Greta Garbo e John Gilbert em O Demónio e a Carne (Flesh and the Devil, 1926) de Clarence Brown. Foto encontrada em mythicalmonkey.blogspot.pt. / Clark Gable e Vivian Leigh em E Tudo o Vento Levou (Gone With The Wind, 1939) de Victor Fleming. Foto encontrada em weheartit.com.
O beijo de Mary Irvin e John Rice (0 primeiro beijo do cinema) foi filmado em 1895. Enquanto vista nos kinetoscópios, a imagem três vezes repetida desse beijo era tão pequena e tão pouco nítida que não despertou um interesse por aí além. Mas quando, um ano mais tarde, o filme pode ser projectado num écran, onde as figuras apareciam com o triplo do tamanho natural, foi um escândalo! E uma revista de Chicago, The Chap Book, de 15 de junho de 1896, referia-se-lhe indignadamente nestes termos : «Devem lembrar-se de que, numa peça recente, A viuva Jones, «miss» Mary Irvin e um certo John C. Rice trocavam beijos em cena. Nenhum deles era fisicamente atraente e o espectáculo dessa pastagem (sic) recíproca nos lábios um do outro já era difícil de suportar. Ao natural era grosseiro. Mas nada de comparável com o efeito que produz esta cena ampliada para proporções gigantescas e repetida três vezes de seguida. É absolutamente repugnante. Tudo o que resta do encanto de «miss» Irvin desvanece-se. A sua actuação torna-se indecente e de uma desmedida grosseria. Tais factos pedem a intervenção da polícia.»
Burt Lancaster e Deborah Kerr em Até à Eternidade (From Here to Eternity, 1953) de Fred Zinnemann. Foto encontrada em wonderrland.blogspot.pt. / Marilyn Monroe e Tommy Noonan em Os homens Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer Blondes, 1953) de Howard Hawks. Foto encontrada em www.thisismarilyn.com.
Passaram os anos... e o beijo voltou a aparecer, uma vez por outra, no écran. Mas, ainda durante muito tempo, o beijo, no cinema, foi casto, tímido, fugaz e quase sempre no rosto, antes de se tornar fim obrigatório e indispensável dos filmes de Hollywood. Hoje, é coisa tão natural, tão vista e tão vulgar que já mal se lhe presta atenção. Mas sessenta anos atrás perturbava seriamente os impressionáveis espectadores de cinema... Quando, em 1910, apareceram os primeiros filmes que mostravam dois apaixonados beijando-se na boca, o escândalo que causaram não fói menor do que havia causado, na América, o cândido Beijo de Mary Irvin e John Rice destinado aos espectadores solitários dos kinetoscópios quinze anos antes! O crítico do International Film Zeitung, Félix Holden, escreveria, amarguradamente chocado : «O beijo transformou-se totalmente. Os heróis do cinema já não se contentam com beijar-se rapidamente como nos bons velhos tempos. Agora unem os lábios demoradamente, com volúpia, e a mulher reclina a cabeça para trás em pleno êxtase.»... Referia-se aos filmes dinamarqueses...
Este beijo não pode ser mostrado em foto, tem de se ver toda a cena que está logo no inicio. Ele é, o melhor beijo de todos os filmes que vi e foram muitos. John Wayne e Maureen O'Hara em O Homem Tranquilo (The Quiet Man, 1952) de John Ford.
É que os dinamarqueses, ao criarem a vamp (e a primeira e mais famosa delas foi a grande artista dramática Asta Nielsen), introduziram, também, nos seus filmes — então com grande expansão na Europa-- os beijos longos e apaixona-dos. Conta Georges Sadoul, em Le cinéma devient un art, que «os beijos à dinamarquesa chegaram a chocar também a Imprensa parisiense na primeira década deste século e que, por causa deles, frequentemente achavam que as fitas da Nordisk eram lascivas ou escabrosas». Então e ali — ao contrário do que iria acontecer no cinema de Hollywood — o beijo não se aliava a um fim feliz. No reino da Dinamarca o fim , trágico era de regra. Um pouco antes dos anos vinte, o cinema italiano atingira o apogeu. Depois da vaga de filmes histéricos que iriam influenciar até o cinema americano (consta que Griffith teria estudado o filme Cabiria antes de se lançar na realização de Intolerância), os italianos voltaram-se para o presente e, por seu turno, trouxeram a diva para os seus dramas passionais. E tão famosas, como Asta Nielsen, foram as mulheres fatais do cinema transalpino. A Lyda Borelli, a Francesca Bertini, a Pina Menichelli, a Hesperia, a Maria Jacobini vieram, então, perturbar os espectadores de todo o mundo, com as suas atitudes coleantes, o ardor do seu olhar, o arrebatamento dos seus beijos.
Marlon Brando e Anjanette Comer em The Appaloosa (1966) de Sidney J. Furie. Foto encontrada em classicmoviestills.com. / Audrey Hepburn e George Peppard em Boneca de Luxo (Breakfast at Tiffany's, 1961) de Blake Edwards. Foto encontrada em www.foolzfun.com.
Mas, nessa altura, já não causavam escândalo, provocavam uma desmedida admiração. «Depois de 1914 - escreveria Sadoul, na obra citada — o divismo tornou-se loucura no cinema italiano. Enquanto que o star-system especula com o sex-appeal ou a beleza americana, na medida em que o público paga, na Itália os financeiros e os duques arriscavam a sua fortuna pelo amor de uma diva, de uma donna muta, como chamavam, então, ás estrelas italianas. Estes novos barões de Nucingen investiram os seus milhões em sociedades de produção onde as suas amadas eram senhoras absolutas. Produtores e realizadores tornaram-se fiéis escravos do prestígio e da beleza dessas mulheres idolatradas. Um romantismo semifeudal envolvia de latino ardor cada uma dessas donnas mutas que, agitando os seus belos braços e sacudindo a sua luxuriante cabeleira, conduziam, no meio dos paroxismos da paixão, o cinema ita1iano para a decadência e a ruína.»
Também em Portugal não se escapou ao fascínio das divas. Em 1917, o beijo das divas era igualmente, entre nós, motivo para arrebatamentos inflamados... e publicamente confessados, como se vai ver. Em 1 de Junho de 1917, Leopoldo O'Donnell, empresário-gerente do Cinema Olímpia, de Lisboa, promoveu uma matinée de arte de homenagem a Lyda Borelli, Pina Menichelli e Francesca Bertini, precedida de uma conferência. Deste acontecimento deu conta a «Cine-Revista», no seu n.° 4, nestes termos: «As grandes trágicas do cinema foi o tema escolhido pelo distinto poeta António Ferro para a sua conferência cinematográfica realizada no dia um do corrente, em matinée de arte no Salão Olímpia. Facultado gentilmente pelo seu autor, começamos hoje a publicar esse primoroso trabalho. (...) A iniciativa do sr. António Ferro abre, sem dúvida, um movimento intelectual valiosíssimo em volta do importante papel reservado à cinematografia em todos os ramos da actividade e do saber humanos.»
Paul Newman e Joanne Woodward em A New Kind of Love (1963) de Melville Shavelson. Foto encontrada em www.acertaincinema.com.
A conferência é muito longa, mas vale a pena. reproduzir os parágrafos finais que António Ferro dedica ao beijo das divas homenageadas «Quero marcar bem, num rápido confronto, o temperamento de cada uma das trágicas de que falei. Para fazer, perdoem-me o arrojo, achei uma solução. Surpreender a sua alma através do seu beijo. O beijo é a melodia da alma, a melhor maneira de ela respirar, como afirma Edmond Rostand... O beijo é a síntese de todos os sentimentos, o sinete do amor. Assim, o beijo de Francesca Bertini é o beijo desvairado, o beijo que soluça, o beijo que se entrega, o beijo que floresce, o beijo doido, virgem, que apenas quer ser beijo. O beijo de Pina Menichelli é o beijo maldoso, o beijo que faz doer, que faz dos seus lábios punhais e dos nossos ferida, o beijo Judas, beijo fatídico que faz da boca taça onde ele é veneno que nos mata. O beijo de Lyda Borelli é, porém, o mais belo de todos, o mais cristão, o mais estilizado, jóia de preço que eu quisera ver nos meus lábios... É um beijo que, pelo burilado da forma, lembra um soneto de Verlaine. Depois deste delírio, António Ferro termina, sem dúvida sob entusiásticos aplausos da selecta assistência, com estas palavras: «Numa última síntese, o beijo de Francesca Bertini é o beijo humano, é o beijo mulher. O beijo de Pina Menichelli é o beijo diabólico, o beijo Satanaz. E, finalmente, o beijo de Lyda Borelli é o beijo divino, o beijo arte, o beijo Deus.» Era assim emocional e impressionável, como o reflectem estas palavras de António Ferro, como o reflectem palavras semelhantes publicadas em revistas da época, o público dos cinemas em 1917. O beijo das mulheres fatais, das grandes amorosas, deixara de ser escândalo. Era motivo de uma geral e alienadora admiração... tão ardente como risível. O tempo voltou a passar. O cinema evoluiu... e o público também. Hoje, já nenhuma vedeta do écran poderá gabar-se de provocar tais arrebatamentos. E o beijo, no cinema, tomado na sua dimensão natural, tornou-se moeda corrente... e desvalorizada.
Paul Newman e Joanne Woodward em A New Kind of Love (1963) de Melville Shavelson. Foto encontrada em www.acertaincinema.com.
A conferência é muito longa, mas vale a pena. reproduzir os parágrafos finais que António Ferro dedica ao beijo das divas homenageadas «Quero marcar bem, num rápido confronto, o temperamento de cada uma das trágicas de que falei. Para fazer, perdoem-me o arrojo, achei uma solução. Surpreender a sua alma através do seu beijo. O beijo é a melodia da alma, a melhor maneira de ela respirar, como afirma Edmond Rostand... O beijo é a síntese de todos os sentimentos, o sinete do amor. Assim, o beijo de Francesca Bertini é o beijo desvairado, o beijo que soluça, o beijo que se entrega, o beijo que floresce, o beijo doido, virgem, que apenas quer ser beijo. O beijo de Pina Menichelli é o beijo maldoso, o beijo que faz doer, que faz dos seus lábios punhais e dos nossos ferida, o beijo Judas, beijo fatídico que faz da boca taça onde ele é veneno que nos mata. O beijo de Lyda Borelli é, porém, o mais belo de todos, o mais cristão, o mais estilizado, jóia de preço que eu quisera ver nos meus lábios... É um beijo que, pelo burilado da forma, lembra um soneto de Verlaine. Depois deste delírio, António Ferro termina, sem dúvida sob entusiásticos aplausos da selecta assistência, com estas palavras: «Numa última síntese, o beijo de Francesca Bertini é o beijo humano, é o beijo mulher. O beijo de Pina Menichelli é o beijo diabólico, o beijo Satanaz. E, finalmente, o beijo de Lyda Borelli é o beijo divino, o beijo arte, o beijo Deus.» Era assim emocional e impressionável, como o reflectem estas palavras de António Ferro, como o reflectem palavras semelhantes publicadas em revistas da época, o público dos cinemas em 1917. O beijo das mulheres fatais, das grandes amorosas, deixara de ser escândalo. Era motivo de uma geral e alienadora admiração... tão ardente como risível. O tempo voltou a passar. O cinema evoluiu... e o público também. Hoje, já nenhuma vedeta do écran poderá gabar-se de provocar tais arrebatamentos. E o beijo, no cinema, tomado na sua dimensão natural, tornou-se moeda corrente... e desvalorizada.
Texto de Alves Costa, publicado no jornal A Capital em 17-04-1971
Neve Campbell e Denise Richards em Ligações Selvagens (Wild Things, 1998) de John McNaughton. Foto encontrada em cinemaepoesia-felipe.blogspot.pt. / Javier Beltran e Robert Pattison em Little Ashes (2008) de Paul Morrison. Foto encontrada em cinemaepoesia-felipe.blogspot.pt.
Ewan Mcgregor e Jim Carrey em Eu Amo-te Phillip Morris em (I Love You Phillip Morris, 2009) de Glenn Ficarra e John Requa. Foto encontrada em cinemaepoesia-felipe.blogspot.pt. / Sarah Michelle Geller e Selma Blair em Estranhas Ligações (Cruel Intentions, 1999) de Roger Kumble. Foto encontrada em www.autostraddle.com
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