Coisas boas em jornais
Coisas boas em jornais
Charlie Chaplin, Oona O'Neil e os filhos em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.
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«CHAPLIN terá sido, como poucos, um dos raros artistas sobre quem, à altura da sua morte, tudo estava dito, e as notícias e comentários que no dia seguinte à noite de Natal invadiram os meios de comunicação, não puderam, por isso, evitar de repetir velhos lugares-comuns, citações de intelectuais e de homens de Estado, frases superlativas e encómios avulsos. Não podemos censurar-lhes, pois, a falta de originalidade acerca deste homem glorificado em vida, que atravessou um século, que influenciou multidões, que povoou a memória infantil de vários continentes, porque ele era um daqueles seres privilegiados que o destino quis que tivesse encontrado no caminho uma arte que havia nascido com ele. Encontro sem o qual ele não teria talvez passado de um modesto artista de variedades em "tournées" esgotantes entre a América e a Inglaterra ou mesmo - quem sabe? - teria acabado vítima sem celebridade de um processo de escândalo por violação de menores. A verdade é que se toda a gente conhece de cor os seus filmes e se as suas posições humanistas durante a guerra lhe valeram dissabores e aplausos públicos cujo eco se mantém, pouca gente se lembra já dalgumas peripécias que envolveram a vida amorosa e mesmo conjugal deste homem que foi íntimo de Churchill, de Einstein, de Nehru, recebido com honrarias em todas as cortes da Europa, depois de ter sido votado ao ostracismo por uma América puritana, onde Hayes e McCarthy ditavam a lei.»
Um
Casanova sentimental
O casamento com Oona
O'Neill em Junho de 1943 — não sem algumas contrariedades, pois a filha de
Eugene O'Neill, então com 18 anos, menos 38 do que Chaplin, teve que se opor à
desaprovação paterna — e a imagem de felicidade conjugal do controvertido patriarca
e milionário vivendo na Suíça rodeado de filhos e netos, iria fazer esquecer,
nos últimos 30 anos da sua vida, a outra imagem do sátiro impenitente, cujos
três casamentos precipitados, tão breves como turbulentos, e não menos
processos e inconfidências de amantes despeitadas, fizeram durante anos o
gáudio da Imprensa que alimentava a curiosidade malsã de um público volúvel que
em pouco tempo passava da mais violenta invectiva à mais histérica das
admirações. Era legendária a sua atracção por jovens menores - todos os seus
casamentos, excepto o com Paulette Godard, se fizeram com meninas entre os 16 e
os 18 anos - "virgens inocentes e indefesas" para a opinião puritana,
perversas e fatais Lolitas diria Nabokov; que lhes gabou os encantos como
nenhum outro.
O casamento com Oona
parece vir assim selar uma vida em que este Casanova sentimental foi vítima
tanto dos seus imoderados ardores pelo belo sexo como dos rigores da justiça,
tanto da sua imprudência como da hipocrisia de algumas falsas inocências que, à
sua sombra, quiseram fazer fortuna e carreira. Mas se repararmos que o
casamento com a filha de O'Neil é exactamente contemporâneo do seu projecto de "Mr. Verdoux", a verdadeira
face de Charlot, como sempre, aparece indissociável da sua máscara e teremos
que ver no filme que ele fez sobre Landru — talvez a sua obra mais genial.— a
confissão da sua irremediável misoginia e, nesse casamento "feliz",
uma prudente concessão aos seus instintos. Ou, pelo contrário, Verdoux seria o exorcismo
definitivo com que ele entrava, magnífico, na maturidade de cineasta, levado a
descobrir o que Renoir soube sempre melhor do que ninguém: que não há nada mais
teatral do que a sinceridade.
Verdoux
casa com Oona O'Neil
Mildred Harris, 1ª mulher de Chaplin.
Foto encontrada em wikipedia.com |
A história dos seus
três casamentos antes de Oona O'Neil, é tão acidentada como os seus divórcios, e não menos turbulenta que as suas
aventuras extra-conjugais. Em 1918, então com 38 anos e já célebre e festejado
em toda a América, Chaplin casa pela primeira vez: com Mildred Harris, cuja
idade oscila, segundo os biógrafos, entre os 15 e os 16 anos. Um filho, que
morreria três dias depois, um divórcio dois anos mais tarde, a primeira
campanha pública contra Chaplin que é acusado pela esposa de "crueldade mental"
e obrigado a uma indemnização de 100 000 dólares, depois de ter fugido com o
negativo do seu último filme "O
garoto de Charlot", que os advogados de Mildred Harris lhe ameaçavam confiscar.
É a primeira vez, no entanto, que surge entre Chaplin e a mulher o conflito
aberto — ciúme, inveja, sentido do negócio? — entre a carreira e a vida
conjugal, historia que se irá repetir, vezes sem conta, sempre que as mulheres
com quem viveu ou casou tentavam fazer (ou continuar) a sua carreira fora do
seu controlo. No caso de Paulette Godard, por exemplo, quando decidiu
intimamente que a iria utilizar em "Tempos
Modernos", Chaplin começa por comprar a Hal Roach o contrato que o
ligava à futura esposa. E na época em que Edna Purviance era a sua actriz
preferida — mais precisamente no princípio
dos anos 20 – Chaplin resolveu encomendar a Sternberg um filme que, até hoje,
salvo uns raros eleitos na época, nunca ninguém viu nem provavelmente verá. As
razões obscuras e a história secreta deste filme que é dos mais misteriosos da
história do cinema, dão-nos uma pequena ideia do personagem controverso que era
Charlie Chaplin.
O
romance com Pola Negri
O seu romance com Pola
Negri entre 1922 — data da sua chegada á América – e 1923 – altura em que a
actriz declara publicamente a sua ruptura com Chaplin – foi outro dos casos
sentimentais que encheram as colunas da Imprensa americana durante mais de um
ano e não deixa de ser curioso compararmos as: versões que ambos dão do seu
romance: Chaplin, que lhe dedica duas páginas secas e altivas na sua
autobiografia, e Pola Negri que com ele: ocupa um Capitulo nas suas "Memórias de uma estrela".
Apesar de reconhecer aqui e ali, ao longo das 25 páginas em que esmiuça a sua
vida com Chaplin, algumas qualidades, "gentileza",
"graça", "simpatia", "generosidade" e de
confessar que ele era um "delicioso companheiro de viagem", Pola
Negri não esconde o seu despeito pela forma como Chaplin fugia como uma enguia do
compromisso público do casamento que parece obcecá-la tanto e de que Chaplin
parece fugir - e com boas razões - como o diabo da cruz; e reserva-se
evidentemente a última palavra na sua ruptura com ele, fazendo questão de
deixar claro que foi ela quem o pôs na rua depois de lhe ter aturado a vaidade mesquinha,
a inveja e a presunção.
O
escândalo de Lita Grey
Charlie Chaplin e Lita Grey. Foto de www.listal.com |
António-Pedro
Vasconcelos, texto e titulos, em Expresso 30-12-1977
Charlie Chaplin e sua filha Josephine em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.
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«Tirem as mãos do amor»
Os
surrealistas em defesa de Charlot
CHAMOU-SE
"Hands off Love" ("Tirem
as mãos do amor") o violento Manifesto com que Louis Aragon - logo
apoiado pelas grandes e médias estrelas do Surrealismo - saltou em defesa de Charlie
Chaplin, aquando do seu escandaloso divórcio com Lita Grey, em 1927, atacando
ao mesmo tempo todo o reaccionarismo que se concentrou em defesa dos chamados
"bons costumes". Devido à sua extensão, não podemos transcrever na
íntegra (e valeria a pena, dado que o documento é hoje pouco conhecido), mas
eis alguns fragmentos exemplificativos do estilo verrinoso desse autêntico panfleto.
(...)
JÁ é monstruoso pensar-se que se existe um segredo profissional para os
médicos, segredo que não é mais afinal que salvaguarda de um falso pudor e que,
no entanto, expõe seus detentores a repressões implacáveis, em contrapartida não
existe um segredo profissional para as mulheres casadas. E, no entanto, o
estado de mulher casada é uma profissão como qualquer outra, a partir do dia em
que ela reivindica como devida a sua ração alimentar e sexual. Um homem que a
lei obriga a viver com uma só mulher não tem outra alternativa se não partilhar
com ela os seus próprios hábitos e as suas próprias inclinações, colocar-se à
sua mercê. Se ela depois o expõe à maldade pública, como é que a mesma lei que
deu à esposa os mais arbitrários direitos não se vira contra ela com todo o rigor
que merece um abuso de confiança de tal modo revoltante, uma difamação tão
evidentemente ligada aos mais sórdidos interesses? E além do mais como se pode
entender que os costuma sejam matéria de legislação? Que absurdo! Mas para
circunscrever o discurso aos "escrúpulos" assaz episódicos da "virtuosa"
e "inexperiente" senhora Chaplin, é necessário dizer que é cómico
considerar "anormal, contra a natureza, perverso, degenerado e
indecente" o hábito do "fellatio" ("todos os casais o praticam",
diz muito bem Chaplin). Se se pudesse abrir, de um modo razoável, uma livre
discussão sobre os costumes, seria normal, são, decente, virar contra ela, a denúncia
que esta esposa faz, convencida de se ter "humanamente" recusado a
práticas tão difundidas e perfeitamente puras e sustentáveis. Mas como é que
uma tal estupidez não cessa de fazer apelo ao amor, como no caso desta rapariga
que aos 16 anos e dois meses se casa "conscientemente" com um homem
rico e vigiado pela opinião pública, e ousa fazê-lo hoje com os seus dois rebentos,
nascidos da orelha evidentemente, uma vez que sustenta que "o acusado
nunca teve com ela relações conjugais como é hábito entre os cônjuges",
estas crianças que agita como actos de acusação; em apoio das suas próprias
exigências íntimas? Os sublinhados são nossos, e a linguagem revoltante que
sublinhamos, vamos buscá-la emprestada pela acusadora e seus advogados que
procuram, antes de tudo o mais, contrapor a um homem vivo os mais repugnantes lugares-comuns
dos sentimentos cretinos, a imagem da mãezinha que chama "papá'' ao seu
amante legal".
Depois
de desmontar uma a uma as cinco acusações dos advogados de Lita Grey, e de
aproveitar para afirmar que "a conduta deste homem faz o processo do
matrimónio, da codificação imbecil do amor", Aragon conclui no bom estilo
surrealista da época:
"Pensamos
naquele admirável momento de "Charlot e o Conde", quando durante uma
festa Charlot vê passar uma bela mulher, fascinante quanto possível, e num abrir
e fechar de olhos abandona a própria vivenda, para a seguir de casa em casa,
depois pelo terraço, sem que ela se dê conta. Às ordens do amor, sempre esteve às
ordens do amor, eis o que proclamam em uníssono a sua vida e todos os seus filmes.
Do amor imprevisto, que é, antes de tudo o mais, um grande, um irresistível
apelo. Então é preciso abandonar tudo, e por exemplo, no mínimo, um lar. O mundo
com os seus bens legais, a dona de casa e os fedelhos, protegidos pela policia,
a caixa de depósitos: é de tudo isto que se evade sem hesitar, seja o homem rico
de Los Angeles;. seja o pobre dos subúrbios, desde "Charlot empregado de
banco" até à "Corrida do Ouro". Tudo o que tem na mesa, moralmente,
é apenas aquele dólar de sedução que qualquer um lhe faz perder, e que no café
do "Emigrante" cai continuamente ao chão das calças rotas, aquele
dólar que se calhar não passa de uma aparência, fácil de se torcer com uma
dentada, simples moeda falsa; que será recusado mas que permite que por um
instante se convide para a mesa a mulher semelhante a uma vampe de fogo, a
mulher "maravilhosa", e cujas linhas serão para sempre céu.
(...)"
Expresso
30-12-1977
Charlie Chaplin descansando durante as filmagens de Limeligh em 1952. Foto W. Eugene Smith e LIFE Archive.
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