviera (Ludwig II, 72); a snob riquíssima e inquieta mantedora do gigolo Helmut Berger, em Violência e paixão (Gruppo dl
famiglia in un interno, 74), a sua última aparição no cinema,
até à data. Semi-retirada desde há
seis anos, apesar de apenas em Abril próximo completar 50 anos, semi-separada
de Dino De Laurentiis, actualmente um dos mais poderosos produtores do cinema
americano, a trajectória de Silvana Mangano, de mondadeira, explosiva força da
natureza dos arrozais neo-realistas, a delicadíssima e serena aristocrata,
movendo-se entre rendas e suspiros, é uma das mais fascinantes de quantas o
cinema tem para nos oferecer.
Vítor Pavão dos Santos
Texto e Titulos
Jornal Se7e
21-02-80
Foi tôda uma artista.arrôs amargo eu ainda tive tempo de o vêr antes do abrutido salazar e o seu canalha d'amigo cerejeira o terem proibido
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